O ano lectivo acaba hoje para a maior parte dos alunos do ensino básico e secundário. Bom pretexto para recordar o que se passou no sector da Educação em três anos de troika.

As medidas pedidas para a educação no memorando de entendimento eram poucas e pouco detalhadas. A troika pedia, para a educação, um corte inicial, em 2012, de 195 milhões de euros e de 175 milhões em 2013 -isto é, 370 milhões só nos dois primeiros anos. Esta poupança devia ser atingida através da “racionalização da rede escolar, criando agrupamentos escolares, diminuindo a necessidade de contratação de recursos humanos,centralizando os aprovisionamentos, e reduzindo e racionalizando as transferências para escolas privadas com contratos de associação”.

Na segunda avaliação da troika, em dezembro de 2011, o objetivo de 2012 foi alargado para 380 milhões de euros. No final, depois dos três anos do período de intervenção externa, se compararmos os valores executados nos orçamentos de 2010 e 2013 nos ensinos básico e secundário, a quebra é na ordem dos 1000 milhões, mas esta diferença integra os cortes do PEC3, anteriores à chegada da troika. Se considerarmos só o período entre 2011 e 2013, a redução na despesa foi sensivelmente de metade, 500 milhões. Ou seja, o corte maior ainda foi o realizado pelo governo anterior e resulta, no essencial, do corte salarial previsto no PEC3, o único que sobreviveu às várias sentenças do Tribunal Constitucional.

Passamos em revista as principais mudanças na educação em três anos de troika:

1. Redução do pessoal docente e não docente

Os cortes ao nível dos recursos humanos representam mais de metade do total de cortes na educação. Até setembro de 2013 tinham saído do sistema quase 26 mil professores e mais de 5000 funcionários não-docentes. Esta redução no número de professores foi conseguida sobretudo através de aposentações e da não renovação de contratos. A reestruturação dos agrupamentos escolares permitiu reduzir os horários zero e os horários reduzidos. Houve também um aumento do número máximo de alunos permitidos por turma (de 28 para 30) e procedeu-se ao redimensionamento dos Quadros de Zonas Pedagógicas (de 23 para 10). Nalgumas áreas a revisão curricular também permitiu reduzir o número de professores.

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Mesmo assim, segundo David Justino, antigo ministro da Educação e presidente do Conselho Nacional de Educação, o principal impacto “das medidas adotadas sob o chapéu do programa de resgate” está relacionado com a alteração dos vencimentos. Foi isso que provocou a maior redução na despesa do MEC, diz. “Todos os outros impactos são mais reduzidos”, defende David Justino.

2. Rede escolar

Relativamente à racionalização da rede escolar, logo em agosto de 2011, o ministro Nuno Crato anunciou o encerramento de 297 escolas do 1º ciclo com um número reduzido de alunos, prosseguindo uma reforma que vinha dos governos anteriores. Um ano mais tarde, é anunciado o fecho de mais 239 escolas. De acordo com o MEC, os dados provisórios para o ano letivo de 2013/2014 apontam para 142 escolas encerradas. No total foram fechadas 612 escolas primárias. Em 2013, o MEC concluiu o processo de fusão de escolas que levou à criação de mais de 300 agrupamentos, alguns deles com mais de 3000 alunos (mega-agrupamentos).

3. Mudanças nos currículos

A revisão curricular não foi pedida pela Troika, correspondia ao programa e às ideias do novo ministro da Educação, um conhecido adversário do chamado “eduquês”. No ano letivo de 2011/2012, Nuno Crato aumentou a carga horária de Português e Matemática no 2º e 3º ciclos. Nesse ano desapareceu a área projeto. Para o ano seguinte, Nuno Crato anunciou uma revisão curricular que implicou o aumento do tempo das aulas de Português e Matemática no 12º ano, da História, Geografia no 9º ano e das Ciências e Físico-Química em todo o 3º ciclo. Acabou o par pedagógico de Educação Visual e Tecnológica (EVT).

João Barroso, especialista em políticas de investigação e educação da Universidade de Lisboa e um defensor do modelo antigo, critica a “pouca importância dada às aprendizagens não fundamentais no ensino obrigatório” e a “insistência nas aprendizagens básicas, ignorando toda a dimensão afetiva, relacional, criativa e artística para valorizar a Matemática e o Português”.

Já David Justino sustenta que, independentemente de saber se “estava na troika ou não”, o que foi feito “tinha de ser feito”. Segundo o antigo ministro da Educação, Portugal “não é um país tão rico que se possa dar a esse luxo”. Refere-se, essencialmente, à eliminação do par pedagógico EVT: “Porque é que tenho par pedagógico a EVT e não a ciências, matemáticas, seja o que for…?”

