Este é um tempo bem negro, um tempo de trevas em que os anjos da guerra parecem ter soprado as trombetas, libertando cavaleiros e demónios. Embora na clássica confusão das batalhas a escalada possa não nos parecer apocalíptica, o perder de face de uns, o desespero de outros, o descontrolo das consequências, a histeria das massas, a ausência de lideranças lúcidas e firmes podem trazer grandes e trágicas surpresas, alargando a outras geografias os horrores da guerra e das suas vítimas directas e colaterais.

Seja como for, e mesmo partindo do princípio de que se evitará o pior, a chamada ordem internacional liberal sairá seriamente abalada deste conflito. E, depois de um interregno, terá de surgir uma nova ordem, talvez poliárquica ou dividida em blocos. Será uma nova Guerra Fria? Acabarão por bipolarizar-se os blocos? E, se sim, com que alinhamento e em nome de quê?

A História e a reflexão sobre a História não são agora muito populares. O presente tende a entender-se através das fórmulas simplistas das ideologias de serviço e das teorias da conspiração e qualquer reflexão independente corre o risco de se transformar em perigosa heresia. No entanto, como no diálogo entre Abraão e Jeová para poupar Sodoma e Gomorra, podemos sempre ir contando e descontando uns justos, mesmo poucos, que vão mantendo a lucidez no meio da histeria e da confusão.

Por que ganhou o Estado-Nação?

Foi em 1975 que Charles Tilly editou a colectânea de ensaios The Formation of National States in Western Europe. Pesando as razões que tinham levado ao triunfo do “Estado nacional” como forma dominante de comunidade política, Tilly não teve dúvidas em destacar “a preparação para a guerra”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Depois da especulação político-filosófica de Hegel e da interpretação economicista do Estado como instrumento do domínio classista de Marx, a reflexão histórica e sociológica sobre a construção do Estado tinha sido desenvolvida por pensadores alemães da transição do século XIX para o século XX. Foi o caso de Max Weber e Otto Hintze, que estudaram as relações entre o esforço de guerra, a centralização da fiscalidade e a criação das burocracias administrativas permanentes; e também a relação entre a extensão territorial e o modelo político adoptado.

Weber, cuja obra teórica está marcada pelas tensões entre liberalismo e nacionalismo, em difícil equilíbrio no seu pensamento, não deixou de confrontar directamente Marx na sua Wirtschaftsgeschichte (História Económica Geral), contrapondo “meios de produção” e “meios de destruição”, a “empresa capitalista” e o “Estado territorial”: o monopólio ou a centralização dos “meios de destruição” e da organização da violência, em contraste com a sua dispersão por vários senhores da guerra, era, para Weber, tão ou mais importante para a história social do que a monopolização ou centralização dos “meios de produção” numa empresa capitalista.

A guerra, o Estado e a reconfiguração da ordem internacional

“War made the State and the State made war” é a famosa frase de Tilly.

Assim também as grandes recomposições na ordem entre os Estados, na ordem mundial ou internacional, têm vindo a ser fixadas pelas grandes conflagrações. Foi o que aconteceu na História moderna da Europa com a Guerra dos Trinta Anos, com as guerras da Revolução e do Império, com a Grande Guerra de 14-18, com a Segunda Guerra Mundial e com a Guerra Fria de 1948-1991.

Irá a guerra Rússia-Ucrânia e o decorrente conflito alargado fundar uma nova ordem, pondo termo à ordem internacional liberal que se seguiu à Guerra Fria com a vitória do Ocidente? E será a guerra quente possível entre Estados com armas de destruição maciça, ou ainda há uma dissuasão implícita que limita a guerra, obrigando-a a ser fria?

A Guerra dos Trinta Anos foi o epílogo das guerras religiosas na Europa. Desde que a cisão causada por Lutero opôs católicos a protestantes que as alianças e a definição do amigo e do inimigo passavam pela crença. A França de Richelieu quebrou esta regra quando se aliou aos protestantes contra os Habsburgo, sendo pioneira de uma razão de Estado nacional que se sobrepunha às identidades e solidariedades religiosas.

