Partamos deste princípio: a proteção da saúde, assim como a educação, são direitos humanos, mais do que meros serviços. Qualquer país que queira ser respeitado e ter lugar entre aqueles que prezam a dignidade da existência humana deve ter vergonha de si próprio se estes dois investimentos nas pessoas não forem acautelados. Nenhum governante terá feito um bom trabalho se não tiver acrescentado um ponto nesse sentido. Quem não concorda que a proteção da saúde é um direito humano pode sair já neste parágrafo, porque provavelmente não vai concordar com mais nada e escusa de perder o seu tempo.
O segundo ponto é este: todos nós pagamos impostos por várias razões e uma das principais é termos cuidados de saúde quando nós (e os nossos!) precisarmos. E todos, efetivamente, pagamos impostos. Se os pagamos na proporção certa é outra conversa. Um simples café que se toma tem lá o IVA incluído. E o IVA é o imposto que mais rende ao erário público. É por isso que cada euro confiado ao Ministro das Finanças deve ser cuidadosamente gasto a fazer o melhor pela saúde dos portugueses, com transparência, eficácia e a melhor eficiência possível. Cabe-nos a todos estar atentos, mas cabe à Assembleia da República (que tem direito de acesso a todos os dados e toda a informação) vigiar. É assim a regra democrática. O problema é que para os deputados do PS está sempre tudo bem e para os deputados dos partidos da oposição está sempre tudo mal. Quando o governo mudar será ao contrário. Nem uns nem os outros estão a fazer o trabalho que deviam fazer: são incompetentes.
Terceiro, devíamos abordar este tema da saúde e das políticas de saúde da mesma maneira que cantamos “O meu chapéu tem três bicos”: primeiro canta-se com todas as palavras, depois algumas vão sendo proibidas, sendo substituídas por gestos e silêncio, primeiro uma, depois duas, e assim sucessivamente até não se poder dizer nenhuma. Quem pronunciar qualquer uma delas, perde. Nesta temática da Saúde os vocábulos proibidos deveriam ser “Público” e “Privado”, bem como todas as considerações que obrigassem ao uso destas duas palavras. Esta dicotomia não devia fazer parte da discussão e não será mais referida nesta prosa.
É que quando uma pessoa está doente não quer saber quem é o patrão dos médicos e dos outros profissionais que tratam dele. Ela quer ser atendida com qualidade, rapidez, segurança, simpatia e empatia, e o máximo conforto possível. E também quer que o dinheiro que pagou nos seus impostos seja bem aplicado, sem desperdício. Deveria querer ainda que fosse possível tratar o máximo possível de doentes com o mesmo dinheiro, mas o egoísmo está na natureza humana e isso nem sempre acontece. Este egoísmo não é só de carácter pessoal, mas também geográfico.
O financiamento do SNS per capita em cada região de Portugal não é equitativo. E o dos hospitais também não. E há regiões que, apesar de receberem mais dinheiro, apresentam mais insuficiências, mais ineficiências e piores indicadores de saúde. E, chegando ao fim do ano, recebem um envelope para os compensar do deficit com o bonito rótulo de “custos de contexto”, beneficiando os mais incompetentes. E normalmente esses dirigentes não são substituídos por outros melhores. Dá que pensar.
A iniciativa da Direção Executiva do SNS de cobrir todo o território com ULS (Unidades Locais de Saúde) com financiamento do SNS por habitante é uma oportunidade única para evoluir na resolução desta injustiça. Esta mudança radical do financiamento do nosso SNS traz também alguns desafios que interessa abordar.
É uma oportunidade porque a unidade de financiamento passa a ser a pessoa, o indivíduo, o cidadão. Vai permitir uma maior transparência na alocação dos fundos públicos para a proteção e promoção da saúde de cada um dos portugueses. Vai ser possível financiar de forma equitativa a proteção da saúde das pessoas desde Bragança até Sagres, desde Caminha até Vila Real de Santo António. Cada cidadão, independentemente do local onde habita, passará a beneficiar de um modelo que assegura os fundos necessários à garantia das suas necessidades de cuidados de saúde, ficando claro quem é a entidade responsável por pagar esses cuidados. E não é admissível que as futuras ULS de Porto Oriental ou Lisboa Central tenham um valor de capitação diferentes das atuais ULS de Matosinhos, Alto Minho ou Baixo Alentejo, ou as futuras ULS de Dão-Lafões, Baixo Mondego ou Lezíria, para dar alguns exemplos. Não pode haver cidadãos de primeira e de segunda. Não há nenhum motivo para permitir que isso aconteça! Tem de haver recursos para que as crianças sejam todas igualmente vacinadas, as grávidas todas igualmente vigiadas, os rastreios oncológicos realizados a tempo para toda a gente, as consultas de rotina disponíveis para todos, o acesso a consultas e cirurgias dentro dos tempos adequados, os doentes cardíacos com igual acesso aos mais sofisticados dispositivos, se indicado, da mesma maneira que neste momento os doentes renais já têm igual acesso à hemodiálise quando necessitam, e ninguém fica para trás, num modelo de sucesso que bem poderia servir de exemplo para tantos outros programas de saúde e doença. E isto sempre sob a batuta do SNS, porque o dinheiro que paga isso vem dos nossos impostos. Vai ser possível saber qual o montante médio que cada ULS dedica a cada carteira de serviços, de acordo com as suas prioridades, e que essas quantias são equivalentes através da geografia, salvaguardadas questões de pirâmide etária ou necessidades particulares específicas, mas demonstráveis.
