Haja quem pense bem em voz alta e depois quem não se importe de partilhar connosco reflexões e conclusões. Com selo de qualidade, como aqui fez Miguel Cadilhe. Qualidade intelectual, económica, profissonal, técnica. Repare-se na lucidez com que o ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva – por muitos considerados um dos melhores das últimas quatro décadas – radiografa a política e os homens; no modo como usa a sua experiência de vida para rever ou concluir; na originalidade de alguns dos seus propósitos, na frontalidade com que os disseca. A ler absolutamente.
P: A Troika partiu, ficamos sozinhos, entregues a nós mesmos. E agora? Como comenta este específico momento de transição da vida do país: ontem obedecíamos ao piloto, hoje temos de saber comandar o avião.
R: É um momento de discernimento, não de escuridão. As pessoas sabem hoje ver o essencial do problema, todos ou quase todos sabem o que aconteceu, ninguém ou quase ninguém vai esquecer a duríssima lição. Desta vez nada é comparável com as outras duas vezes…
P: …dos outros ajustamentos? Em 1978 e 1983?
R: Sim, pela mão calosa do FMI e onde estávamos ainda na ressaca do corte histórico do 25 de Abril. Desta vez a causa histórica nacional e abrupta do fim de regime não existiu. O que ocorreu foi uma crise internacional que se conjugou internamente com a incompetência e a imprudência de políticos que nos trouxeram até ao abismo. Temos o dever de o lembrar como se fosse um memorial de uma guerra ou de uma peste, ninguém de consciência há-de querer ver repetida a maré cheia de actos incompetentes e imprudentes.
O avião, como diz na alegoria da sua pergunta, é tecnicamente mais fácil de pilotar porque, por exemplo, quase tudo está inscrito em checklist que os pilotos da política orçamental têm obrigação de verificar e cumprir; e porque, na torre de controlo, as instituições de vigilância das finanças da República estão agora – só agora – muito mais atentas e actuantes do que estiveram até chegarmos à derrocada de 2011.
P: Aprenderam?
R: Também elas aprenderam que a passividade e a complacência, o porreirismo, uma espécie lusa de solidariedade partidária que subalterniza a independência, podem ter consequências gravíssimas.
O chamado “guião” da reforma é um acto de anti-astúcia, um acto de pura dissimulação política, um acto de tardio encobrimento de um falhanço.
P: Continuando a olhar para trás: como viu a actuação do Governo face à concretização do memorando da Troika? Aplaude o critério seguido, as prioridades, a conduta? Da sua “janela” do Porto como ia analisando o evoluir dessa caminhada?
R: Tenho um misto de sentimentos e juízos, positivos e negativos. Admito que a intervenção da troika possa ter sido demasiado impositiva, dura e pouco flexível, também admito que a postura do Governo possa ter sido demasiado cordata e receptiva. O pior foi, sem dúvida, o zero ou quase zero da “reforma estrutural do Estado”. Aí o Governo delapidou uma oportunidade única, de meados de 2011 a 2013. Como foi possível? Esta é uma dúvida sem resposta que ensombra o nosso futuro e não me deixa tranquilo… Como é que isto ocorreu? Falta de visão e estatura, mau aconselhamento, inexperiência? Medos e astúcias? O chamado “guião” da reforma é um acto de anti-astúcia, um acto de pura dissimulação política, um acto de tardio encobrimento de um falhanço.
P: De resto escreveu há dias sobre isso, aludindo à fábula da cigarra e da formiga para comparar o trabalho efectuado na aplicação do programa de ajustamento com o guião da Reforma do Estado, parecendo ficar subentendido que a formiga podia ser Carlos Moedas e a cigarra Paulo Portas.
