Senhor contente: o José Sócrates foi libertado, fez-se justiça.
Senhor zangado: justiça? Não acha que a justiça ainda nem se começou a fazer?
Senhor contente: o Ministério Público já está a fazer marcha atrás
Senhor zangado: quem disse isso foi o advogado do Sócrates, o Ministério Público explicou que já há prova suficiente para, supõe-se, poder deduzir acusação. Deixou de haver perigo de manipulação das provas, pode ir para casa
Senhor contente: não pode haver manipulação porque não há provas nenhumas, o homem está preso por razões políticas
Senhor zangado: em democracia?
Senhor contente: é um preso político, preso 10 meses sem razão… e continua preso
Senhor zangado: não tinha sido libertado?
Senhor contente: …preso em casa, sem poder sair …
Senhor zangada: em democracia?
Senhor contente: nesta democracia, preso sem razão…
Senhor zangado: quanto à razão os tribunais dirão; mas parece tudo uma questão de fachadas, a preservada do Heron, e depois a fachada da licenciatura, a dos negócios, a do governo…
Senhor contente: estás a dizer disparates
Senhor zangado: e agora a modesta fachada de uma moradia renovada por quase 1 milhão e com piscina interior aquecida, parece que foi isso…
Senhor contente: e o que tem você a ver com isso, com o sítio em que vive? Porque é que isso é importante? O que tem você e os outros todos a ver com isso?
Senhor zangado: devo ter, a crer no frenesim mediático à volta dela, da casa, quero dizer
Senhor contente: este processo é uma vergonha; a vida privada do José Sócrates, o que ele faz, a casa em que vive, o dinheiro que tem, só a ele dizem respeito
Senhor zangado: a ele e a 10 milhões de portugueses. Ou não queremos saber como ganhou tanto dinheiro um senhor que foi primeiro-ministro?
Senhor contente: e você a dar-lhe, e vocês a darem-lhe, é inveja, é o que é
Senhor zangado: acredita mesmo que o amigo do Sócrates lhe emprestava milhares sem receber nada em troca?
Senhor contente: qual é o mal de emprestar dinheiro?
Senhor zangado: a ver se nos entendemos, porque eu já não me entendo comigo mesmo: não é verdade que um amigo lhe deu, em segredo e durante anos, milhões de euros?
Senhor contente: milhões? Não sei. E se for, que mal tem? Há-de pagá-los
Senhor zangado: que mal tem?, como vai ele pagar sem fontes de rendimento visíveis?, e de onde vem o dinheiro do amigo, aliás administrador de uma empresa que negociava com o Estado?, e se era tudo normal porquê esquemas tão elaborados?, e o segredo…
Senhor contente: tudo normal, diz bem, o segredo era por causa da má-fé da direita, que montou esta cabala pois considera o José Sócrates o principal adversário
Senhor zangado: tinha de vir a política; então o principal adversário da direita não é o António Costa?
Senhor contente: vê?, lá estão vocês a intrigar, a querer pôr o José Sócrates contra o Costa; pois olhe, eles sempre foram grandes amigos
Senhor zangado (com um sorriso): a sério?, então o Costa está contente pelo facto do Sócrates ter saído da prisão nesta altura?
Senhor contente (carrancudo): contente, eu sei lá se está contente
Senhor zangado (mais sorridente): deve estar, é tão amigo dele
Senhor contente (com ar carregado): pois, está contente, está muito contente
Senhor zangado (ainda mais sorridente): e as eleições?
Senhor contente (com ar irritado): o que têm as eleições?
Senhor zangado (com ar quase contente): o Sócrates vai ajudar o Costa a ganhá-las?
Senhor contente (com ar quase zangado): claro que vai, claro que vai
Senhor zangado (com ar contente): e fica calado?
Senhor contente (com ar zangado): porque é que ele há-de ficar calado?, lá estão vocês
Senhor zangado: mas então o Sócrates vai falar?