Um importante desafio decorre do facto de as assimetrias regionais estruturais terem levado a uma concentração de pessoas e recursos (hospitais, profissionais e equipamentos) na faixa do litoral, especificamente em duas áreas metropolitanas. Da maneira como os recursos estão instalados resulta que será sempre inevitável algum grau de concentração de meios: não pode haver centros de transplantação ou unidades de queimados em todas as esquinas. Mas, precisamente porque é obrigatória uma cultura de transparência, equidade e rigor é que é indispensável que o Estado, enquanto responsável por aplicar o nosso dinheiro (aquele que pagámos em impostos, lembram-se?) o faça tendo como objetivo aproximar o sistema das pessoas, o que implica uma mudança nas prioridades do investimento. Até por isto as ULS podem ser uma boa ideia desde que lhe seja dada autonomia, pois as decisões são tomadas mais próximo das pessoas.
E o caderno de encargos é longo: prevenção e promoção da saúde, do tratamento das doenças agudas nos seus diferentes graus de diferenciação, na vigilância e intervenção em doentes crónicos, nos cuidados de emergência, cuidados de convalescença e cuidados continuados, e cuidados paliativos, não esquecendo a saúde mental, a saúde do trabalho, a saúde escolar e a saúde prisional nas suas vertentes preventiva e curativa. Ou seja: tomar conta de cada pessoa desde o nascimento até à morte. Nenhuma instituição sozinha tem todas estas valências para ser autossuficiente.
Os próprios hospitais públicos passam a ser parte integrante da ULS e a ser financiados através do seu orçamento, em vez do atual modelo de contrato-programa por linhas de produção baseadas em quantidades. Este é um ponto que ainda não está completamente definido (pelo menos não foi divulgado). Por um lado, a sua diferenciação tem de ser acarinhada, prevendo tudo no orçamento da ULS. Também é verdade que não têm de existir todos os serviços em todos os hospitais. Vão as ULS que não dispõem de um determinado serviço ter de contratar externamente esse serviço (a uma outra ULS ou outro prestador), ou vai o hospital mais diferenciado contar com um orçamento extra para tratar dos doentes que não pertencem à sua área de influência? São questões para as quais a transparência da resposta vai dar credibilidade e adesão ao modelo.
É por isso que a capitação de cada ULS deve ser estratificada por carteiras de serviços de diferente diferenciação e o valor de cada segmento apresentado de forma transparente, através da divisão do montante pela população que dele beneficia até chegar ao valor unitário. Cada um dos itens apresentados corresponde a quinhão do bolo financeiro, a uma determinada carteira de serviços, e a diferenciação de uns hospitais em comparação com outros tem de ficar expressa nesse financiamento de uma forma transparente e justa. O histórico permite-nos saber quem são os mais eficientes, onde está o desperdício e o que pode ser feito para melhorar a eficiência e a qualidade. O conhecimento existe, não pode faltar a coragem para atuar, pois também não é admissível que estas diferenças de financiamento persistam.
A outra oportunidade que o modelo das ULS permite é finalmente dar aos médicos de família o papel central que devem ter em todo este sistema: serem os gestores da promoção da saúde de todos os cidadãos. A transposição do National Health Service inglês para Portugal incorreu num irritante erro de tradução que teve consequências: a palavra “primários” da tradução da expressão “primary care” devia ter sido adotada como “cuidados de primeira importância” ou “primeiros cuidados”, mas em vez disso foi vertida para “cuidados que não apresentam grande dificuldade”. No dicionário Priberam, todos são apresentados como sinónimos, mas a versão escolhida e a interpretação posterior levaram à sua subalternização, com efeitos evidentes sobre a maneira como a população os vê. Teve também o efeito secundário de desresponsabilizar os médicos de família de ter o papel “gate keeper” que eles têm em Inglaterra, fundamental para o bom funcionamento e integração de todo o sistema, bem como para o combate ao desperdício e ineficiência. É por aqui que o dinheiro entra no sistema, para que a prevenção seja a função prioritária, os recursos cheguem a quem mais precisa e o excesso de consumo de cuidados seja moderado, nomeadamente o uso desmesurado de tecnologia e inovação. A expansão do modelo das ULS, se os modelos de capitação forem bem desenhados, e a autonomia efetiva, pode ser uma oportunidade nesse sentido.
Uma coisa não se compreende: porque é que as câmaras municipais vão ter direito a nomear um elemento para o conselho de administração. Se se mantiver esta intenção, ao menos que seja um elemento com comprovada experiência na gestão da saúde ou, no mínimo, com ligações à segurança social, já que as questões sociais são dificuldades omnipresentes no dia a dia de quem trabalha na saúde. Se for para ser um mero agente partidário, é dispensável.
O SNS que tivemos até agora foi um caso de sucesso: elevou Portugal a um patamar de desenvolvimento ao nível dos melhores do mundo. Mas a realidade também se alterou em mais de 40 anos e o SNS tem de evoluir. Nunca teve um orçamento nominal tão alto, mas também tem problemas estruturais que precisam de atenção e aperfeiçoamento. Continuar a atirar dinheiro para um sistema que requer evolução não vai resolver as dificuldades. Mas é necessário resistir à tentação de aproveitar esta revolução para encolher cegamente os orçamentos, já espartilhados, da maioria dos hospitais e das ULS mais antigas, em vez de atacar diretamente os mais perdulários.
Estamos à beira de transitar para uma generalização das Unidades Locais de Saúde, o que pode ser uma boa ideia e representa uma oportunidade, mas esta mudança exige uma reflexão profunda sobre objetivos, financiamento e práticas, sempre respeitando o princípio de que a proteção da saúde é um direito humano que tem de ser garantido, independentemente de quem o presta, e que a obrigação das entidades a quem os cidadãos confiam essa responsabilidade é garantir esses cuidados.