A um actor português em quem poucos suspeitaram talento ou originalidade foi atribuída a frase seguinte: “Hamlet é a história de alguém que trocou o ceptro pelo duvidoso.” A definição terá sido inventada por quem quase de certeza nunca leu a peça no original; e talvez não a tenha lido de todo; mas é verdadeira. Com efeito, não é desacertado especular que se o príncipe da Dinamarca tivesse ficado quieto durante os cinco actos teria acabado por herdar o ceptro do padrasto; ou que ao embarcar num inquérito incerto sobre a identidade do assassino do pai terá arruinado as suas possibilidades de sucessão dinástica. Mas, para além de serem verdadeiras, as palavras do actor são ainda memoráveis e engraçadas.
No entanto o maior interesse do acontecimento não é tanto a frase só por si como o facto de que uma frase engraçada, ao ser atribuída a uma pessoa que não julgaríamos capaz de a inventar, nos faz mudar de ideias sobre a pessoa. O actor em questão dominava na melhor das hipóteses a arte do cómico involuntário; representou as piores peças; na maior parte dos casos fê-lo com outros actores tão maus ou piores que ele; lisonjeou os instintos mais baixos daqueles que o aplaudiam; e, quando o imaginaríamos apenas capaz de coisas que confirmassem tudo o que já sabíamos acerca dele, redimiu-se numa definição única e certeira que muitos de nós invejam e admiram.
O interesse da frase do actor não é simplesmente o interesse das suas palavras: é ajudar-nos a mudar de ideias sobre quem a inventou. Fazemo-lo muitas vezes, mas estamos sobretudo habituados a fazê-lo para pior: a suspeita de uma frase desastrada faz-nos quase sempre condenar alguém que até aí considerávamos. Como a uma criança numa aula de desenho, a mais pequena quantidade de preto torna tudo castanho. É porém muito menos frequente redimir pessoas por causa de frases que tenham proferido; e raro fazê-lo por causa de uma única frase que nós gostassemos de ter inventado.
As palavras de alguém são nesta situação pouco comum muito parecidas com boas acções; mas são boas acções atípicas, muitas vezes cometidas por quem nunca ligou a elas, e não sabia ou percebia que as estava a realizar. Ser não obstante o autor de uma frase engraçada, como de uma boa acção, e sê-lo por acaso ou por felicidade, pode ser suficiente para nos esquecermos daquilo que sabíamos sobre o seu autor. No caso do nosso mau actor, será talvez lembrado por uma coisa que terá dito ou feito sem pensar; e por uma coisa que quem o aplaudiu em vida não imaginaria que pudesse ter feito, ou pensaria em aplaudir. O que fez e o que lhe aconteceu, tão fora do seu carácter, são exemplo daquilo a que os teólogos chamam graça.