Malfadado fado, o nosso. Há 200 anos que deambulamos entre as brumas da mediania, que nem vencidos da vida. Faz quase dois séculos, a Revolução Liberal separou irmãos, absolutistas e liberais, e gerou tensões permanentes entre setembristas e cartistas, assim como reiteradas bancarrotas — seis, entre 1828 e 1890, porque não deu tempo para mais. Montou também uma enorme oligarquia que se servia do país. Éramos pobres, ficamos paupérrimos.

A esperança da regeneração do Fontismo, preparada por intelectuais liberais como Alexandre Herculano, dá origem a escolas, pontes e estradas alavancadas em dívida externa, o que culmina, sem surpresas, noutra bancarrota. Este período degenera na inépcia de Hintze Ribeiro e finalmente em João Franco, “o ditador”, que viveu para assistir ao fim da Monarquia Constitucional e à instauração da República, proclamada dos Paços de Lisboa para uns quantos transeuntes mendicantes, para a pequena burguesia, e para os maçons e os carbonários que a montaram. Demorou dois dias para a notícia chegar ao Norte, tamanho era o interesse da populaça combalida em mais uma diatribe importada de França.

A República, a mulher desnuda de espada e bandeira na mão, olha agora para cima, em contraponto à Monarquia, que olhava para baixo, para os seus súbditos, os miseráveis. Porque os novos súbditos poderiam votar mal, a República decidiu que talvez fosse melhor impedir os mais pobres de o fazer, ou não fossem os descabelados votar na restauração. Proíbe e persegue também as ordens religiosas. Liberté, egalité, fraternité — e na versão portuguesa também pauvreté.

Em talvez a melhor análise política desta nova forma de regência, escrevia assim Fernando Pessoa: «O regímen está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional — trapo contrário à heráldica e à estética, porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português — o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que, por direito mental, devem alimentar-se». E remata, ímpio perante os tempos de então: «A monarquia, ainda que má, tem ao menos de seu o ser decorativa. Será pouco socialmente, será nada, nacionalmente. Mas é alguma coisa em comparação com o nada absoluto que a república veio a ser».

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A monarquia era uma sátira de um país ingovernável e falido. E porque as coisas podem sempre piorar, a república foi um regime satírico que alimentava sinecuras espalhadas pelo aparelho do Estado a fim de se manter. Entre 1910 e 1926, quarenta e cinco governos chefiaram o pardieiro político em que Portugal se havia tornado. São quase três governos ao ano. Militares como Gomes da Costa puseram então termo à algazarra, que já ia longa e tinha forçado a participação de Portugal na 1ª Grande Guerra, dando assim início a uma ditadura que havia de se estender por quase 50 anos, com presos políticos, supressão das mais elementares liberdades, e que de positivo teve apenas o distanciamento da 2ª Grande Guerra. Até mesmo Salazar, passados treze dias de assumir a pasta das finanças, quis regressar a Coimbra.

Segue-se o 25 de Abril, pois os militares estavam sobremodo cansados da guerra do Ultramar e Marcello Caetano não havia concordado com as suas pretensões. Continuamos pobres. É o derrube do corporativismo por um movimento corporativo, que alguns gostam de reescrever como uma grande insurreição popular. É também a tentativa de impor uma nova ditadura, desta feita comunista. O PREC conduziu ao confisco e ao roubo através das nacionalizações e da reforma agrária, e só a coragem de alguns militares ajudou a pôr termo a mais este desvario. Segue-se uma bancarrota, e outra em 1983, e uma quasi-bancarrota em 2011. Nada de inédito na historiografia de Portugal.

E eis-nos em 2019, vencidos da vida, na cauda da Europa, líderes de coisa alguma, maîtres da liga dos últimos. Todos os países da Europa do Leste, economias obliteradas pelo comunismo, já nos ultrapassaram em riqueza por cidadão. Entenda-se: estão mais ricos — têm melhores salários, melhores pensões, mais emprego, melhores condições materiais de vida do que a generalidade dos portugueses. Em 1990, tinham metade do nosso PIB per capita. A Polónia está quase lá, e a partir daí resta apenas a Bulgária e a Roménia. Lá fora entretiveram-se a acabar com a pobreza, em Portugal tentamos exterminar a riqueza — feito de que Otelo Saraiva de Carvalho, capataz do intento comunista e rifa dos poucos afortunados, se orgulhava enquanto se passeava pelos reinos da Suécia. E com notório sucesso, pois riqueza é coisa escassa em Portugal.

Eça estava e, sem surpresas, continua carregado de razão. Iludido pelo reformismo da Regeneração, acabou ele próprio Vencido da Vida, num niilismo diletante que não o impediu de perceber onde residia o problema de Portugal: «Diz-se geralmente que, em Portugal, o público tem ideia de que o Governo deve fazer tudo, pensar em tudo, iniciar tudo: tira-se daqui a conclusão que somos um povo sem poderes iniciadores, bons para ser tutelados, indignos de uma larga liberdade, e inaptos para a independência. A nossa pobreza relativa é atribuída a este hábito político e social de depender para tudo do Governo, e de volver constantemente as mãos e os olhos para ele como para uma Providência sempre presente.».

E acrescenta mais uma farpa: «A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? Gargalhada. Reprime? Gargalhada.»

Há 200 anos que Portugal é uma chalaça. Mas o que verdadeiramente mata Portugal é a angústia de saber que não tinha e não tem de ser assim.