O cenário que se põe não é nunca fácil de dissecar, no entanto, passem-me a faca de corte. Esta terça-feira levava os olhos pelo artigo da Maria João Faustino, que não pretende de alguma forma apoiar a posição de Amber Heard no processo contra Johnny Depp. Ainda assim, num artigo que fala sobre o que é ser mulher numa sociedade patriarcal, ter, como capa, uma figura pública que não foi dado como provado ter sido vítima de violência doméstica, num caso que até ao dia seguinte se encontraria sem veredicto, é estupidamente curioso.

A famosa imagem de Rosie The Riveter, criada como propaganda durante a 2ª Guerra Mundial faria, de certo, mais sentido à causa. Esta seria readaptada para a representação do empoderamento feminino a partir da década de oitenta. Hoje em dia, é considerada um dos grandes símbolos da resistência feminista.

Se queremos falar de feminismo, que o façamos com cabeça, tronco e membros, por favor. Faz-me imensa confusão que o erro deste tipo de pensamento comece na distorção do significado etimológico, o que infelizmente é comum a ambos os sexos. Vamos a factos:

O que é o feminismo? É um movimento político, filosófico e social que procura a igualdade de direitos entre homens e mulheres. É crucial não confundir com o conceito de femismo que, à semelhança do machismo, incentiva a superioridade da mulher em relação ao homem.

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Apesar de existir uma maioritária discordância característica dos tempos, foi pela República de Platão que o filósofo atribuiu ao género feminino uma capacidade natural para governar e defender a Grécia Antiga, tal como qualquer homem.

É machismo ir buscar um exemplo masculino a favor da igualdade de género? Não, mas não temos de ir por aí: Mary Wollstonecraft já falava de igualdade de direitos durante o século XVIII. Abominava as noções dominantes de que as mulheres são adornos indefesos do lar e enfatizava a noção de que a sociedade cria “gentle domestic brutes”, que ainda hoje se emprega tão bem. A ambos os sexos, por sinal. A chave estaria na reforma educacional, que permitisse a igualdade no acesso a oportunidades, independentemente do género.

Em ambas as vagas do feminismo foram conquistados grandes feitos, esses sim para todas. A primeira onda feminista, que remonta o final do século XIX e o início do século XX, conhecida pela organização dos primeiros movimentos feministas (como as Suffragettes) e suas marchas pelo direito de sufrágio, que abriram o caminho para a incontornável Convenção de Seneca Falls (1848). Aí se discutiram importantes resoluções, que se traduziram na Declaration of Sentiments. Apesar de o objetivo ter sido parcialmente cumprido em 1920, pela aprovação da 19ª Emenda, existiam ainda algumas nuances raciais que não permitiram o sufrágio generalizado.

A segunda onda feminista nasceu durante a década de sessenta, prolongando-se durante vinte anos, desta vez com um foco incisivo no papel da mulher na sociedade. The Feminine Mystique, de Betty Friedan, reflete a dificuldade sentida no desenvolvimento das suas capacidades criativas e intelectuais, porque não lhe seria permitido pensar além de esfregar o chão ou fazer o jantar para a família.

Esta vaga não só proporcionou o direito de possuir cartões de créditos em seu nome ou o de contrair empréstimos, como pôs um tema importantíssimo em cima da mesa: a violência doméstica e a legislação contra o assédio sexual no local de trabalho. Foi também durante esta época que o ERA – Equal Rights Amendment – veria a sua aprovação pelo Senado americano em 1972. Deixo sensivelmente o caso de Roe vs Wade para outras núpcias.

Isto é o verdadeiro significado de feminismo, Maria. Empoderar alguém não deve nunca ser feito à Lagardère, tenha o que tiver entre as pernas. O problema com as generalizações é precisamente este: dão cocó.

Todas somos loucas, porquê? Amber Heard é considerada vítima de violência doméstica e abuso sexual a priori, porquê? O que é feito da presunção de inocência?

A luta femista, que ganhou bastante expressão através do movimento Me Too, descredibiliza e tira enfâse às mulheres que iniciaram a discussão sobre a igualdade de direitos e oportunidades. Reduzir toda a história do feminismo num acto de vitimização mesquinho é o que tende a caracterizar a 3ª vaga feminista (ou 1ª vaga femista, se preferirem), que de feminismo tem muito pouco.

Tal como a legislação das quotas de género (Lei n.º 62/2017), que estabelece um regime de representação proporcional entre mulheres e homens em órgãos de administração e de fiscalização, pertencentes a entidades do sector público empresarial, retira qualquer mérito a quem se proponha a exercer funções deste tipo. Porque é que eu deveria ter uma oportunidade maior de ascender a um cargo, só pelo que tenho entre as pernas e não pelo meu valor intelectual? O argumento que suporta esta medida baseia-se num conceito de equidade de género que simplesmente não vejo. Onde é que pode ser medido algum tipo de justiça, se na prática não estamos a avaliar absolutamente nada?

O caso Heard vs. Depp mostra-nos que a utilização proveitosa do género para exploração de um problema relacional, subtrai qualquer crédito a quem realmente sofre deste tipo de situações. As verdadeiras vítimas de violência doméstica, de abuso e assédio sexual, são associadas a estas práticas ressabiadas e pessimamente informadas do que é (ou pelo menos do que devia ser) a luta por um dos valores fundados durante a Revolução Francesa.

A violência doméstica é um problema demasiado sério para ser atirado desta forma. Não é algo que esteja exclusivamente afecto a um dos géneros, e a derradeira prova está presente na deliberação final deste julgamento.

Não Maria, nem todas somos loucas. Eu, pelo menos, que posso dar-me ao luxo de falar do assunto sem ser automaticamente considerada misógina, não me considero louca e muito menos a favor da utilização da carta da vítima. Não usem os ovários como se fosse um abajur do IKEA, sob o perigo de retrocedermos em toda uma evolução que já vem desde os tempos de Platão. Tenhamos respeito pala História e todos os seus antecessores. Respeitem os que abriram portas e janelas, para podermos dizer e fazer em liberdade, todos os dias. Veritas numquam perit, disse Séneca, citado por Depp. E disso podem ter toda a certeza.