O século e meio passado entre os tratados de Westfalia e a Revolução Francesa é marcado por conflitos dinásticos e territoriais, como a Guerra da Sucessão de Espanha e a Guerra dos Sete Anos. No mesmo período, surgem novos poderes na Europa, a Rússia de Pedro, o Grande, e a Prússia de Frederico II, que se afirmam e criam ou consolidam o Estado através de guerras vitoriosas. Ao mesmo tempo há uma forte rivalidade franco-inglesa na Europa e nas áreas de expansão imperial, das Américas à Índia.

Nas vésperas da Revolução Francesa existem na Europa cinco poderes principais: a França, o Reino Unido, a Prússia, a Áustria e a Rússia. A Revolução e a aliança das potências monárquicas para apagar os fogos subversivos de Paris, consumados com a execução do Rei, vão marcar e definir blocos ideológicos, numa bipolarização que vai perdurar, com mobilidade de alianças, ao longo do Império napoleónico. Com a derrota e o exílio do Imperador e o triunfo dos Aliados, o que se segue, ideologicamente, é uma oposição entre as potências conservadoras da Santa Aliança – Rússia, Áustria e Prússia e a França dos Bourbon, até 1830 – e as monarquias liberais.

O século XIX volta às guerras nacionais e territoriais. O surto liberal e emancipalista da “primavera das nações” de 1848-49 é dominado pelos impérios do Leste e as guerras seguintes são as guerras da unidade ou da conquista da estatalidade de duas nações antigas – a Itália e a Alemanha. Não há blocos, há alianças que, entretanto, no final do século, cristalizam na Entente franco-britânica aliada à autocracia russa, contra os Impérios Centrais, aliados à Itália (que, já em pleno conflito, vai mudar de bordo).

A Grande Guerra foi ainda uma guerra clássica, de interesses nacionais, embora do lado da Entente houvesse a tentativa de fazer dela uma guerra ideológica das nações liberais contra os “Impérios autoritários” alemão, austríaco e otomano; uma bipolarização cuja lógica era comprometida já que os liberais tinham, do seu lado, a autocracia russa. Em Fevereiro de 1917 veio o colapso do regime czarista depois das derrotas militares, com dezenas de milhares de soldados vencidos e desgarrados em S. Petersburgo a não quererem voltar para o “matadouro” da frente.

Foram eles a massa de manobra da Revolução Russa, primeiro democrática, depois bolchevique. Também em 1917, a intervenção americana reforçaria o carácter ideológico da guerra e, sobretudo, da paz. O Presidente Wilson introduziria definitivamente na História moderna a ideia de que havia “países maus” que gostavam da guerra e não apreciavam a democracia e que deviam pagar por isso: a Alemanha do Kaiser era assim e devia ser punida.

E foi sobretudo graças ao esforço francês, um esforço não ideológico, centrado na reparação e compensação da derrota de 1870-71, que a paz punitiva de Versalhes consagrou a humilhação e miséria da Alemanha. Hitler surgiu daí, eleito nas urnas como salvador.

A Guerra Civil de Espanha foi já uma guerra ideológica entre uma aliança de conservadores autoritários, nacionalistas revolucionários e fascistas e uma Frente Popular de republicanos, socialistas, anarquistas e comunistas. As ajudas externas vieram de “voluntários” alemães e italianos e de “internacionalistas” de várias origens.

A Segunda Guerra Mundial começará por ser uma guerra clássica, não ideológica, com o governo conservador da Polónia a ser atacado e vencido por uma aliança espúria: a dos nacionais-socialistas alemães com os comunistas soviéticos.

Entretanto, a partir da invasão da URSS, em Junho de 1941, a guerra clássica, travada por razões de território e reivindicações nacionais da Alemanha, transformava-se em guerra ideológica contra o comunismo e os judeus, fenómeno que se estenderia, mais tarde, aos países ocupados pelo Terceiro Reich. O mesmo aconteceria em Itália, a partir de 1943, com a luta na República Social Italiana entre fascistas e antifascistas. A marginalização do Direito da Guerra, o apelo à formação de “legiões” de voluntários estrangeiros, como as Waffen SS, foram sinais desse carácter ideológico.