R: Custa-me ver a governação de Passos Coelho nesta fotografia e mais me custa ver o meu país neste imenso impasse de estratégia. Bem vê, as despesas públicas ainda aguardam uma redução “estrutural” que as ponha em “tendência”sustentada e regrada, digo “tendência” no sentido próprio que os economistas usam. A tendência histórica da despesa do Estado é inviável, precisa de ser viabilizada por opções e mudanças políticas definitivas, de efeitos permanentes e irreversíveis, estruturais, lá está esta palavra imprescindível. Isso está por fazer! Ou seja, precisamos de estabilizar – e estabilizar não é estagnar nem estacionar – um padrão de evolução da despesa pública que tenha verdadeiramente em conta o seguinte: por um lado, a capacidade da economia portuguesa pagar impostos e gerar crescimento, isto é, que tenha em conta a difícil conjugação de esforço fiscal, PIB efectivo, emprego, PIB potencial, competitividade. E, por outro, que tenha igualmente em conta as regras europeias orçamentais e o quadro da política monetária que é da zona euro, não é nossa.
P: E ter ambas as coisas em conta passa inevitavelmente por onde? Ou passa por quê?
R: Passa inevitavelmente pelas funções do Estado e pelos regimes públicos – sublinho, funções e regimes – incluindo os regimes de financiamento por impostos, por taxas de “utilizador/pagador”, etc., e por dívida. Ora, as funções e os regimes não foram pelo Governo sistemicamente questionados e estruturalmente reconceituados, salvo nuns casos específicos do sector da saúde e pouco mais. Em suma, dir-lhe-ia que a nova tendência da despesa passa por um novo papel do Estado na sociedade e na economia, ponto final. E que as ideologias e os líderes se iluminem, segundo ponto final. A inteligibilidade nua e crua desta cruel “realidade imediata” deveria dar lugar a um grande acto de concertação social e política, acto estruturante do futuro, de que se fala mas se pratica nada, literalmente nada.
Chego a pensar que temos dois centros concomitantes de concertação e desconcertação, acerto e desacerto. Um, menor, nem é órgão de soberania, mas dá-nos exemplos magníficos, é o Conselho de Concertação Social, que congrega e concerta acordos entre parceiros sociais. O outro, muito mais poderoso, é o Parlamento, que desagrega e desconcerta consensos entre partidos.
P: Deveria…
R: Mas a propósito do nu, cru, cruel e imediato, sabe a Maria João como acabava um livro meu sobre a reforma do Estado e o dilema do reformador? Com a “Carta ao Futuro” do Vergílio Ferreira: “Ah, a realidade imediata reconforta, nem que seja a realidade de uma pedra que nos atirem.” A democracia não gosta da ilusão, desconforta-se com ela, mas muitas vezes os políticos não são capazes de, a tempo, atirar a pedra que reconforta. Eis um erro fatal para todos nós. Chego a pensar que temos dois centros concomitantes de concertação e desconcertação, acerto e desacerto. Um, menor, nem é órgão de soberania, mas dá-nos exemplos magníficos, é o Conselho de Concertação Social, que congrega e concerta acordos entre parceiros sociais. O outro, muito mais poderoso, é o Parlamento, que desagrega e desconcerta consensos entre partidos.
P: O povo português é capaz do melhor, as elites, menos. Olhando para estes três anos não lhe parece que o povo aguentou o mais difícil enquanto as elites – com algumas honrosas excepções – preferiram não dar a cara ou pura e simplesmente se demitiram do seu papel?
R: Não vejo as coisas assim.
P: Pergunto então: que análise faz da elites portuguesa? Não me refiro concretamente aos ultimos três anos, mas de modo geral? Como as caracterizaria?
R: Conhece o fenómeno do descolamento, de descolar? Não digo deslocamento, digo deslocar. Bem, vou tentar explicar a ideia: se fossem muito melhores, as nossas elites poderiam sê-lo por quanto tempo? Não sei responder com certezas. Talvez se descolassem do país, talvez houvesse um tempo de desconcertos e desentendimentos, em que as palavras inteiras não bastassem, muito menos as meias palavras dos bons entendedores, mas tudo depois pudesse voltar. Voltar de um modo ou de outro – suave ou rude, conseguido ou frustrado – às devidas proporções e entendimentos. Por vezes, lá surge uma elite especial, um escol, digamos uma elite dentro da elite, um grupo tão esforçado e clarividente, tão deslocado, que me faz lembrar aquele rio que anda de jusante para montante, da foz para a nascente, quando o grosso da coluna “elítica” e a população vão como os nossos rios, na sua natural correnteza.
