Há cinco anos os partidos eurocépticos e populistas, de direita ou de esquerda, elegeram um quarto dos deputados do Parlamento Europeus. Era um aviso – mesmo sendo estas eleições favoráveis à expressão do “voto de protesto”, a maré já ia alta. Havia que, com humildade, procurar perceber o que criava tanta irritação e cepticismo entre os europeus.
Mas não. Humildade é palavra que não faz parte do léxico de Bruxelas. Se havia dúvidas sobre o processo de integração europeu, a única resposta que sempre se soube dar para aqueles lados foi “mais Europa”. E com a arrogância tecnocrática de sempre, sob a forma de planos e mais planos que nada diziam à generalidade dos cidadãos europeus.
Depois passaram mais dois anos e aconteceu o Brexit. O “impossível” Brexit. O Brexit que as sondagens não previam. A seguir veio Salvini. E já havia Orban. Sem esqueceu os polacos.
Estamos em Maio de 2019 e tudo indica que a maré eurocéptica suba ainda mais. Pode agora ser suficiente para eleger cerca de um terço dos deputados. Nalguns países, e países importantes, serão estas forças as que recolherão mais votos.
E qual está a ser a reacção dos velhos partidos centristas, da burocracia de Bruxelas e das elites europeias?
Primeiro que tudo, usar a arma do medo, agitar o fantasma da extrema-direita e pedir para que se cerrem fileiras e que venham mais votos e “mais Europa”. Ainda agora foi a vez de António Costa ir juntar a sua voz à de Emmanuel Macron e subscrever a sua “visão” de uma União Europeia que tende a ser exactamente aquela que os eleitorados estão a gritar que não querem.
Depois, fecharem-se na concha do seu incorrigível autismo. No Politico leio que este resultado será o melhor de sempre dos populistas (como quem diz: não se preocupem); na Antena Um ouço o embaixador português em Londres não se deve “sobrestimar a vitória do Partido do Brexit nas eleições europeias” (o que poderá recolher mais de 30% de votos de eleitores furiosos por o resultado do referendo ainda não ter sido cumprido); no The Times deparo-me com uma entrevista de um lunático Guy Verhofstadt (líder dos liberais no Parlamento Europeu) em que ele acha que falar de Farage e do apoio que ele tem é… falar da Rússia.
Estamos no domínio do delírio. A única linguagem que parece ser escutada em Bruxelas é aquela que fala em “aprofundar a União Europeia”, baseada naquilo a que recentemente António Barreto chamou essa “ideia fixa de que existe uma identidade europeia, quando é evidente que existem identidades nacionais”. Não por acaso a consequência desse pensamento – o achar que tudo se resolve sempre com “Mais Europa” – tem vindo a ter sempre o mesmo resultado – mais nacionalismo.
Claro que há quem fale de maneira diferente.
“Que Europa queremos? Uma Europa que seja europeia. Se for confiada a organismos tecnocratas mais ou menos integrados terá uma história sem futuro”.
Não foi Salvini que disse isto. Foi De Gaulle há mais de 50 anos. Isto porque “não se integram povos como se fossem um puré de castanhas”.
“Tentar acabar com as nacionalidades e concentrar o poder no centro de um conglomerado europeu será muito perigoso. A Europa será mais forte precisamente porque a França é a França, a Espanha é a Espanha e o Reino Unido é o Reino Unido, cada um destes países com os seus costumes, tradições e identidade”.
Também não foi nenhum Victor Orban que fez este discurso. Ele foi feito há mais de 30 anos por Margaret Thatcher em Bruges. Tal como De Gaulle, também ela pensava que seria uma loucura procurar encaixar todos os povos numa espécie de “kit identitário europeu”.
De Gaulle opôs-se no seu tempo ao federalismo de Jean Monet, Thatcher ao federalismo renovado de Jacques Delors e à sua famosa bicicleta, mas hoje podemos constatar, com mágoa, que a máquina burocrática, legislativa, reguladora e centralizadora que estes puseram em movimento tem conseguido trucidar mesmo estadistas tão duros e determinados como o herói da Resistência Francesa e a Dama de Ferro. E com isso montar uma União Europeia que, lá por ter um Parlamento Europeu para o qual os cidadãos são chamados a votar entre esta quinta-feira e domingo, não passou por isso a ser uma democracia. Porventura nem uma caricatura de uma democracia.
