1 O comprimido vermelho

Será possível não nos lembrarmos da voz com que Morpheus oferece a Neo uma escolha? O comprimido azul garantia o regresso à vida anterior de ignorância tranquila; o comprimido vermelho permitiria conhecer a verdadeira realidade. Neo não hesita e acaba por descobrir o deserto do real, e de como a humanidade está ao serviço da inteligência artificial num Matrix que a mantém sob engano.

A ideia é tão cativante que dificilmente poderia escapar a utilizações políticas, e foi isso que aconteceu naquilo a que habitualmente se designa como manosfera: no mundo dos movimentos masculinistas (quase sempre digital), a palavra “redpill” remete para a escolha que permite compreender como a narrativa feminista se apoderou do mundo para subjugar os homens e destruir a sociedade. Ao compreendermos como tal aconteceu (tomando o comprimido vermelho), compreenderíamos a verdadeira realidade.

Há aqui uma dimensão conspirativa que nos deixa imediatamente de sobreaviso, mas não é, na verdade, difícil de compreender por que razões terá florescido. Pensemos na consagração do termo “masculinidade tóxica” e da ideia maniqueísta de que a feminilidade é sempre boa e a masculinidade é sempre má; ou na publicação de livros como The end of men e Detesto os homens. Há, de facto, uma ocupação do espaço público por uma linguagem e um discurso que, em sentido contrário, seriam considerados “discurso de ódio”.

A título de exemplo, consideremos Suzanna Danuta Walters, professora de sociologia e diretora do Women’s, Gender, and Sexuality Studies Program na Northeastern University. Em 2018, Walters perguntou no The Washington Post: “Why can’t we hate men?” Tratava-se de uma pergunta retórica e a autora termina o artigo deixando claro o que os homens deveriam fazer:

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“Curvem-se para que nos possamos levantar sem sermos derrubadas. Comprometam-se a votar apenas em mulheres feministas. Não se candidatem a cargos públicos. Não assumam qualquer cargo. Afastem-se do poder. Nós tomamos conta de tudo. E saibam que as vossas lágrimas de crocodilo não serão mais enxugadas por nós. Temos todo o direito de vos odiar. Vocês fizeram-nos mal. #BecausePatriarchy. Já é mais do que tempo para a Equipa Feminista jogar. E ganhar.”

É assim tão surpreendente que posições deste género conduzam a narrativas de tipo “redpill”? Em bom rigor, a experiência social e cultural a que fomos sujeitos com a chamada “revolução sexual” desarticulou dinâmicas com milhares de anos e não é, por isso, inesperado que homens e mulheres estejam em dificuldades para reencontrar um lugar no novo mundo e, em particular, para articular um aspeto fundamental para o futuro da humanidade: como estabelecer relações pessoais ou aquilo que, em linguagem antiga, se chamava “constituir família”?

2 Celibatários involuntários

É possível que o melhor episódio de Black Mirror seja o especial de Natal de 2014, “White Christmas“. O criador da série (não aconselhada para quem sofre de algum tipo de luditismo), Charlton Brooker, tem sido considerado um visionário por conciliar uma perceção astuta das ânsias humanas com a projeção mais apurada das inovações tecnológicas. No caso de “White Christmas”, Brooker imagina um homem mais velho a aconselhar homens jovens no processo de sedução através de ferramentas tecnológicas que o mantêm em contacto (bem como ao restante grupo) com o orientando. No vocabulário da manosfera, esta pessoa seria uma espécie de pickup artist (PUA), o grupo uma pickup community e o orientando um incel.

O termo incels (diminutivo para “involuntary celibats”) é usado para referir jovens adultos que gostariam de estar numa relação física e emocional com uma mulher, mas que não conseguem vingar no “mercado das relações”. A sua frustração é muitas vezes canalizada contra as mulheres, acusadas de os condenarem a uma solidão atroz. No artigo “Men are in trouble. ‘Incels’ are proof”, a jornalista Christine Emba identifica o problema:

“As suas conclusões são erradas, para dizer o mínimo. Até as mulheres mais atraentes passaram pela experiência de estar solteiras quando preferiam não estar, e as mulheres não são obrigadas a ter relações, muito menos sexo, com alguém. Estes homens estão obviamente a operar sob uma nuvem negra de ilusão que se perpetua. Mas devíamos estar atentos ao que este nível de desespero nos está a dizer: os incels são o rosto de uma geração de homens em dificuldades.”

Não se trata, na verdade, de um problema só masculino: os dados revelam que o número de casamentos tem sofrido quedas substanciais e inéditas e muitas mulheres expressam igualmente insatisfação por não conseguirem encontrar companheiro. Mas, de acordo com dados recolhidos pelo Pew Research Center em 2019,

“os homens que não namoram têm duas vezes mais probabilidades do que as mulheres de afirmar que uma das principais razões para não estarem à procura de alguém é a sensação de que ninguém estaria interessado em sair com eles (26% contra 12%).”

