Toma muito cuidado, não faças chorar uma mulher pois Deus conta as suas lágrimas. A Mulher foi feita da costela do Homem – não dos pés para ser pisada; nem da cabeça para ser superior, mas sim no lado para ser igual; debaixo do braço para ser protegida e do lado do coração para ser amada.
Talmude

Num texto recente publicado na nossa imprensa diária, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, alertou para o facto de, enquanto o mundo trava, de forma desigual, o combate contra os efeitos da Covid-19, “uma pandemia paralela e igualmente terrível ameaça metade da população mundial”. E acrescenta esta previsão complementar e alarmante: “Nos primeiros meses da pandemia, as Nações Unidas estimavam que as quarentenas e os confinamentos poderiam levar a 15 milhões de casos adicionais de violência de género a cada três meses.”

Como já escrevi um dia, toda a violência é condenável! Mas é particularmente censurável quando é exercida sobre vítimas fracas, frágeis ou desprotegidas. É moralmente intolerável agredir crianças, pessoas de idade ou em situação de debilidade psicológica ou de dependência social, económica ou familiar relativamente ao agressor. Estamos, então, perante atos particularmente cobardes, impróprios de um ser humano que se queira digno e merecedor de respeito.

Porém, além de física, a violência pode ser psicológica, destruidora da personalidade, da autoestima da pessoa, realizada com requintes de malvadez ou, até, de sadismo, traduzindo-se em atos de humilhação e dominação, deliberados e repetidos, nas palavras e nos gestos em atitudes reveladoras de desrespeito e desprezo até chegar a padrões de violência física em graus intoleráveis e sem perdão. As grandes vítimas dessa violência, dita doméstica, são as mulheres!

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Os dados conhecidos indicam que se trata de um mal endémico, de todos os tempos e classes, transversal e tolerado… Para debelá-lo urge por isso uma mudança radical de mentalidades, de educação e de cultura para a qual uma sociedade como a nossa, onde ainda subsiste uma efetiva desigualdade entre homens e mulheres, levou tempo a orientar-se. É que a violência doméstica sobre as mulheres radica, no essencial, na negação da igualdade entre homem e mulher, numa mentalidade machista de muitos homens, numa falsa ideia de masculinidade em que, na relação, é o homem quem “todo lo manda” e tudo merece em primeiro lugar, desgraçadamente aceite por parte de tantas mulheres em inerme espírito de submissão. É certo que um salutar movimento de emancipação da mulher, que se tornou economicamente independente e, portanto, mais livre e autónoma, se vem sentido principalmente no meio urbano. Mas, em casa, muitas mulheres continuaram e continuam a ser vítimas, vidas a fio, de agressões físicas ou psicológicas por parte dos companheiros, alcoolizados ou dominados por um ciúme doentio, descarregando nas companheiras os seus complexos, as suas deficiências de formação ou as suas deformações de carácter, dando livre curso a instintos brutais, com que nasceram ou copiados de comportamentos vistos em casa.

        A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), de 11 de maio de 2011, abrange, no seu âmbito, as seguintes infrações penais: (a) violência doméstica, incluindo a violência física, psicológica e económica; (b) perseguição; (c) violência sexual, incluindo a violação; (d) assédio sexual; (e) casamento forçado; (f) mutilação genital feminina; (g) aborto forçado e esterilização forçada.

A violência contra as mulheres e a violência doméstica configuram a prática de crimes públicos. Não são questões privadas! Para salientar o efeito particularmente traumatizante dos crimes contra a família, pode mesmo impor-se a aplicação de penas mais pesadas ao agressor quando a vítima for o cônjuge, o parceiro ou um familiar. Nessa vertente, não podemos esquecer que em Portugal continuam a morrer em cada ano muitas mulheres assassinadas em contexto de violência conjugal! Uma vergonha a que é imperativo pôr termo.

Através de sucessivas Resoluções do Conselho de Ministros têm sido aprovados os Planos Nacionais de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género com vigência trienal. Os referidos Planos, que se enquadram nos compromissos assumidos pelo nosso país nas várias instâncias internacionais, visam delinear estratégias no sentido da proteção das vítimas, da prevenção da reincidência, da intervenção junto dos agressores, da qualificação dos profissionais envolvidos no combate a esta vergonha social e de reforço da rede das indispensáveis estruturas de apoio e de atendimento às vítimas.

       Mas o assédio sexual entra também no cortejo de sofrimentos que gera nas suas vítimas (homens e mulheres). Há que incentivar as vítimas da violência sexual ou de assédio a falar, a denunciar. E nada poderá melhorar sem a Educação – com o ensino, na escola e na igreja, sobre direitos fundamentais, mormente sobre prática e consentimento sexual envolvendo o respeito pelo/a parceiro/a e pela sua vontade.

Mas surge agora como elemento potenciador de todas as violências elencadas, a crescente utilização ilícita dos meios digitais, o acesso ilegítimo ao conteúdo dos ficheiros dos titulares dos dados, assim coagidos a conceder facilidades ou a condescender com os abusos – uma ciberviolência estreitamente ligada a formas clássicas de violências conjugais, físicas ou psicológicas.

Um exemplo colhido na abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH): o Acórdão 56867/15, de 11-02-2020, no caso Buturugă contra a Roménia, suscitado pelo pedido da requerente que denunciou o comportamento violento do ex-marido e que pedia,  como elemento de prova, no quadro do processo penal, uma busca eletrónica ao computador da família, alegando que o mesmo tinha consultado abusivamente as suas contas eletrónicas e tinha feito cópias de conversas privadas, dos seus documentos a de fotografias suas, bem como uma outra queixa por violação da correspondência. As autoridades judiciárias romenas não deram provimentos às queixas apresentadas pela requerente, não tendo abordado os factos litigiosos do ponto de vista da violência conjugal. O mesmo aconteceu quanto à queixa relativa à alegada violação do segredo da correspondência. Esgotadas as vias de recurso no ordenamento jurídico interno, a requerente recorreu ao TEDH, o qual, por unanimidade, considerou que as autoridades romenas deviam ter tomado conhecimento do fundo da causa, sendo por isso incorreto o entendimento que levou os tribunais nacionais a deixarem de tomar em consideração as diversificadas formas que a violência conjugal pode tomar. Condenaram por isso o Estado romeno ao pagamento de uma indemnização à requerente por danos morais.

      Entretanto, António Guterres anuncia-nos os bons resultados da Iniciativa Spotlight para eliminar a violência contra as mulheres, implementada em 25 países durante 2020. Acreditemos na luz salvífica que ela prenuncia e a humana dignidade reclama.