P: E não se pergunta quem está certo?
R: Pergunto: a escassa elite ou a elite abundante? Talvez a resposta seja uma e outra, ou talvez seja nem uma nem outra. Ou talvez no meio esteja a virtude.
P: A austeridade pode ter matado a política como se pretende? Considera que as troikas que entraram em acção desde 2011 em alguns países daEuropa se esqueceram que os seus mandamentos teriam forçosamente pesadas consequências políticas?
R: Não penso que a sequência seja assim. Talvez seja a política quem mata a política, depois há que chamar troikas para salvar e ressuscitar a política. Entre a chegada das troikas e a ressurreição da política decorre um tempo de trevas troikianas. São trevas intercalares. As troikas conhecem bem tudo isto e, parece-me, tentam salvaguardar um mínimo de conveniências e aparências políticas. Nem sempre o conseguem, sobretudo quando, por exemplo, têm de fazer prevalecer a dureza e a pressa na tomada das medidas.
P: E como é que o ex-brilhante Ministro das Finanças, Miguel Cadilhe, apreciou a actuação da equipa das Finanças, primeiro com Vitor Gaspar, depois com Maria Luis Albuquerque?
R: Globalmente bem. Estrategicamente mal, ou nem sempre bem. Houve motivos de discordância, por exemplo, no infelicíssimo episódio da TSU que agravava a parte do trabalhador e desagravava a parte patronal, em plena situação de crise e de perdas, ameaças e iminências sociais. Ou no uso exorbitante da carga fiscal para reduzir o défice. Ou na ausência quase absoluta da grande reforma do Estado, de que já falámos.
P: Há pelo menos um ponto – fulcral, aliás – que o separa do “entendimento” da coligação: a questão da dívida. Sabe-se que Miguel Cadilhe defenderia uma “restruturação honrada” da dívida. Que significa exactamente isto?
R: A “renegociação honrada” – não uso a palavra reestruturação – é sobre uma parcela da dívida e significa que o Estado português acorda com a Europa pagar-lhe todo o capital mas com menos juros e muito mais tempo. E significa, simultaneamente, a vinculação de Portugal a um pacote de medidas e reformas estruturais e a um plano de uns dez anos de políticas de crescimento. Defendi e defendo esta ideia da renegociação honrada, nestes termos integrados e articulados, desde 2012.
P: Não ignorará que o ex ministro das Finanças, Vitor Gaspar, negociou por duas vezes melhores prazos e juros, chegando aliás a obter uma coisa e outra?
R: Sim, com mérito, porém não chega. Julgo, aliás, que não me referia a outra coisa quando em Serralves e depois no Expresso, por exemplo, no outono de 2012, falei de negociações em recato institucional e disse que algumas delas, pequenas, até já estavam a dar frutos. Sabemos que a dívida troikiana foi melhorada pelo menos duas vezes nos juros e nos prazos. Mas, repito, isso não chegava, nem chega. E antes de isto ser um juízo de valor – digo “de valor” porque entendo que a Europa tem co-responsabilidades –, é um juízo de facto que a matemática me impõe.
P: Disse isso a Gaspar alguma vez? Falaram? Eu lembro-me que quando ele deixou a pasta das Finanças, Miguel Cadilhe escreveu no Público, no verão de 2013, um artigo muito lúcido mas finalmente elogioso sobre a actuação de Vitor Gaspar...
R: Falámos pouco.
P: Voltando a si: que distingue – exactamente – a sua proposta das ideias contidas no Manifesto dos 74?
