O maior medo dos israelitas é assistir à morte de Israel, e o regressar a uma milenar realidade sem pátria, sem casa, de rejeição, perseguição e extermínio. O povo israelita é um povo ocidentalizado e distante da religião, pese embora possa não parecer, e como tal, vive numa realidade onde a vida é um lugar melhor do que o “além”, onde a ideia de morte causa pânico e angústia.
Por outro lado, a razão maior do povo palestiniano, e a sua grande causa, é dar a si mesmo uma pátria, um chão onde os seus filhos possam viver em paz e prosperidade. Este é um povo que nunca desistirá por maior que seja a força das armas, é uma sociedade com grande proximidade à religião, e como tal, acredita que a vida após a morte será próspera e recompensadora para os que lutam pela grande causa.
Está criado o impasse, ambas as causas são justas e ambos os povos são irredutíveis. Tudo se agrava quando ambas as partes se encontram altamente polarizadas. Do lado palestiniano, todos os líderes moderados se encontram mortos, exilados ou sob ameaça dos grupos radicais. O extremismo terrorista do Hamas domina sobre Gaza, onde eleições livres da Autoridade Palestiniana deixaram de ocorrer há muito. Do lado israelita, já não se encontram partidos moderados relevantes no parlamento, onde restam apenas partidos de direita e de extrema direita num país liderado por um primeiro ministro que move todos os esforços para dar cabo da democracia em Israel, enquanto tenta salvar a própria pele dos inúmeros processos de corrupção, com a ajuda das facções ultra-ortodoxas do seu governo radical, para deitar abaixo a separação de poderes e o sistema judicial, batalhando por um balão de oxigénio que lhe devolva alguma réstia de popularidade num país, também ele, internamente polarizado.
Aí está o balão de oxigénio, este ataque bárbaro do Hamas terá como efeito a desmobilização da sociedade israelita da luta pela salvação da sua democracia, unindo-se numa mobilização a favor da retaliação contra os palestinianos, o que poderá ferir de morte a democracia israelita e a derradeira esperança de um regresso a uma realidade onde a negociação de acordos de paz seria plausível e não uma alucinação.
Provavelmente, depois de tamanho massacre no passado dia 7, nunca estivemos tão longe da possibilidade de gizar um plano para a paz e para a coexistência entre ambos os povos. Estivemos perto durante os acordos de Oslo, mas nem aí os radicais permitiram a conclusão do projecto, Yitzhak Rabin, primeiro ministro israelita, era assassinado por um estudante israelita descontente com os termos de Oslo. Nove anos depois, morria Yasser Arafat em circunstâncias duvidosas, com grandes suspeitas de morte por envenenamento. Mais do que dois líderes de ambas as partes, dois moderados que procuraram ceder mutuamente em nome da paz, mortos. Quem lhes sucedeu, sempre esteve mais próximo da violência que do acordo.
Quando os conflitos são longos e se arrastam durante décadas, a percepção entre anjos e demónios fica difusa, há vítimas inocentes a sofrer profundamente em ambos os lados, e atrocidades monstruosas são cometidas por ambas as partes. Todos se transformam em agressores e agredidos, vítimas e culpados. Os ressentimentos crescem, a vingança torna-se irresistível e o perdão torna-se inaceitável. Não há lugar para acordo num terreno dominado por radicais.
Certo é que o Hamas não representa a vontade do povo palestiniano, é uma organização terrorista que oprime os palestinianos e deseja apenas instigar o ódio étnico e a expulsão dos judeus. Netanyahu não representa a vontade do povo Israelita, que deseja viver em paz e numa democracia plena. É urgente que Washington e Bruxelas se empenhem em ajudar Israel a aniquilar o Hamas, mas é também urgente que estes obriguem Israel a respeitar as resoluções da ONU, a desmantelar os colonatos e acabar com a ocupação ilegal da Cisjordânia, bem como com o sistema de descriminação estrutural de aparteid do povo palestiniano, mas sobretudo, que criem os mecanismos necessários a que as forças moderadas da Autoridade Palestiniana retomem o controlo da Palestina e lhes seja oferecida a esperança de poder erguer um país em paz lado a lado com os vizinhos de Israel.
Vista grossa e genocído são, desafortunadamente, dois termos intimamente ligados, e se a perplexidade continuar a vencer, temo que o segundo esteja ao virar da esquina.