Sempre me disseram que se fosse para aprovar algo polémico ou fazer uma declaração difícil ao país, que tal deveria ser feito em dia de Liga de Campeões, jogo de Portugal ou “dia de Benfica”. Era fundamental apanhar a “arraia miúda”, parafraseando o Presidente Marcelo, entretida e, dessa forma, tudo passa e a vida continua. Sempre me lembraram que somos “um país de brandos costumes” e se a esquerda tiver no poder, então, nem manifestações temos, porque a direita não é dada a essas coisas.

Eu sei que sempre me disseram e eu sei que sempre o fizeram, porém o que estamos a viver não deveria permitir que continuássemos a “assobiar para o lado” e a preferir festas e futebol. Se o pior cego é o que não quer ver, estamos, enquanto sociedade, a insistir em não ver e o resultado não será algo bom.

Esta foi uma semana negra para Portugal. Há alturas em que um acontecimento marca um momento, mas esta é daquelas fases em que, infelizmente, não tivemos só um, mas vários que nos deviam fazer sair do estado de letargia e medo em que nos encontramos. Numa só semana, Portugal assistiu “em festa” ao aprovar de um orçamento de estado desajustado da realidade e que em nada irá contribuir para salvar empresas e famílias; à aprovação, pela terceira vez, da lei da eutanásia um dia depois do SNS não ter conseguido salvar a vida de um bebé; e ao anúncio da subida das taxas de juro na Europa, acompanhado pela promessa de uma segunda subida já no Verão. O que fez Portugal? Foi para os Santos e para a praia, porque há que ver as marchas e celebrar o melhor que o país (ainda) têm: o seu sol e mar.

O caminho para um orçamento condenado

Foi finalmente aprovado o Orçamento de Estado para 2022, ou para o que resta de 2022. Trata-se do mesmo orçamento que deu origem à queda do governo, a eleições antecipadas e uma crise política que não ajudou um país, já ele próprio, em crise. Importa, talvez, recordar que se tratava de um orçamento crucial para um país que, à semelhança do Mundo, vivia uma pandemia sem precedentes, uma crise energética descontrolada e uma inflação que, teimosamente, os políticos continuavam a definir como conjuntural.

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Podemos especular sobre o desejo secreto do Partido Socialista de provocar eleições, depois de um resultado “menos conseguido” nas autárquicas, onde, vencendo, perdeu. Numa tentativa de capitalizar uma direita fragmentada em guerras internas e uma esquerda em declínio e sem soluções. Essa tentação existiu. Acredito que a convicção do momento real do país, e o impacto que as medidas “impostas” pela esquerda iria ter no desequilíbrio orçamental numa conjuntura adversa, também terá pesado nessa decisão maquiavélica de garantir o poder à custa de Portugal. Era impossível negociar à esquerda no estado em que a economia e o país estava, e era tentador arrasar com a direita que se suicidou em lutas internas por um poder que afinal não existia.

Independentemente de todas as análises, a realidade foi a de um país colocado em suspenso, no meio de uma crise grave e onde os portugueses viram-se sem governo (talvez o único lado positivo de todo o processo) e sem orçamento. Mais de seis meses depois, chegámos, finalmente, à discussão do malfadado documento, num enquadramento político muito diferente, mas, acima de tudo, num enquadramento económico e social dramaticamente distinto. Hoje, vivemos uma guerra com efeitos devastadores do ponto de vista humano e económico, um agravamento real da crise energética, uma consciência que, afinal, a inflação era (e é) um problema sério e fora de controlo e uma pandemia que teima em não terminar e que continua a condicionar a economia e a vida das pessoas.

Um parlamento populista e de géneros

Perante este enquadramento, esperava o país duas coisas: um governo responsável que apresentasse uma proposta de orçamento adaptado para uma realidade ainda mais difícil e desafiante que o cenário inicial, e uma oposição que oferecesse ao documento contributos sérios e com impacto positivo na vida das pessoas. O país esperava isso, porém…mais uma vez o país teve outra coisa diferente. O governo, no meio de uma guerra e de um cenário económico muito distinto decidiu apresentar o mesmo orçamento e insistir numa visão cor de rosa da economia com crescimentos recorde e inflação controlada. A oposição decidiu debater temas laterais e fazer exigências impossíveis de forma populista e irresponsável.

No momento em que o país sentia uma inflação a caminhar para os 10% (sim, já o escrevi e reafirmo: vamos lá chegar), com os preços a amputarem fortemente o poder de compra e a capacidade dos portugueses, com as empresas a começarem a sentir esta nova vaga nas suas contas, os nossos políticos resolvem debater baixas menstruais e úteros. Não está em causa o tema, mas a pertinência do mesmo quando há portugueses em enormes dificuldades e os outros avançam para esse mesmo caminho. Podia ter sido debatido um plano para uma independência energética? Podia, mas não se fez. Podíamos ter apresentado propostas sérias de apoio às famílias para um cenário de aumento de taxas de juro, continuação do aumento da inflação e perda real de poder de compra? Podíamos, mas não o fizemos. Era importante existirem propostas reais de redução da carga fiscal nas empresas e ajudas impactantes para que se conseguisse atravessar com o mínimo de falências possíveis a grave crise que temos pela frente? Era, mas preferiu-se o caminho da ilusão.