R: Desde logo, a data de aparecimento, a carga de honradez e o pacote reformista. Vejamos. O manifesto dos 74 converge, parcialmente, com a minha proposta. Primeiro, alguns dos seus autores fizeram-me saber que, na versão final, a alusão à honra, na expressão “reestruturação honrada e responsável da dívida”, foi inspirada na minha proposta. Segundo, as duas propostas excluem os chamados “perdões de dívida”: a minha fá-lo inequivocamente, a do Manifesto não tanto, suponho que é uma questão de grau, mas teria de o reler de novo. Terceiro, uma parcela da dívida pública total passaria para entidades europeias: o montante seria apenas 39% ou 40% da dívida total na minha proposta, ao passo que os 74 abrangeriam mais de metade da dívida. Quarto, o juro sobre esta parte da dívida, europeizada, chamemos-lhe assim, seria 1,9% na minha proposta, já no Manifesto seria sujeito a “abaixamento significativo”…
Esse compromisso reformista e a renegociação honrada da dívida constituem o que tenho chamado o repto europeu do reformador. O manifesto dos 74 omite por completo o reformismo que me é muito caro
P: Mas não sabemos quanto…
R: Quanto, os 74 não dizem. Quinto, o prazo converter- se-ia em “quase perpetuidade” na minha proposta e em “40 ou mais anos” no Manifesto, não andam longe uma coisa da outra como nos mostra a matemática financeira. Sexto – e aqui chegamos ao ponto mais crítico e que mais nos afasta – que é o compromisso reformista interno. A minha proposta é indissociável de um conjunto bastante maior de medidas estruturais e de um programa multivalente, incluindo a reforma estrutural do Estado, que infelizmente continua por fazer, como já falámos. Esse compromisso reformista e a renegociação honrada da dívida constituem o que tenho chamado o repto europeu do reformador. O manifesto dos 74 omite por completo o reformismo que me é muito caro.
P: Que opina então sobre o conteúdo e a oportunidade desse Manifesto? Deu-lhe que pensar a “impossível” variedade ideológica e política do seu grupo de assinantes?
R: Vi com respeito a iniciativa, mas não a subscrevi pelas razões que se prendem com as diferenças entre a minha ideia e a ideia dos 74, que vimos há pouco. Dito isto, também não escondo que me surpreenderam as transversalidades do Manifesto e o denominador comum dos 74 assinantes, de Adriano Moreira a Louçã. Haverá quem veja a força do manifesto onde outros verão a fraqueza do manifesto, mas por mim, um tanto perplexo, vejo ambas, força e fraqueza.
P: Não estranha que gente informada e com experiência no domínio das Finanças pareça desconhecer que só com um orçamento equilibrado não se aumenta a dívida?
R: Não dei por isso, se tivesse dado teria estranhado. Claro é que estamos a falar da dívida em valor absoluto e a ver essa equação “caeteris paribus”, como se usa dizer nas análises económicas, ou seja, tudo o mais inalterável. Por exemplo: poderemos diminuir a dívida se consignarmos ao pagamento do capital as receitas das privatizações, hipótese que defendo. Ou se houver perdão de parte da dívida, hipótese que não defendo. Se, por outro lado, olharmos para a dívida em valor relativo, comparando-a com a produção do ano, então já estaremos a falar do rácio “dívida pública/PIB”, que é o que mais releva para as regras europeias, para os credores e para o programa da troika. E então já teremos de refazer aquela afirmação que integra a sua pergunta e entrar em jogo, como é sabido, com a taxa média de juro de todo o stock da dívida (quanto menor, melhor), a taxa de crescimento do PIB real e a inflação (quanto maiores, melhor), o saldo orçamental primário (quanto mais positivo, melhor). Estas são as variáveis explicativas da intricada equação da dinâmica da dívida.
P: A propósito de tudo isto: de vez em quando lembra-se que titulou as Finanças no primeiro governo de Cavaco Silva? Como olha para esse seu tempo político? Com que tipo de atitude? Nostalgia? Alivio? Um assunto encerrado? Uma certa e não confessada vontade de voltar?
