Aqui há uns anos, estava um ministro português no meio de uma reunião com colegas europeus quando sussurra para o lado:

– Mas esta não é a posição de Portugal.

Da cadeira atrás, respondem-lhe:

– É sim. Há vários anos que a posição portuguesa é essa.

– Mas não pode ser, não é a que nos interessa.

– Agora é tarde de mais, senhor ministro.

E, claro, a posição portuguesa manteve-se a que tinha sido até aí: a errada para Portugal.

Neste episódio, real, a explicação é simples. Ainda que o tema tivesse, sobretudo, impacto económico e nas nossas exportações, tinha implicações com regras que são da responsabilidade da Justiça, daí que quem tenha negociado o processo tenha sido um ministério, mas quem o discutiu no final, em Bruxelas, foi o ministro de outro. Pelo caminho, entre os dois departamentos do governo nunca houve grande conversa sobre o assunto e o interesse português foi burocraticamente definido por um funcionário sem instruções.

O dia-a-dia de um político divide-se entre o que tem de fazer e o que quer que o país saiba que faz. Obviamente, podendo, a maioria escolhe o que quer que o país saiba que faz. Por vaidade, naturalmente, mas também por elementar sobrevivência. E, no caso, o tema dificilmente faria capas de jornais.

Pelo contrário, a política europeia é, e deve ser, pouco excitante. Para fazer acordos diários entre 28 países é preciso paciência. É preciso negociar no Conselho, fazer aliados no Parlamento, convencer a Comissão, e ceder um pouco por todos os lados. Uma maçada com pouco potencial para soundbytes. O resultado é que, feito assim, tudo isto parece passar-se lá longe e não ter nada que ver connosco. O problema é que tem.

Nos últimos dias, a guerra latente entre os Estados Unidos e a China foi oficialmente declarada. Desta vez, ao contrário do que aconteceria no tempo da Guerra Fria, o Presidente americano não avisou Bruxelas, ou Berlim, antes de disparar. E também não é evidente onde é que a Europa está. Claro que é suposto estar do lado de cá, do Ocidente. Mas não é óbvio para todos que os interesses dos americanos sejam exactamente os nossos. E, sobretudo, que todos os países europeus vejam as coisas dessa maneira. A “Europa” da União Europeia, nesta como noutras matérias, tem interesses divergentes cá dentro, mas só tem relevância se tiver uma posição razoavelmente comum lá fora. E isso negoceia-se.

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Se a China importa, e muito, a relação com a Rússia ou os Estados Unidos não importa menos. Ou a energia e o clima, as migrações e os refugiados, a construção da União Económica e Monetária, a política agrícola de que já ninguém fala, o investimento na investigação e inovação, a quantidade e os destino dos fundos europeus ou a economia digital e o futuro do emprego. A lista é extensa e as alternativas também.

Na energia, a partir do momento em que as alterações climáticas se juntaram à segurança, a política energética europeia mudou radicalmente. Tornou-se  mais central, abrange mais áreas e, sobretudo, é mais complexa. Claro que as preocupações ambientais têm de fazer parte desta agenda, mas isso pode ser feito com ou sem neutralidade tecnológica (politicamente escolhendo, ou não, quais as tecnologias e as indústrias que vão vingar), pode ser com mais ou menos custos para as empresas, mais depressa ou mais devagar. São escolhas.

Nas finanças e na banca as mudanças não são menores. A ideia de que a Europa precisa de uma governação comum da política económica tem feito caminho. Cada vez há mais integração, mais instrumentos para fiscalizar a política dos Estados Membros (utilizados de forma diferente conforme o peso do Estado em questão) e uma estratégia de exigir redução do risco da banca, a um ritmo e segundo regras que não interessam da mesma maneira a todos, antes de aceitar partilhá-lo. O impacto disto em Portugal ou na Finlândia não é, obviamente, igual.

Na mesma linha, a discussão sobre os impostos. Queremos que as decisões sobre fiscalidade continuem a ter de ser unânimes, ou nem por isso? Aceitamos mais impostos europeus para financiar políticas europeias e benefícios europeus? E aceitamos que os Estados Membros usem a política fiscal para fazer concorrência uns aos outros, ou não? Portugal tem dito que sim.

A defesa, que era tema fora dos Tratados, agora entra nas discussões com toda a normalidade. Sem (a maioria) pôr em causa a NATO, fala-se abertamente em defesa europeia. Por enquanto é apenas cooperar e criar capacidades comuns, mas nada se faz sem um primeiro passo.

A crise dos refugiados e toda a discussão sobre imigrações parece ter sido isso mesmo, uma crise, mas não foi. Os que vinham pela Turquia, deixaram de vir, mas passaram a chegar outros, de outros lugares. Pela Líbia, para Itália, primeiro; por Marrocos, para Espanha, agora. Enquanto houver guerras, gente com fome e gente com esperança, a pressão vai-se manter.

E, a propósito da esperança dos outros, como é que é com os alargamentos? Vamos ter de decidir se continuam parados ou se retomamos. Com os Balcãs, para começar, e depois, um dia, teremos de dizer a verdade à Turquia. Ou aos europeus.

Na economia digital há dois óptimos argumentos para a “Europa” intervir: quase tudo é potencialmente transfronteiriço, e há poucas regras nacionais já estabelecidas. Ou seja, há pretexto e oportunidade para a Europa legislar. Mas como? Os dados valem mais que ouro, a privacidade é um bem que se negoceia, as grandes empresas digitais são estrangeiras. Que regras é que queremos ter? Se formos capazes de fazer como com o Regulamento Geral de Protecção de Dados (o RGPD que tantos emails gerou) e criar regras europeias que o resto do mundo segue, a Europa tem vantagens competitivas. Se as regras globais forem as dos outros, nós seguimo-las e as nossas empresas também. E isso tem um preço.

Falando de economia, paira no ar um conceito: campeões europeus. O que a Europa precisaria, dizem sobretudo em Paris e Berlim, é de grandes empresas europeias com escala global. O que não acrescentam mas é evidente é que essas empresas costumam ser, lá está, francesas e alemãs. Há uns meses, Merkel e Macron empenharam-se para que uma decisão da Concorrência europeia fosse nesse sentido. Falharam, mas não é certo que tenham desistido. Queremos mudar de regras?

Há quem diga que o futuro da Europa tem de ser a inovação. Sermos sempre mais competitivos porque somos melhores (já que mais baratos não queremos ser). Mas os americanos investem muito mais em investigação e inovação, e as empresas americanas nascem, morrem e financiam-se muito mais depressa. Ao mesmo tempo que os chineses já fazem muito mais que copiar.

E assim voltamos ao princípio. À América e à China. É tudo isto, e muito mais, que nos próximos anos se vai discutir no Conselho (entre os governos dos Estados Membros), na Comissão Europeia e no Parlamento Europeu. Achar que isto é irrelevante ou que não temos nada a dizer é um erro monumental. Muito maior do que o do ministro que chegou a Bruxelas sem saber que a posição portuguesa era a que não interessava a Portugal.

Consultor em assuntos europeus