Costuma-se dizer que “onde há fumo, há fogo”. Esta máxima popular aplica-se perfeitamente à recente iniciativa na Argentina, onde o governo do presidente Javier Milei anunciou a criação da “Unidade de Inteligência Artificial Aplicada à Segurança” (UIAAS). Esta medida, destinada a prever crimes antes de serem cometidos, além de “patrulhar” redes sociais, aplicações e páginas web para despistar ameaças, vai utilizar drones e câmaras de videovigilância para controlar em tempo real grandes áreas do país e usar tecnologia de reconhecimento facial para identificar “pessoas procuradas” e detetar “comportamentos anómalos”, para evitar “crimes futuros” segundo esta proposta do governo argentino.

Lembram-se do livro Relatório Minoritário de Philip K. Dick? Esse livro de 1956 deu mais tarde (2002) origem a um filme com o mesmo nome, dirigido por Steven Spielberg e com o ator Tom Cruise no papel principal. Esse livro de Philip K. Dick, e também o filme, retrata um futuro onde crimes são prevenidos antes de acontecerem, e agora, a Argentina parece querer levar esse conceito distópico para a vida real. O potencial para abuso de poder e violação de direitos humanos é alarmante, e a comparação com obras distópicas como 1984 de George Orwell torna-se inevitável. Estamos a caminhar para um cenário onde a vigilância constante pode transformar a sociedade num grande Big Brother.

A história traumática, diria, da Argentina adiciona assim uma temporada extra de complexidade a esta iniciativa. Durante a ditadura militar de 1976-83, milhares de pessoas foram desaparecidas e torturadas, e qualquer medida que envolva vigilância governamental extensiva é naturalmente recebida com desconfiança. A memória de um Estado repressor ainda está fresca na mente de muitos argentinos, o que torna a aceitação de tais medidas ainda mais difícil.

Mas vamos tentar perceber qual a tecnologia que vai ser usada e como vai monitorizar os cidadãos argentinos. A UIAAS operará de várias maneiras para identificar e prevenir atividades criminosas:

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Monitorização de Redes Sociais: Rastreamento de atividades suspeitas em plataformas e redes sociais, procurando sinais de comportamento criminoso ou ameaças ditas “iminentes”. Imaginemos estar a ter uma conversa privada online e ser monitorizado por um algoritmo que pode mal interpretar o contexto das suas palavras.

Vigilância por Drones e Câmaras: Utilização de drones e câmaras para vigiar grandes áreas urbanas, capturando atividades em tempo real. Este nível de vigilância pode resultar numa sensação constante de estar a ser observado, afetando a liberdade de movimento e de expressão das pessoas.

Reconhecimento Facial: Implementação de tecnologia de reconhecimento facial para identificar indivíduos procurados e comportamentos suspeitos. Isto pode levar a erros de identificação, onde pessoas inocentes são erroneamente acusadas ou monitorizadas por crimes que não cometeram, apenas por parecerem suspeitas.

Enquanto a promessa de um sistema de segurança mais eficiente é atraente, a iniciativa levanta sérias questões éticas.

Organizações de direitos humanos, como a Amnistia Internacional, já expressaram preocupações sobre possíveis violações de privacidade e liberdades civis. A vigilância constante pode levar à autocensura e a um clima de medo, onde os cidadãos sentem que estão sempre sob escrutínio. É este o futuro que queremos?

Especialistas também questionam a eficácia e a ética do uso da IA para prever crimes. A análise de dados históricos pode conter vieses ou tendências que resultam em uma vigilância desproporcional de certas comunidades, exacerbando desigualdades sociais. Além disso, a ideia de prender ou vigiar indivíduos com base em previsões de ações futuras desafia princípios fundamentais de justiça, como a presunção de inocência.

A criação da UIAAS na Argentina é um exemplo de como a tecnologia pode ser uma faca de dois gumes. Por um lado, oferece a promessa de uma segurança pública mais eficaz que todos queremos; por outro, coloca em risco liberdades fundamentais e pode alcatroar o caminho para um estado de vigilância autoritário.

Será que a segurança justifica sacrificar a liberdade?

Em política, como diz a sabedoria popular portuguesa, “o que parece, é”. E, no caso da Argentina, o que parece é uma tentativa de fortalecer a segurança pública. Mas, à medida que observamos a implementação desta unidade de IA, devemos questionar: a que custo?

A democracia e os direitos humanos não podem ser sacrificados em nome da segurança. A transparência, a responsabilidade e o respeito pelos direitos civis devem ser a base e a garantia de qualquer iniciativa governamental, especialmente quando envolve tecnologias de vigilância tão intrusivas.

Devemos recordar que a verdadeira segurança vem do equilíbrio entre proteção e liberdade. Um Estado que sacrifica uma das partes para ganhar a outra pode acabar por perder ambas.

A democracia e os direitos humanos não podem sobreviver apenas de aparências; necessitam de substância, de verdade e de confiança pública. A desconfiança generalizada nos processos governamentais e a insegurança crescente são venenos lentos que corroem a estrutura social de qualquer país. Será que estamos a observar o nascimento de um novo tipo de ditadura, mascarada de proteção e segurança?

Enquanto observamos o desenrolar desta iniciativa na Argentina, é crucial que os líderes mundiais e as instituições internacionais mantenham a pressão para garantir que a procura de soluções por segurança não comprometa os princípios fundamentais da democracia.

Devemos questionar: será que estamos prontos para viver numa sociedade onde somos constantemente monitorizados e onde as nossas ações são feitas com base numa previsão e controladas por máquinas?

Em última análise, a segurança não pode ser alcançada à custa da liberdade.