Um dos livros portugueses mais importantes das últimas décadas faz agora vinte anos. Falo de “Portugal Hoje, o Medo de Existir” de José Gil. Para ser sincero, creio que se o livro se resumisse ao título, já era um triunfo literário. E não é esta uma das conquistas que qualquer escritor deseja — com um título apenas conseguir mais do que tantos com demasiadas palavras? Quero celebrar o que mais gosto deste livro de José Gil em três ideias principais. Naturalmente, as citações serão muitas porque o melhor que tenho para escrever é escrever o que José Gil escreveu.
Em primeiro lugar, José Gil sabe que Portugal é um país de velhos primos de infância. O passado é tudo o que temos. “Nada acontece, nada se inscreve” e o Salazarismo foi uma escola que nos ensinou a permanecer miúdos, “adultos infantilizados”. Não sabemos viver fora dos casulos em que crescemos. Se parecemos abertos à superfície, continuamos interiormente fechados, fanáticos da familiaridade (“os portugueses eram todos parentes”). Somos também por isso um povo poupado, “restringindo o desejo ao mínimo indispensável, (…) desenvolvendo um espírito cauteloso, prudente, desconfiado—uma sociedade docemente paranóica”.
De tanto idealizarmos a pequena família dentro da qual nos queremos manter, ocultam-se rancores poderosos: “porque uma sociedade em que tudo se faz para encobrir os conflitos convém particularmente bem ao trabalho da inveja”. Disfarçamos ressentimentos num discurso humanista e pomposo, cobardia intelectual óbvia que não quer admitir que centrar tudo em nós é das piores desgraças para a “ecologia do espírito”. Queremos, afinal, que nos deixem em paz na pequenez que nos é tão doméstica: “o português habita numa espécie de bola de afecto. (…) O ser pequeno é a estratégia portuguesa de permanecer inocente” (o brilhante síndroma de Liliputh).
Em segundo lugar, Portugal é um país em que o silêncio fala demais. Num clima de “anestesia e obediência generalizadas”, dominam os velhos xerifes do recreio. Noutro contexto mais saudável, qualquer boa ideia entrava no espaço comum e suscitava a participação de outros. Acontece que no nosso país os nomes conhecidos devem manter-se a mandar porque “se é X que o diz, com a sua inteligência, a sua cultura, o seu prestígio, então as suas palavras enchem-se de uma força que não teriam se tivessem sido escritas por um x qualquer, desconhecido de todos”. Como “o 25 de Abril não conseguiu abolir a divisão instruído/sem instrução, (…) o medo, a reverência, o respeito temeroso e a passividade perante as instituições (…) não foram ainda quebrados por novas forças de expressão de liberdade. (…) O Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede a crítica” (e neste contexto, Gil classifica o ritual do 25 de Abril como “cada vez mais patético”).
Não sendo nós capazes de uma admiração sincera, cultivamos “o elogio excessivo que cumpre a estranha função de desrealizar a obra que pretende caracterizar, colocando-a em píncaros tão altos que se torna uma pura figura de retórica”. O que nos sai mais alto da voz é o que parece bonito dizer, não o que poderia mudar alguma coisa se dito fosse. “A sociedade portuguesa está normalizada por uma regra invisível (…) valorizando acima de tudo a paz da mediania—o [suposto] bom senso”. Seremos “prisioneiros em liberdade, controlados à distância, (…) em que qualquer desvio mínimo é sinal de catástrofe, de perigo de exclusão total”. Sobretudo, temos pânico da diferença porque a ela corrói-nos o casulo da familiaridade que nos viu crescer.
Em terceiro lugar, Portugal é um país que canoniza o acaso. Mais do que acreditar em chegar ao destino, acreditamos em deambular, e a nossa expressão “se calhar” comprova-o: deambular é a aventura possível aos que não querem arriscar demais. Não abordamos os assuntos senão “indirectamente, percorrendo espirais, caminhos ínvios e barrocos até abordar claramente a questão”. Tanta precaução recusa o enfrentamento, típico de outras sociedades mediterrânicas como a Albânia, a Grécia, a Córsega, a Sardenha, o Líbano, a Líbia, etc. “Debaixo da precaução, da cautela, da desconfiança, habita o medo, (…) metabolizado em brandura, doçura, amenidade”, que não são bem o civismo que parece. Temos “medo de agir, de tomar decisões diferentes da norma vigente, medo de amar, de criar, de viver. Medo de arriscar. A prudência é a lei do bom senso português (…) e a incompetência aumenta por falta de audácia”.
Também há pontos fracos neste livro obrigatório, claro. Pelo menos dois: primeiro, Gil mete tudo o que nos corre mal na conta do Salazarismo, tique que me parece demasiado preso à típica análise materialista das relações de poder, e que impede o livro de cumprir a verdadeira leitura espiritual do país tão bem resumida no título. O segundo ponto fraco é a linguagem demasiado fenomenológica dos conceitos centrais da “inscrição” e da “não-inscrição”. Assim, o leitor comum fica contraditoriamente preso à dicotomia bem observada e criticada do “instruído/sem-instrução”. Ou seja, Gil caracteriza como ninguém o problema português do medo de existir, mas a causa apontada para ele deveria ir além da previsível e curta perspectiva política recente. Com quase novecentos anos de história, os nossos piores vícios têm menos de cem? Já começa a ser um erro velho imputar todos os males portugueses ao Estado Novo.
Ainda assim, “Portugal Hoje, o Medo de Existir” é o livro que nos últimos tempos melhor descreve quem somos. Aconselho-o a toda a gente. Celebremos-lhe os vinte anos porque me parece que, tragicomicamente, se vai manter actual durante muitos mais.