É um clássico nas eleições. Chega uma altura da campanha em que a esquerda infalivelmente descobre que estamos em plena guerra civil espanhola. A besta fascista por todo o lado mostra as suas garras afiadas. A imunda reacção avança, impetuosa, com o fito de destruir a nossa civilização pacientemente erguida. Os massacres a vir aproximam-se velozmente, com o seu cortejo de infâmias e perseguições. É sempre assim. Não falha.

Felizmente, mil vozes de passionarias instantâneas ou rapidamente improvisadas se erguem, com os pergaminhos todos da cultura que se opõe à barbárie. “Não passarão!”, é o grito enérgico que mais se ouve vindo de gargantas roucas de indignação. Os peitos fazem-se corajosamente às balas. Não, não queremos uma longa noite que congele as nossas vidas e nos proíba de viver o desejo da utopia. Não aceitaremos que o árduo caminho que percorremos em direcção à felicidade seja assim brutalmente interrompido sob os golpes da férula fascista. “Não passarão!”

Esta alucinação ritual do passado no presente é um fenómeno muito curioso. A única reacção saudável, é claro, é ver neste coro de aparentes maluquinhos – alguns, admito, maluquinhos a sério – a expressão do histrionismo delirante de comediantes falhados que em si querem concentrar toda a atenção. Sobretudo para quem já viu isto vezes sem conta e se lembre dos rostos que, aos olhos do coro, sucessivamente encarnaram a sinistra figura do fascista imaginário, é quase a única reacção possível. Não é preciso perder muito tempo a investigar o porquê da coisa. Seria como dedicar uma vida de labor à análise semiótica do Big Brother dos Famosos – com o qual, de resto, o estilo “passionariaritual” oferece algumas semelhanças.

Ao mesmo tempo, esta facilidade na regressão pode inspirar alguma curiosidade. Porque se trata bem de uma regressão, de um retorno aos modos mais arcaicos do pensamento. E o histrionismo dos comediantes falhados tem algo de preocupantemente patológico. Como em certas grandes obras literárias – o Diário de um louco, de Gógol, por exemplo, mas há muitas -, o riso suscitado convive com a percepção funda da tragédia, simultânea e quase indistinguivelmente. Não é impunemente que se é dado a uma tão grande facilidade de alucinar ritualmente o passado no presente. O cómico – ou se se preferir, o ridículo – da alucinação revela o enclausuramento do pensamento num reduto último do qual o discurso habitual, fora destes momentos de crise, se revela ser a expressão atenuada. Dito de outro modo: há continuidade entre os momentos alucinatórios e os momentos em que tudo parece obedecer aos requisitos mínimos da racionalidade. A esquerda que aí temos é, no fundo, coerente, embora as virtudes dessa coerência sejam eminentemente discutíveis.

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Sem surpresa alguma, é nos chamados “intelectuais” que essa coerência é mais manifesta. Dados à palavra fácil e aos abaixo-assinados facílimos, a alucinação é neles, muitas vezes, o registo natural do seu pensamento, pela própria necessidade de a si mesmos se verem como missionários falantes e escreventes do Bem, em perpétua luta contra a sordidez do capitalismo. A regressão é neles quase um sistema, cuidadosamente trabalhado e experimentado. Os abaixo-assinados e “manifestos” que regularmente aparecem como pãezinhos são um bom exemplo disso.

Mas quando falam em nome próprio a coisa não é menos patente. Naquela sessão do PS em que Rosa Mota, ao seu modo primitivo, tratou Rui Rio de “nazizinho”, um desses intelectuais – Valter Hugo Mãe, um escritor que eu nunca li, pela simples razão que o vi a falar várias vezes na televisão e me faltam as virtudes teologais necessárias para acreditar que o acto da escrita produza o milagre da transfiguração de um espírito assim – lembrou o “Inverno cultural” que representou Rui Rio à frente da Câmara do Porto, quase desejando, num gesto sacrificial, que Rio fosse eleito primeiro-ministro “para as pessoas aprenderem [supõe-se que até ao fim dos tempos] a serem mais espertas”, pelo menos tão espertas quanto ele supostamente é. E, como o Mal não pode, por razões ontológicas, subsistir sem que o seu adversário, o Bem, dê um ar da sua graça, declarou-se embevecidamente fascinado pelo “sorriso” de António Costa, que nos havia libertado da nefanda noite escura de Passos Coelho. A dialéctica do horror e do êxtase, tão cara à esquerda que por aí anda em momentos de decisão eleitoral, é o pão de cada dia do intelectual regressivo, cujo ofício é quotidianamente alucinar, em rituais verbais, o passado no presente, ao mesmo tempo em que tem sempre na ponta da língua o, ó tão belo!, desejo da utopia.

Como é óbvio pelo correr da campanha – e nisso Costa é indistinguível da extrema-esquerda, como se viu, por exemplo, na forma como se demarcou da afirmação de Rosa Mota, discordando da expressão, mas sem tomar posição face ao conteúdo, ao conceito –, PSD, CDS e Iniciativa Liberal enfrentam, na disputa eleitoral, uma formidável barreira regressiva, cujo patente carácter alucinatório e arcaico é exactamente simétrico das piores coisas do Chega, com a diferença que não sofre, ao contrário deste, o escrutínio da comunicação social e apresenta uma convicção apaixonada que declaradamente falta ao segundo, onde a convicção é um puro efeito de superfície.

Uma coisa, no entanto, pode jogar a favor de Rio e dos outros. Auden, o poeta, escreveu em 1939, a propósito de um movimento lançado por Willi Münzenberg, o grande e brilhante agente do Komintern, antes de cair em desgraça junto de Estaline: “Esse movimento falhará: os intelectuais apoiam-no”. Somando tudo, pode acontecer que tanta e tão vocal regressão acabe por beneficiar a direita. Não é seguro, mas pode ser que sim.