Senhor contente: falar, mas porque que há-de ele falar?, lá estão vocês
Senhor zangado: então cala-se ou fala?
Senhor contente: sei lá, lá estão vocês,
Senhor zangado: mas quem são esses vocês de que está sempre a falar?;
Senhor contente: a direita, o PSD, o PP, essa gente; mas deixe-me gozar o momento
Senhor zangado: goze, goze, é mesmo o que tem de melhor a fazer
Senhor contente (num murmúrio): a direita, é tudo culpa da direita
Senhor zangado (com ouvidos de tísico): não sei se é esquerda se é direita, sei que um primeiro-ministro português é acusado de montar um esquema elaborado para enriquecer à nossa custa
Senhor contente: ou não…
Senhor zangado: ou não o quê?
Senhor contente: ou não montou nada, é tudo uma cabala, uma conspiração
Senhor zangado: por amor de…
Senhor contente: o José Sócrates é um preso político, ele próprio o explicou
Senhor zangado: e um homem eleito democraticamente, que governou na sequência de eleições, faz uma acusação dessas ao seu próprio país?… que é um preso político?
Senhor contente: foram estes, aqueles, eles montaram isto tudo, a cabala
Senhor zangado: estes? Olhe lá, meu amigo, empresta-me mil euros para eu ir até Ibiza este fim-de-semana?
Senhor contente: mas você julga que eu sou a Santa Casa?
Senhor zangado: e é só para começar. Eu um dia pago-lhe. Meu amigo …
PS. Quantos diálogos parecidos se têm sucedido em Portugal nos últimos dias? Todos os ouvimos e todos, ou quase, não lhes somos indiferentes. Sócrates ocupa o topo da notoriedade pública no nosso país e a sua saída da prisão de Évora potenciou essa notoriedade. E há depois a questão política: se o leitor se identifica com o senhor contente, são altas as probabilidades que simpatize com o partido socialista. Se for zangado, será provavelmente afim da Coligação. Faz sentido? Faz. Mas não devia fazer.
A prisão e a libertação de Sócrates não é o principal problema político do país. Rui Ramos aborda a questão num excelente artigo publicado neste jornal (*); pedi-lhe emprestadas (é um amigo) algumas das ideias plasmadas no diálogo acima. Mas o que devíamos estar hoje a discutir em Portugal devia ser o programa para governar o país nos próximos 4 anos e que protagonistas merecem a nossa confiança; e a seguir, de que modo participaremos na resposta à crise dos refugiados (e não vale a pena pensar que não nos afecta porque afecta e muito); ou como relançar o crescimento, de que forma mobilizar recursos para o investimento, o que fazer para acudir aos nossos pobres e desempregados; e ainda há o combate à corrupção, o enriquecimento sem causa de titulares, o défice do funcionamento da justiça (pois é) e tantos, tantos outros problemas.
Mas não. Num país em que responsáveis de jornais e jornalistas se queixam da escassez de recursos, é extraodinário que a vida de um cidadão, ainda que antigo primeiro-ministro, mobilize os poucos que existem. Um verdadeiro reality-show, servido em prime-time e em todos os times imagináveis.
Concordo com Rui Ramos: we need to talk about Sócrates. Mas o problema – e nisso dele discordo – é tudo menos político, ou devia sê-lo. O destino de José Sócrates deve agora decidir-se no seio do sistema judiciária e aí ficar até que tudo se esclareça (e que se esclareça depressa). Mas não faz sentido transformá-lo numa pop star, no principal motivo de interesse dos media, no cabeça de cartaz de eleições a que não concorre.
E não fica bem a Sócrates, que foi governante de Portugal, pôr em cheque a democracia portuguesa como ela faz, ao dizer-se preso político. Se não se lembra dos tempos em que havia presos políticos a sério, há já uma razoável colecção de textos sobre eles.
Inocente-se ou acuse-se e prove-se a acusação. Mas liberte-se a vida portuguesa do fantasma vivo de Sócrates.
(*) temos de falar menos sobre Sócrates