Conversar nunca é apenas conversa. Quantas vezes uma conversa que ainda não aconteceu é aquilo que mais vivemos acima de qualquer outra coisa? Volta e meia penso que a vida do dia-a-dia não é mais do que o intervalo comum do mais importante que são as conversas que temos e que esperamos ter. Aquilo que fazemos parece-me sinceramente sobrevalorizado diante daquilo que falamos e que contamos falar. Não são as palavras que são levadas pelo vento; talvez sejam as acções mesmo. A prova de que somos criaturas feitas pela palavra também reside na vida paralela que a espera pelas grandes conversas suscita em nós. Até começarmos a falar ainda não fizemos nada tão assinalável assim.
Nos últimos tempos esperei por um par de grandes conversas. Eram grandes conversas não no sentido que teriam de durar muito tempo. Eram grandes conversas no sentido em que poderiam servir de revelação final daquelas coisas que vão crescendo em nós e que tememos colocar em palavras. Frequentemente uma grande conversa não se mede pela sua duração mas pelo poder de materializar coisas que até então eram sobretudo nuvens cá dentro—estávamos sobre condições meteorológicas adversas que só as palavras concretizariam no temporal consequente. Há conversas que são essa precipitação final de uma tempestade que levou muito tempo a formar-se dentro de nós mas que inevitavelmente terá de chover.
Mas, felizmente, outras conversas existem que permitem a abertura do horizonte carregado para o céu brilhar. Nessa medida, as palavras que usaremos são sempre muito maiores do que nós mesmos, com a estatura de possíveis desabamentos ou, preferivelmente, bonanças que nos aliviam. Quanto mais consciência temos de que as palavras não apenas documentam circunstâncias mas criam-nas também, menos nos esquivamos dessas conversas que tão naturalmente nos assustam. Há conversas desagradáveis que podem ser evitadas quando, antes das palavras terem de ser veredictos, elas puderam ser veredas. Ou seja: antes que tenhas de ouvir aquilo que já não pode ser de outro modo, encontra novos modos de falar. Pondera outras maneiras de falar para que o que te falam não tenha de ser o que te condena.
Recordo uma conversa que tive com uma pessoa que me disse algo que já intuía mas que nunca me tinha sido pronunciado. Essa pessoa era um terapeuta profissional e, talvez na linha recta da deontologia, colocou em palavras aquilo que a maioria hesitaria admitir acerca de mim diante de mim. No fundo, eu já conhecia o erro que o conselheiro me apontava mas o momento em que ele o verbalizou encarnou uma mudança. Quando verbos encarnam, mundos mudam (onde é que já lemos isto?). Ainda hoje ouço a pronúncia dessa frase, misto do tal veredicto final mas oportunidade de vereda alternativa. A partir do momento que o meu velho pecado foi dito, fez-se carne e osso a oportunidade de o abandonar. Até então, não é que eu estivesse assim tão cego. Mas a verdade é que ouvir funciona como uma espécie de visão dupla. Até sermos mapeados pelas palavras dos outros, podemos fingir-nos perdidos nas coordenadas.
Aborrece-me portanto quando tenho de ouvir que falar é fácil e fazer é que é valioso. Sim e não. Claro que é fácil falar o que não se faz—uma definição curta e útil de hipocrisia. Como qualquer pessoa, também não quero ser hipócrita e desmascarado como alguém que se esconde no que fala para não fazer de acordo. Mas, por outro lado, sei que fazer sem falar é tão ou mais grave. Podemos viver escondidos em tanta coisas que fazemos evitando o território sagrado e milagroso da fala. Algumas das melhores coisas que nos curaram foram acções—claro que sim. Mas tantas outras coisas que nos curaram foram palavras. Ditas de um modo tão criador que a partir desse momento um Universo novo começou.
Grande parte das minhas aventuras são a sobrevivência às conversas que já tive e às conversas que ainda estou para ter. As últimas, confesso, muitas vezes consomem-me em ansiedade. Penso no que eventualmente vou ter de ouvir e no que eventualmente vou ter de dizer. Depois, lembro-me das palavras da palavra encarnada, quando dizia que basta ao dia o seu próprio mal. Se é verdade que viver dentro das conversas que ainda não tivemos não nos deve consumir previamente, fugir delas, por perigosas que pareçam, é pior ainda. Até falarmos, ainda não começámos realmente a fazer seja o que for.