Não creio exagerar nos termos que utilizo. De facto, será que podemos levar a sério eleições em que apenas votam um terço dos eleitores (em Portugal provavelmente ainda menos)? Que podemos levar a sério eleições em que, país a país, quase só se debateu política doméstica quando as eleições são “europeias”? Que podemos levar a sério umas eleições em que o debate entre os candidatos à liderança da Comissão Europeia se realizou em inglês, a língua do país que, em princípio, está de saída da União Europeia (ficando nela apenas a República da Irlanda de entre os falantes de língua inglesa)? Que podemos levar a sério umas eleições para deputados que, na realidade, nem sabemos bem o que fazem?
Por mais voltas que dêmos ao texto, toda a política ainda é local, o espaço da democracia ainda são as nações, o lugar onde se prestam contas nunca deixou de ser os parlamentos nacionais. O resto é ficção – pior: o resto é uma utopia tendencialmente autoritária, porque gera poderes que os cidadãos não controlam.
Peço-vos um favor: leiam este texto de Henrique Burnay no Observador. Ele trabalha em Bruxelas e provavelmente não concorda com o meu cepticismo, mas a lista de temas relevantíssimos que aborda, e que estão a ser decididos neste momento longe de nós, por gente que não conhecemos nem controlamos, só torna mais pertinente o meu ponto de vista de que este caminho não pode ser o nosso caminho.
Sim, o nosso caminho não pode ser, como preveniram De Gaulle e Thatcher, o de entregar cada vez mais poderes a uma tecnocracia apátrida e autossuficiente, como fizemos nas últimas décadas.
Mas o nosso caminho também não pode ser o de procurar compensar isso “elegendo” representantes que não sabemos o que andam a fazer porque não é ali, no Parlamento Europeu, que vivemos a política e sentimos a democracia. Nós, cidadãos da Europa, não conhecemos aqueles imensos, infinitos corredores – mas os lobistas conhecem-nos muito bem. E sabem o que andam a fazer. Ali reinam eles, pois nós estamos muito longe e andamos muito distraídos e muito iludidos.
Resta-nos o nível dos governos, aqueles a quem conseguimos pedir contas. Não por acaso que tanto De Gaulle como Thatcher lutaram inúmeras vezes para que a regra da unanimidade – que é também a que melhor protege os pequenos países – fosse a regra por norma no funcionamento da União. Também essa batalha se foi perdendo com o tempo e os sucessivos alargamentos.
É por isso que eu, detestando a retórica anti-imigrantes de Salvini, acabo por considerar que o seu apelo a uma Europa do “bom senso”, com mais atenção às identidades nacionais, é no limite menos perigoso do que o utopia tecnocrática, “visionária” e vanguardista de um Emmanuel Macron que quer impor aos europeus a União Europeia que eles rejeitam sempre que lhes dão oportunidade votar.
Estão chocados? Também eu. Nunca pensei que a cegueira e o autismo das elites federalistas chegassem ao actual ponto de delírio e teimosia e me levassem a rejeitá-la de forma tão epidérmica.
Quanto ao facto de nada disto ter sido sequer aflorado na nossa campanha eleitoral doméstica isso não me surpreende. Primeiro, porque esta terá sido uma das piores campanhas eleitorais de sempre, senão a pior, a mais rasteira, a mais sem chama, a mais previsível e aborrecida. Depois, porque as campanhas dos grandes partidos sempre foram sobre temas nacionais e esta não fugiu à regra. Por fim, porque a Europa pareceu reduzir-se, para os nossos candidatos, a uma discussão sobre quem trazia mais fundos ou sobre quem evitara mais sanções, um espectáculo pobre e penoso.
Mas, como diria o outro, é a vida. Tomemos ao menos consciência que podia e devia haver outra vida.
Resta-nos assim votar o melhor possível. Até porque houve por aí caras novas a defender as suas ideias com frontalidade, sem demagogia e sem medo, colocando na agenda o tema tabu do liberalismo. Possam elas ter uma oportunidade.
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