Com a crescente afirmação feminina, os jovens do sexo masculino revelam problemas de confiança, agravados pelo movimento #MeToo, que conduziu a receios em adotar comportamentos antes entendidos como naturais. Como um entrevistado diz a Emba, em Rethinking Sex:

“Eu nunca abordaria uma mulher sentada sozinha num café. Sinto que isso é… é uma espécie de movimento agressivo nas circunstâncias atuais. Quase nunca vejo isso. Mantemo-nos na nossa faixa.”

Esta dimensão relacional acresce aos fatores que vimos na semana passada e que têm dado forma à chamada crise de masculinidade. E no centro desta crise estará a ausência de referências masculinas que ajudem os jovens no seu processo de afirmação. Em Men are lost, Emba recorre ao trabalho do antropólogo David Gilmore para recordar que “os rapazes tinham geralmente de ser introduzidos na virilidade e na masculinidade por outros homens. E esse parece ser um elo fundamental que falta hoje.”

O problema é que essas referências masculinas têm vindo a desaparecer. Em Lisboa ainda restam, como relíquia, clubes reservados a homens, mas, nos Estados Unidos, o problema enquadra-se em termos familiares: as famílias monoparentais (sem pai) têm estado a aumentar continuamente e nunca como hoje os pais têm sido retirados da dinâmica familiar. Mas as consequências estão identificadas: “Menos faculdade, menos trabalho e mais prisão para os jovens do sexo masculino que crescem sem o seu pai biológico”.

Com a falta de referências masculinas e sem um reconhecimento político dos seus problemas, os jovens têm-se retirado da esfera pública e passado cada vez mais para o mundo digital masculino.

3 Uma terra só deles

Designados como NEETs (sem estudar, trabalhar ou estagiar), estes jovens estão desde cedo familiarizados com o mundo digital: os jogos de computador já não são uma experiência partilhada fisicamente, mas feita no mundo virtual e sem fronteiras, e acompanhados por espaços de conversação que se tornam rapidamente políticos (o Discord é o mais popular desses espaços). É nesse mundo digital que floresce a chamada manosfera, um espaço para movimentos masculinistas e figuras de influência que oferecem, acima de tudo, empatia: reconhecem os problemas desses jovens e dão recomendações, mais ou menos eficazes e mais ou menos tóxicas.

Entre estas últimas figuras estará certamente Andrew Tate, com uma popularidade crescente entre os rapazes mais novos; mas entre os primeiros estará, por exemplo, Jordan Peterson: um intelectual controverso, mas que aparece quase como uma figura paternal que oferece orientações básicas. Regras como “levanta a cabeça e endireita as costas” e “arruma o teu quarto”, que constam do livro 12 Regras para a Vida, são indicações básicas de sobrevivência e sucesso social – simplesmente faltam elementos paternais a desempenhar este papel. Mais do que criticar estas figuras, devemos perguntar, como Emba, por que razão têm tanta influência:

“O que os críticos não percebem é que, se não houvesse nada de válido no cerne destas ideias, elas não teriam este tipo de popularidade. As pessoas precisam de códigos para saber como ser humano. E quando esses códigos não são fáceis de encontrar, aceitam o que lhes é oferecido, independentemente do que lhes esteja associado.” (itálico meu)

Na verdade, tudo isto já estava nos Antigos. Não ensinou Aristóteles que a educação é fundamentalmente imitação (mimesis)? E Jesus, que devemos viver sendo exemplos de virtude? Parecemos acreditar, hoje, que devemos fazer o que quisermos; os antigos sabiam que devemos imitar os mais virtuosos.

Deixemos, por agora, esta questão antropológica tão importante, para nos concentrarmos no verdadeiro problema da manosfera: ele reside nas suas dimensões mais obscuras e que estão retratadas no livro A revolta do homem branco, da jornalista Susanne Kaiser (sim, a introdução é um manifesto político e constitui um bom exemplo do mau trabalho que o jornalismo tem feito, mas os capítulos descritivos valem a pena). Nas franjas da manosfera, onde o filme Fight Club se tornou uma referência, encontramos muita violência, e que não é só verbal: há já uma longa lista de atos violentos da revolução incel e que não se fica pelo espaço norte-americano.

E à semelhança dos movimentos separatistas feministas mais extremistas, também estas franjas têm falado de uma terra só deles – e recorrido, até, aos mesmos recursos tecnológicos. É o que acontece com a defesa dos úteros artificiais: se algumas feministas veem esta inovação assustadora como a possibilidade de se libertarem do fardo da maternidade, também os masculinistas mais radicais a apreciam. Afinal, os úteros artificiais permitiriam tornar as mulheres supérfluas.

Como chegamos até aqui? Ao ponto de os movimentos mais extremistas dos dois lados considerarem que o outro sexo é dispensável? E como podemos corrigir o que foi feito? Estas são, provavelmente, duas das questões mais importantes do nosso tempo.

PS: Farei uma pausa nas minhas crónicas durante o mês de dezembro, voltando no início do novo ano. Deixo a todos os leitores, e às suas famílias, votos de um Santo Natal e boas entradas em 2025.