R: Sim, naturalmente que me lembro, são sempre umas lembranças de satisfação pelo trabalho realizado. Agora, decorridos todos estes anos, talvez o possa dizer mais abertamente, sem riscos de parecer juízo em causa própria… Olho como um caso de boas práticas de gestão das finanças públicas e de boa condução das políticas macroeconómicas. E como um caso de elevada densidade de reformismo, caso raro, talvez único, nos quarenta anos do regime. Infelizmente, o meu trabalho não teve depois bom seguimento, custa-me constatá-lo e, a bem dizer, não deveria ser eu a dizê-lo. Por exemplo, deixei um caminho delineado e lançado de reforma do Estado-administração como contrapartida e compensação da despesa do “novo sistema retributivo” da função pública, que havia sido iniciativa do primeiro-ministro Cavaco Silva. Incluía, por exemplo – veja bem a “pedra” do Vergílio Ferreira atirada naquele tempo – as auditorias externas e independentes de gestão e recursos dos serviços públicos, a fim de detectarmos despesismos, excessos de meios, margens de ganho de produtividade, comedimentos orçamentais, fusões, encerramentos, etc.
P: Mas que ocorreu a seguir?
R: Tudo foi abandonado no silêncio dos tempos e dos anticorpos, a minha saída das Finanças também teve a ver com isso, suponho. Se esse caminho reformista tivesse prosseguido, não teríamos chegado ao ponto desmedido de desregramento e rotura em que a troika nos encontrou uma vintena de anos depois.
P: E a política? Que é para si? Interessa-lhe, segue-a, procura intervir? Sei que assina uma crónica semanal num jornal do norte mas para além disso?
R: Sigo a política com interesse, sempre segui desde os tempos de estudante. O primeiro artigo que publiquei foi “O Arranque da inflação portuguesa”. Escrevia-se então, muitas vezes mais nas entrelinhas do que nas linhas, mas deixei claro nesse texto que uma das causa da inflação era o volume das despesas militares, estávamos em guerra em África desde 1961. Ora, esta era das tais teses que não podiam ser ditas. O escrito não me trouxe represálias, ainda que o artigo tivesse saído num boletim do BNU, em 1972, dois anos antes do 25 de Abril, estava eu a cumprir o serviço militar de quase quatro anos. Voltando à sua pergunta, louvo aquilo de que gosto e reprovo aquilo de que não gosto.
P: E intervir?
R: Intervir, sim, escrever sobre problemas nacionais, sim, esta é a minha forma de estar sem estar na política. Julgo que, quando lá estive, procurei ser um governante reformista verdadeiro, talvez arrojado demais, talvez de algum modo descolado das elites da correnteza, no sentido que atrás dei. Isso teve custos. Fui atacadíssimo, como decerto a Maria João se recordará. Foi nesse tempo em que titulei as Finanças que dei por mim a declarar “quem semeia reformas, colhe tempestades”. Por alguma forte razão parafraseei a voz do povo, porque, de facto, as reformas e as mudanças realizadas estavam a sair-me tempestuosas. Às tantas a luta era desigual, outras partes usavam todos os meios, mesmo meios bastardos. Há meses, um dos jovens sacanas dos tempos do Independente – julgo que o Miguel Esteves Cardoso –, num admirável gesto de redenção e humildade, confessou que ele e outros haviam cometido atrocidades e atropelos, haviam mesmo chegado ao ponto intolerável de inventar umas coisecas contra pessoas.
Nos partidos há de tudo, há também interesses e motivações que pisam ideias e ideais fundacionais, acho que não me sentiria bem lá dentro ou, se quiser, eles não se sentiriam bem comigo. Não tive e não tenho, muito menos agora, pachorra para conviver com isso.
P: Sabia-se que tinha saído magoado do governo, não se sabia que algumas feridas se mantinham porém abertas. Continuando: ainda se lembra que é do PSD? Qual a relação que mantém hoje com o seu partido?
