A inflação elevada que registamos deve trazer uma nova linguagem ao debate sobre a situação económica e social do país. Até agora, com uma inflação próxima de zero, podíamos dar-nos ao luxo de não necessitar de distinguir valores nominais de valores reais. A partir de agora não. Temos a obrigação de analisar as variáveis económicas em termos reais que é aquilo que impacta na vida das pessoas. É natural que a guerra da Ucrânia tenha um impacto negativo na vida de todos os portugueses. É um sacrifício, incomparavelmente menor que o vivido pelos que estão na guerra ou próxima dela. Mas em Portugal, os dados do INE mostram que o impacto nos trabalhadores do setor público é maior do que nos do setor privado. Obviamente que a incidência da inflação nos mais pobres é muito maior do que nos das classes médias ou altas dado terem maior propensão a consumir, nomeadamente produtos alimentares.

É preciso dizer com toda a clareza que quer os salários (reais) dos funcionários públicos quer as pensões serão cortados em 2022. Em termos médios a variação destas variáveis, mesmo incorporando o pacote recentemente anunciado pelo governo, é muito inferior à taxa de inflação que este ano se estima seja entre 6% e 7,4%. Esta política, estranha para um governo socialista, e a que podemos com propriedade chamar de austeridade, é defendida por poucas pessoas com base numa variedade de argumentos que analisarei de seguida.

O primeiro é mesmo dos defensores da austeridade, como forma de dar futuro a este país. É o argumento da desvalorização interna, para dar competitividade ao país. Se não conseguimos ganhos de produtividade, se não podemos desvalorizar a nossa moeda (porque já não a temos) desvalorizemos os custos do trabalho. Esta é a perspetiva do que posso chamar como os atuais “vencidos da vida” e defendida sobretudo por certos economistas que não se reveem neste governo. Porém, note-se que apesar de António Costa em teoria não a defender, na prática os baixos salários na função pública, não só contradizem o objetivo de António Costa de melhorar o peso dos salários no PIB, como só pode alimentar a emigração dos nossos melhores, reforçando ainda o nosso fraco crescimento económico através da desqualificação do capital humano.

O segundo é o do impacto nas contas públicas, nomeadamente no saldo primário (sem juros). Alega-se que sem os cortes salariais na função pública desta magnitude pode pôr-se em causa a sustentabilidade das finanças publicas. Não é verdade. Há cinco meses atrás, aquando da apresentação do orçamento do Estado argumentei que com os dados disponíveis na altura havia uma clara margem para o governo aumentar os salários o dobro do aquilo a que se propunha: em vez dos 0,9%, deveria aumentar 1,8%. O governo argumentava, no Relatório do OE2022, que o aumento remuneratório de 0,9% corresponderia a um aumento nominal da massa salarial superior dadas as progressões e promoções na carreira. Acontece que os dados da execução orçamental de Julho das despesas em pessoal do Estado  mostram que as despesas em pessoal do Estado estão praticamente constantes, as das administrações locais estão a aumentar quase 10% (em parte, desconhecida, explicada pela descentralização em curso) , e  as da administração regional 5,4%. Mesmo com o efeito da descentralização e do cheque de 125€ por adulto e 50€ por dependente, agora anunciado pelo governo, o aumento da massa salarial das administrações públicas será cerca de metade da taxa de inflação para este ano. Corte salarial significativo, portanto. Necessário? Tudo indica, com os dados atuais, que mesmo com o pacote de medidas, agora anunciado pelo governo, o objetivo para o saldo orçamental (primário) e global será ultrapassado. Não havia, pois, necessidade.

O terceiro é o impacto na despesa com juros. Os juros estão a subir e vão subir novamente com as decisões esperadas na nova reunião do BCE em Outubro deste ano. É importante perceber que a evolução dos juros da dívida pública portuguesa depende da nossa trajetória de política orçamental (défice e dívida), mas também da política do BCE. Aquilo que temos de fazer, e estamos a fazer, é ter uma trajetória credível de redução do peso da nossa dívida pública. Não precisamos, nem devemos, ser o melhor aluno da turma que vai para além do que é necessário (a quem é que eu já disse isto?…).  Mais, vamos ser penalizados por sermos o “melhor aluno”. A política de expansão quantitativa que aumentou o balanço do BCE de 2,21 biliões de euros em 2014 para os 8,76 biliões neste verão, usou uma regra na aquisição de obrigações dos países que tinha a ver com uma “chave de capital” fixa (proporção de cada país no capital do BCE). Porém, agora a nova política de redução do balanço do BCE, através de uma recompra apenas parcial dos títulos que alcançarem agora a maturidade, será feita de forma mais discricionária “para evitar a fragmentação da zona euro”, assim dizem os governadores. Ora o que sabemos das decisões europeias é que quando reina alguma discricionariedade, que é o caso actual, funciona a lógica do poder dos mais fortes. Quem tem mais poder no BCE, para além da Alemanha, é desde logo a França, que detém a presidência, e a Espanha, com a vice-presidência. Sermos muito bons alunos vai levar o BCE a premiar a França e a Espanha, por razões de poder, a Itália e a Grécia por razões de necessidade, neste processo de recompra de títulos. O muito bom aluno, não irá necessitar de tanto apoio do BCE.

Finalmente, há o argumento usado pelo primeiro-ministro de contribuir para uma espiral inflacionista, os chamados efeitos de segunda ordem que podem alimentar a inflação futura. Este, é o único, dos quatro argumentos acima referidos que justifica, apenas parcialmente, subidas salariais e de pensões abaixo da taxa de inflação. Mas não justifica uma discrepância da magnitude a que estamos a observar.

Temos de ver reduzido o nosso nível de vida, sobretudo os menos necessitados e vulneráveis, devido às consequências da guerra da Ucrânia? Certamente que sim. É desejável esta magnitude de cortes salariais em 2022 e eventualmente em 2023? Não, se queremos compaginar sustentabilidade de finanças públicas e qualidade dos serviços públicos, na saúde e não só.

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