Da Segunda Guerra Mundial resultaria o fim do mundo eurocêntrico, quer pelas destruições sofridas pelas potências europeias vencidas e vencedoras – Alemanha, Itália, Grã-Bretanha, França – quer pela consagração, pela Carta das Nações Unidas, de uma Nova Ordem Mundial que implicava o fim dos impérios coloniais europeus. Em contrapartida, emergiram como grandes e únicas superpotências a União Soviética – com o desígnio de estender o comunismo a todo o mundo – e os Estados Unidos da América, que decidiram enfrentar a ameaça de comunização do globo fazendo a contenção da URSS, segundo o guião traçado por George Kennan.

Nascia assim um mundo bipolar onde, por causa das armas nucleares, a guerra passava a ser tabu entre os dois poderes. A Europa estava partida entre zonas de influência e o Kremlin usava os partidos comunistas na sua política exterior e na propaganda.

O conflito acabou com a vitória americana e ocidental por meios de estratégia indirecta que contribuíram para a autodestruição e rendição do regime e do império soviético no tempo de Gorbachev.

Tal como a Contenção de Kennan tinha marcado o começo da Guerra Fria, estruturando a ordem internacional, também Francis Fukuyama, em The End of History and the Last Man, um ensaio sobre a irreversibilidade da expansão do modelo anglo-saxónico de democracia liberal e capitalista, se proporia escrever a bíblia dos novos tempos ou da nova ordem internacional pós-Guerra Fria.

Depois do Fim da História

A Guerra Fria e a sua ordem bipolar, criada e sustentada num modo de fazer a guerra que tornava a guerra total indesejável, ou até impensável porque suicida, acabou nesses anos de 1989-1991.

Seguiu-se um tempo tendencialmente unipolar, de hegemonia norte-americana, com a expansão da ordem liberal democrática. A expansão deste “modelo único” gerou também contestação e uma progressiva multipolaridade – com o despertar e consolidar da China, um regime para-totalitário de Partido Único, e a ofensiva do macro terrorismo jiadista contra a América e o Ocidente, que levou às campanhas mal terminadas do Iraque e do Afeganistão e à afirmação progressiva de poderes regionais: a Rússia, na Eurásia, a Turquia, no Sueste da Europa, a Índia, no subcontinente asiático, o Brasil, na América do Sul.

Estes trinta anos de ordem internacional liberal acabaram no dia 25 de Fevereiro, quando as unidades militares russas invadiram a Ucrânia. O equilíbrio era já instável, com uma série de grandes Estados – a China, a Índia, a Rússia, o Paquistão, a Turquia e a Arábia Saudita – e parte significativa dos Estados africanos e do Médio Oriente a resistirem, de vários modos, à integração no modelo; e outros, bem no coração do Ocidente, como a Polónia e a Hungria, pressionados, discriminados e acusados de “iliberalismo” por várias instituições ocidentais, como o Parlamento Europeu e uma Administração americana refém das causas fracturantes da ala esquerda do Partido Democrático.

Desta vez, a guerra cultural e a guerra político-económica vão levar a uma oposição prolongada e tudo aponta para o regresso dos blocos. Dois Estados poderosos, a Rússia e a China, cerram fileiras e estreitam relações. E a avaliar pela lista de abstenções na votação nas Nações Unidas, uma série de outros Estados importantes vão segui-los.

Para todos eles, globalização económica não significa globalização política: o capitalismo de direcção central chinês, a monarquia religiosa saudita, o nacionalismo da Índia de Modi não parecem muito dispostos, quer a aceitar o modelo democrático liberal como sistema político interno, quer a aplicar sanções à Rússia ou a cortar relações económicas que sejam do seu interesse nacional. E na Europa também há resistências ao federalismo de Bruxelas.

Tudo isto augura e fundamenta uma reorganização da ordem internacional, depois de três décadas da ordem que se seguiu à Guerra Fria. Os alinhamentos parecem, para já, desenhar-se com um hemisfério ocidental, euro-americano, englobando os países da NATO e da EU, contra um eixo Moscovo-Pequim e seus aliados e dependentes mais próximos. No lugar dos antigos “não-alinhados” ficará talvez uma frente de geometria variável que vá adaptando os seus interesses nacionais às linhas de força e às pressões dos núcleos duros dos dois campos.

Entrámos num interregno cheio de incógnitas e perigos. A forma como vamos sair dele, a criação de uma nova ordem de paz e segurança, vai depender do realismo e da verdade com que os dirigentes políticos pesarem as forças em presença e agirem perante elas.

Os dados já estão lançados.