R: Pago quotas e é praticamente tudo. As elites da estrutura organizativa do PSD dizem-me muito pouco, acho que foi quase sempre assim, sem com isto pretender pôr em causa a consideração que tenho pelas pessoas que exercem seriamente, dedicadamente, funções nos partidos, longe de mim tal coisa. Nos partidos há de tudo, há também interesses e motivações que pisam ideias e ideais fundacionais, acho que não me sentiria bem lá dentro ou, se quiser, eles não se sentiriam bem comigo. Não tive e não tenho, muito menos agora, pachorra para conviver com isso.
P: Seja como for é importante ouvir-se a voz de alguém como Miguel Cadilhe: como analisa os vários protagonistas em cena? O Presidente da República? A Coligação (PSD e CDS), o PS, as oposições?
R: Apesar de tudo, a cena é muito pior do que os protagonistas. Na sua pergunta, poria à parte o presidente Cavaco Silva porque, apesar de alguns erros e demasiadas omissões, me parece que em geral esteve acima dos restantes protagonistas do sistema político. Constitucionalmente, e vendo em abstracto o órgão de soberania, todos sabemos que o PR é uma figura do sistema relativamente bem resguardada, talvez demasiado resguardada. E como se isso não bastasse, por vezes emergem, no concreto, diferentes leituras do resguardo constitucional, que não é preto no branco. Dúvidas e problemas surgiram ao longo dos quase quatro decénios do regime democrático, quando essa leitura se deixou inclinar mais para um dos lados, seja o de maior resguardo, seja o de menor resguardo do exercício dos poderes do Presidente. Entretanto, os poderes institucionais do PR foram reduzidos por revisão constitucional, ou seja, os parlamentares enfraqueceram a capacidade e a função presidencial e mitigaram a separação de poderes entre órgãos de soberania, em detrimento de um deles, por sinal de eleição directa e universal que é o máximo da representatividade democrática. Do mesmo passo, ampliaram os resguardos do PR. Não estou seguro de que um tal resguardo do PR tenha sido a melhor escolha para a democracia e, em particular, para a saúde das finanças públicas.
Não estou seguro de que um tal resguardo do PR tenha sido a melhor escolha para a democracia e, em particular, para a saúde das finanças públicas.
P: E que retrato tira a Antonio José Seguro? Como olha politicamente para ele e para a eventualidade de um novo primeiro-ministro e de um outro governo em 2015?
R: Não sei, estamos a pensar nas eleições legislativas, mas francamente não sei se o governo PS – sozinho ou coligado – será um acontecimento provável em 2015. É aquilo a que nós, na teoria das probabilidades, chamamos uma “probabilidade condicionada” por uma dada informação. E qual é a informação autenticamente condicionante? Penso que é pouca e é frágil, sobretudo é, por ora, de ajuizamento muito incerto. Repare, por exemplo, nas causas e nas consequências troikianas.
A grande massa dos eleitores é-lhes muito sensível e sobre elas revela bom senso que, julgo, anda muito acima das conjecturas e das sondagens. Falando das próximas legislativas: o eleitor vai responsabilizar quem pela acção da troika? Quem provocou a vinda da troika, o PS até meados de 2011? Ou quem se amancebou com a troika, o PSD & PP depois das eleições de 2011? Ou todos eles? Todos, por exemplo, poderão vir a sentir os efeitos do não-voto ou do voto descrente, cansado, decepcionado, protestado, desalinhado… Voltando à sua pergunta, verei Seguro ou Passos sem surpresas de maior. Mas reconheço que há uns anos ficaria imensamente surpreso se me dissessem que Seguro haveria de ser PM… simplesmente porque eu não tinha dado conta do homem assim dimensionado, nem dos seus feitos nem dos seus méritos e deméritos. Bem vê, para o mal e para o bem, Seguro faz parte das tais elites coladas ao país, é um facto. E nós temos de saber lidar com factos e com ideias, não com ficções e idealismos, se bem que não devamos pôr de lado uma certa dose de idealismo, de visão e ambição. E algum tempero de boa utopia, que a utopia só o é enquanto a realidade não se afeiçoa a ela.