4. Peso da avaliação

Foi um das apostas fortes do ministério de Crato. A partir do ano letivo 2011/2012, os alunos do 6º ano passaram a ter de realizar um exame final com um peso de 25% sobre a avaliação. No ano letivo seguinte, esse peso subiu para 30%. Aconteceu o mesmo no 4º ano que, em 2012/2013, passou a ter também uma prova final a contar para a avaliação. Estas novidades não estavam previstas no memorando de entendimento e correspondem à “cultura de rigor e avaliação em todos os níveis de ensino” defendida pelo ministro.

João Barroso fala numa “obsessão pela avaliação que é uma tendência em vários países”. Na sua opinião isso teria “efeitos perversos” que são os de “reduzir o âmbito da realidade aquilo que pode ser medido, deixando de fora as aprendizagens mais informais” e de “introduzir alterações no currículo que decorrem do desejo de preparar os alunos para o exame”.

Carlos Fiolhais tem outra opinião sobre a questão dos exames. Para o físico e professor universitário, “o sistema tem de perceber se os alunos aprendem e se não houver provas normalizadas a nível nacional, não é possível fazer comparações”. O professor defende que os exames não podem limitar-se ao 12º ano porque isso seria “demasiado tarde” e também não acha que exames mais cedo “traumatizem as crianças”. “Um bom professor não vai ser apenas um explicador daquilo que vem nos exames”, diz Carlos Fiolhais relativamente à ideia de que a preparação para o exame retira tempo a outras aprendizagens.

No entanto, o físico e professor não tem certezas na altura de dizer se há mais exigência. E dá o exemplo dos resultados dos exames do 4º e 6º ano, divulgados esta sexta-feira. Carlos Fiolhais pensa que a melhoria de 13 pontos (de 49% para 62,2%) registada na prova de português é excessiva. “Ou houve facilitismo ou a prova não está muito bem feita. Os alunos não mudam assim tão facilmente de um dia para o outro”, diz. “O discurso da maior exigência por vezes não encontra correspondência prática. Este ministro não está nada a ser mais exigente”, defende Carlos Fiolhais.

Ainda no âmbito desta cultura de rigor e avaliação, o MEC decidiu retomar a prova de avaliação de professores, já prevista pelo governo anterior, e que se realizou em dezembro de 2013 no meio de muitos protestos e contestação. A Fenprof marcou uma greve e como resultado 40% dos 13 500 professores não realizaram a prova, que foi suspensa por um dos vários tribunais a que os sindicatos recorreram. Essa decisão foi contestada pelo Ministério da Educação, tendo o Tribunal Central Administrativo Sul acabado por deliberar a favor do MEC, levantando os entraves à realização da prova.

O Observador contactou o Ministério da Educação para saber se já há uma nova data para a realização da avaliação e recebeu a seguinte resposta: “O Ministério irá realizar as diligências para que o processo seja retomado, com tranquilidade, mas com a certeza da sua importância para a qualidade do ensino e do futuro dos nossos alunos”.

5. Autonomia das escolas

Em fevereiro de 2013, Nuno Crato apresentou um documento que previa o aumento da autonomia das escolas, com a possibilidade de as escolas gozarem de maior flexibilidade na gestão dos currículos e dos horários. As escolas que assinam contrato de autonomia com o MEC passaram de 23 para 212.

A questão da autonomia das escolas também não está relacionada com a troika e vem de trás. O primeiro destes contratos foi celebrado ainda com o ministro David Justino. No final do mandato de Maria de Lurdes Rodrigues, havia 23 escolas com contratos de autonomia.

Para João Barroso, que fez a proposta da qual resultou o Regime de Autonomia, Administração e Gestão das Escolas e Agrupamentos de escolas, durante o ministério de Marçal Grilo, os contratos de autonomia existentes são muito “esvaziados de conteúdo”.

Carlos Fiolhais pensa que a autonomia “existe no papel mas não na prática”.

6. Ensino profissional e formação de adultos

A aposta no ensino profissional era uma das grandes questões defendidas no memorando de entendimento que pedia um plano de ação com o objetivo de criar parcerias com as escolas e as empresas. O ensino profissional é também uma das bandeiras do Governo, que tem o objetivo de ter 50% dos alunos inscritos no ensino obrigatório nesta via.

Foram extintos os Centros Novas Oportunidades e, em janeiro de 2013, foi anunciada a abertura de Centros para a Qualificação e o Ensino Profissional (CQEP). Em novembro de 2012, Crato assinou um acordo com a Alemanha para permitir o intercâmbio de formadores e estudantes com o objetivo de adaptar o modelo dual alemão – em que os jovens passam parte do tempo da formação nas escolas e outra parte nas empresas – à realidade portuguesa.