Perante tudo isto, o tema quente do debate foi se devemos adotar a expressão do PAN ou a do Chega, se a nossa sociedade tem mulheres ou seres humanos com útero. Apenas uma completa ausência da noção da realidade que o país atravessa pode justificar este afastamento entre o que interessa aos portugueses e o que, afinal, interessa a parte do parlamento. Não deveria ser possível que a discussão do orçamento não fosse marcada por debate sobre a economia, fiscalidade, e com elevação serem apresentadas propostas e um respeito pela realidade dos portugueses. Em vez disso, os ecos jornalísticos do nosso parlamento são outros, que, de forma politicamente correta, vão contribuindo para o afundar de Portugal.

A esquerda precisa de lutas, vive do conflito e da divisão da sociedade. Se há 100 anos atrás, a luta de classes era a sua bandeira, com o crescimento da sociedade com base na economia, a esquerda sente necessidade de criar novos fatores de crispação. O “útero” é a nova luta de classes da esquerda, e se nada for feito, se o politicamente correto e o medo não for travado, podemos correr o risco de se por em causa o que realmente é importante para Portugal e para os portugueses.

Quando a morte importa mais que a vida

Nesta última parte, gostava de começar por alguns conceitos e factos. O nosso país, atravessa um inverno demográfico grave, aliás à semelhança da Europa envelhecida, que, não só, condiciona o nosso futuro enquanto sociedade, como pressiona, de forma séria, o nosso sistema de segurança social. O SNS português foi colocado num cenário horrível com a Covid, tendo os seus profissionais e equipamentos sido levados ao limite (ou mesmo para além do limite). Nos últimos 24 meses, muitos portugueses morreram ou viram a sua situação médica agravar-se, não pela Covid, mas porque muitos exames e operações não foram realizadas devido à pandemia. Finalmente, acredito que todos concordamos que uma vida humana não têm preço. Vejo diariamente o esforço de milhares de pessoas, voluntários e cidadãos anónimos a contribuir para salvar vidas de crianças na Ucrânia, numa demonstração clara desta mesma premissa sobre o valor incalculável da vida de um ser humano.

Perante tudo isto, na mesma semana, assistimos o parlamento (incluindo a “direita” representada pela Iniciativa Liberal) a aprovar uma lei que permite ao estado matar a pedido, praticamente em simultâneo com a morte de um bebé num hospital do SNS que apresenta falhas graves nas escalas e serviço de obstetrícia. Estamos a ver um país que prefere investir na morte, a investir no salvar vidas, e faz isso aprovando uma lei que recebeu “condenações” de todas as ordens profissionais envolvidas no processo e da comunidade civil, a mesma que o Presidente da República afirma, no seu discurso do dia de Portugal, que é fundamental para o país. Senhor Presidente, olhe para a arraia miúda e defenda a vida dos portugueses. Defenda um verdadeiro investimento nos cuidados paliativos, defenda um verdadeiro investimento no SNS, na mobilidade dos profissionais de saúde, numa oferta igual para todos os portugueses independentemente de onde vivem. Não é possível ouvir o responsável da Ordem dos Médicos afirmar que situações como a das Caldas da Rainha possam vir a ser normais com o Verão e não nada fazer.

Que os Santos nos salvem 

Como afirmei no início, a tática de aprovar barbaridades em momentos em que o povo está distraído resulta. Desta vez, o calor, as praias e os feriados permitiram branquear uma semana que os portugueses vão pagar bem caro no futuro próximo. É importante que se fale verdade, é importante que se criem políticas sérias que protejam as pessoas, é fundamental que se defenda a vida e não se patrocine a morte.

A 15 de Novembro de 2021, escrevi, aqui no Observador, um artigo (Crise Económica, Inflação e a Importância de dizer a Verdade) onde afirmei que as taxas de juro iriam subir. Não vou repetir o argumentário, mas gostaria de recordar apenas a conclusão: o imperativo de criar medidas que protegessem as pessoas e a importância de dizer a verdade. No cenário atual, a probabilidade de não cumprimento do pagamento de empréstimos por parte das famílias é real; as dificuldades de tesouraria das empresas e a redução do consumo é real (podemos ter um adiamento por via do turismo no Verão, mas Setembro será cruel); o agravamento da perda do poder de compra e a probabilidade de aumento de preços é real. Ignorar tudo isto é condenar uma geração inteira a juntar-se à maior e mais verdadeira pandemia que o mundo atravessa, e aquela que todos se recusam a ver: a pobreza. Infelizmente, tenho muitas dúvidas que este parlamento nos salve… talvez os Santos.