Bem vê, para o mal e para o bem, Seguro faz parte das tais elites coladas ao país, é um facto. E nós temos de saber lidar com factos e com ideias, não com ficções e idealismos
P: A propósito de oposição socialista: um dos seus argumentos mais constantes é a bondade do PEC IV. E, no entanto, nunca houve provas documentais de que a UE ou Merkl o aplaudissem ou defendessem nem de que a sua viabilização fosse salvífica. O que se sabe mas pouco se diz é que as exigências contidas no PEC IV em termos de números, prazos e exigências eram draconianas – quase tanto ou porventura mais que as do Memorando da Troika.
R: A sucessão de PEC I, II, III, IV, foi um desespero e talvez uma inconsciência. Sigo aquela comparação que imagino alguém já fez: foi como a prova do péssimo aluno que vai a exame à 1ª época e chumba, vai à 2ª época e chumba, vai a uma repescagem extraordinária e chumba; então, completamente desacreditado perante os outros, que não perante si próprio, mete um requerimento para lhe ser concedida a passagem administrativa. Sabe como vejo tudo isto? Vejo como um fruto, mais um, da tenebrosa cultura do facilitismo que avassalou o país durante anos.
P: Como analisa o resultado das eleições europeias em Portugal? E qual a sua opinião sobre o novo mapa do Parlamento Europeu? Que consequências?
R: Acho que a Europa tem, finalmente, um excelente pretexto reformista. Abre-se a grande porta do reformador europeu, com outras necessidades e outras possibilidades, outros riscos também. E se não houver rasgo e prudência, que é um casamento feliz mas invulgar, o reformador escancarará uma incógnita na zona euro. Quanto a Portugal, acho que o país não premiou o PS nem castigou o Governo, no fundo soube distinguir responsabilidades, as da derrocada em 2011 e as da superveniente e consequente austeridade. Aquela responsabilidade é muita do PS. Esta – austeridade – é muita do Governo e da Troika. Afinal, até certo ponto, os eleitores demonstraram compreender a missão e a obstinação de Passos Coelho. Compreensão não é adoração, bem sabemos, mas o que se me afigura é que Passos não é, de modo nenhum, um dos derrotados das eleições de domingo, quem o vir assim, vê muito perto. A abstenção, essa é um sinal do fastio que vem de longe, sem remédio à vista. E de resto, saúdo o desalinhamento de Marinho Pinto.
P: E que comentário faz a este avanço de Antonio Costa? À terceira é de vez?
R: Não me pronuncio, nem comento. Mas interrogo-me: qual teria sido o desempenho eleitoral do PS se Costa tivesse estado no lugar de Seguro a gerir a herança da derrocada de Sócrates que os eleitores não esqueceram?
P: Terminemos com o ar do tempo: já leu Thomas Piketty? Reconhece utilidade no debate provocado pela publicação do livro?
R: Não li o livro “O Capital “de Piketty, li várias recensões e críticas. As duas primeiras foram inseridas num mesmo número, veja só o inusitado, da revista Economist de há umas semanas. Não sei se o livro será um êxito efémero ou se deixará nome gravado na história do pensamento económico. Se o deixar, deixá-lo-á igualmente na do pensamento político, por causa das matérias tratadas. Espanta-me o alarido e tenho curiosidade, talvez o leia em breve. Estudei, como economista, nos anos setenta, o livro homónimo “O Capital” de Marx, livro maçudo, fez furor e temor intelectual e político, como é conhecido, provocou factos e tumultos, nos fins do século XIX e parte do século XX. Piketty diz-se não marxista, a ver vamos. O seu livro poderá conter um pequeno e parcial encontro de ideias, não propriamente de motivações, com o bendito e maldito imposto “one shot” sobre a riqueza líquida que propus para Portugal em 2011, a fim de consignar a receita, por definição única, à amortização extraordinária de parte da nossa dívida pública. Esta ideia reapareceu em relatórios e declarações internacionais, mas por cá deu alguma polémica e adormeceu…