Em abril de 2014 foram criadas as escolas de referência empresarial, onde se pretende um grande envolvimento das empresas na adaptação dos currículos, por exemplo. Estas escolas ainda não deverão arrancar no próximo ano letivo, ao contrário dos cursos técnicos superiores profissionais nos institutos politécnicos, com duração de dois anos, que vão começar em setembro de 2014.

7. Contratos de associação

O memorando de entendimento pedia uma redução dos contratos de associação – que visam permitir aos alunos de zonas geográficas sem escolas públicas a possibilidade de frequentar o ensino privado de forma gratuita. No ano letivo 2010/2011 havia 198 escolas com contrato de associação. Em 2014 eram 149 e já foi anunciada uma redução do número de turmas subsidiadas para o próximo ano letivo. Houve igualmente uma diminuição das verbas para as turmas contratadas. O MEC alterou a legislação relativa aos contratos de associação e eliminou a obrigatoriedade de o financiamento depender da inexistência de capacidade de resposta do ensino público.

8. Ensino Superior

No ensino superior a grande alteração ocorreu em janeiro quando foram conhecidos os resultados das candidaturas a bolsas de doutoramento e pós-doutoramento atribuídas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). No caso dos pós-doutoramentos, só 233 cientistas receberam bolsas entre 2305 candidaturas. Há quem fale numa mudança de paradigma: em vez de serem atribuídas bolsas individuais, são financiadas bolsas coletivas. Há quem critique essa conceção, defendendo que esse tipo de financiamento acaba por orientar a investigação e privilegiar determinados campos de estudo. Pouco depois, em fevereiro de 2014, a FCT anunciou a atribuição de mais 300 a 350 bolsas de doutoramento e pós-doutoramento.

David Justino pensa que o “esforço de racionalização” feito na educação ficou por fazer no ensino superior: “continuamos a mandar pessoas para o desemprego para alimentar uma oferta de ensino superior que é excessiva. Em determinadas áreas o mercado não tem capacidade de absorção do número de licenciados que existe”, diz.

Qual o balanço?

Apresentadas as principais mudanças, qual é o balanço de três anos de educação sob a troika?

Ana Benavente, antiga secretária de Estado da Educação no primeiro Governo de António Guterres, pensa que estamos a assistir, “ao desmantelamento da escola pública tal como ela foi projetada nas últimas quatro décadas”. “O ensino privado está a ser financiado como nunca e está a ser-lhe atribuído um papel que nunca teve na sociedade portuguesa e que é extremamente negativo quanto a mim”, diz a investigadora no Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação.

David Justino recusa a ideia de que a educação está “uma desgraça” e diz que os “indicadores do desempenho” não transmitem essa imagem: “Que eu saiba, as escolas continuam a funcionar, as aulas estão a ser dadas, os currículos estão a ser cumpridos. Isso para mim é que conta”, diz. Para o antigo ministro da Educação, “mais despesa em educação não significa que haja mais investimento. Pode significar que há mais desperdício”.

João Barroso é “bastante crítico da política educativa” dos últimos três anos e pensa que os “efeitos negativos” provocados por “cortes cegos e sistemáticos quer de dinheiro, quer de pessoal docente” vão demorar algum tempo a fazer-se sentir no sistema porque não há uma “relação linear e automática entre os cortes e os efeitos negativos”.

Para o especialista em políticas de educação, estes cortes não têm apenas um efeito sobre o “funcionamento normal do sistema, mas impossibilitam acrescentar ao sistema aquilo que permitiria democratizá-lo e combater a desigualdade”. Segundo Barroso, esta crise acontece no momento em que “todos os países estão a enfrentar os grandes desafios do futuro e precisam de proceder a uma alteração da educação”. João Barroso pensa que o clima que se vive impede que se pense “o futuro” e as “transformações profundas” que são necessárias na educação.

Igualmente crítico é Carlos Fiolhais que considera que as mudanças não são positivas. “Instalou-se um ambiente de compressão do ponto de vista financeiro que tem consequências óbvias na atmosfera em que se vive”, diz, acrescentando que tem conhecimento que os professores “não estão satisfeitos” e estão “saturados” e que isso se traduz num “mal-estar” no sistema educativo. “O rolo compressor da troika passou por aqui e a escola está a ser bastante amassada”, diz.

“Gostaria muito que a educação estivesse melhor e não me parece que esteja”, continua Carlos Fiolhais, que critica a ausência de um “discurso estrutura do Ministério de Educação”.