Qual é a criança que não quer brincar? Que não quer correr atrás da bola para a meter na baliza e, em caso de golo, levantar os braços em sinal de festejo? Uma criança que não brinca é uma criança doente. Não somos nós que o dizemos, antes Paulo Sargento, psicólogo e diretor da Escola Superior de Saúde Ribeiro Sanches. É que o ato vai muito além de entretenimento garantido ou de gargalhadas voluntárias, uma vez que brincar é crescer e perceber como funciona o mundo em que vivemos. E se tal não é necessariamente sinónimo de brinquedos, o que acontece quando uma criança tem muito, até demais, por onde escolher? 

Vamos por partes. Divertir, entreter, gracejar, galhofar ou brincar é meio caminho andando para garantir o desenvolvimento dos mais pequenos, seja a nível socio-emocional, psicomotor ou cognitivo. A isso, acrescenta-se que as brincadeiras devem seguir três etapas evolutivas: as atividades que geram ação (quando um bebé atira um brinquedo ao chão está a ter uma primeira noção da lei da gravidade), as simbólicas (pegar numa vassoura e transformá-la num cavalo é um exercício de imaginação) e as que exigem regras (os jogos de computador e os de tabuleiro ajudam a perceber que a vida rege-se por um conjunto de normas).

Não sobram dúvidas — se é que elas existiam — de que brincar faz bem à saúde e recomenda-se tanto a miúdos como a graúdos. Mas nem tudo é um mar de rosas. Considerando as sociedades atuais e ocidentais, talvez não seja muito difícil encontrar lares cujos quartos estejam cheios de brinquedos — desde o antigo cavalo de madeira baloiçante às novas naves de Lego dos filmes Star Wars. Tanto um como outro representam momentos de lazer favoráveis, mas o mesmo não se pode dizer quando estes são apenas dois em dezenas (ou centenas) de brinquedos.

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“Ter brinquedos a mais inibe a criança de agir e pensar”

Para Paulo Sargento, algumas crianças têm brinquedos a mais — não só, mas também — porque nas” sociedades industrializadas e liberais existe uma tendência para dar em demasia”. O também autor do livro Ensine o seu Filho a Dizer Não considera que peluches, bolas, bonecos e jogos de deixar o quarto ou a sala entulhados é coisa para “inibir a possibilidade de a criança agir e pensar sobre as coisas”. O que não é muito difícil de compreender, uma vez que o ser humano tem uma “capacidade limitada de processamento”.

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Ter brinquedos a mais prejudica, então, a escolha dos mais novos em termos afetivos e cognitivos, podendo colocar em causa a existência de um objeto transicional — o que corresponde, por exemplo, à fralda/cobertor associada à personagem ficcional Linus, o melhor amigo de Charlie Brown. Diz o mesmo psicólogo que estes são objetos fundamentais para a organização emocional da criança, uma vez que simbolizam os primórdios de uma relação de confiança, onde também há espaço para o cuidado, o carinho e o amor. A carga simbólica aí presente ajuda uma criança a tolerar a separação e a criar um vínculo emocional.

A médio/longo prazo, este excesso pode ainda ter um peso considerável na construção da personalidade de uma criança — porque sim, brincar ajuda a moldar o temperamento dos mais novos. Considerando um cenário generalista, e fazendo uma extrapolação, “podemos pensar que a criança que tem brinquedos a mais é alguém que [no futuro] não vai saber esperar ou adiar uma gratificação. Pode tornar-se num adulto com mais dificuldade em ouvir um não ou [em superar] uma contrariedade”, argumenta Inês Afonso Marques, da Oficina de Psicologia. Mas nem é preciso ir tão longe na linha do tempo para surgirem situações mais complicadas: “Hoje existe capacidade financeira para comprar tudo, mas o mesmo pode não acontecer amanhã”, atira.

Posto isto, vale a pena perguntar: quais as vantagens de ter uma menor quantidade de brinquedos? Havendo menos por onde escolher, há menos estímulos. Isto é, a criança não se distrai tanto e não “saltita de atividade em atividade”, o que faz com que existam focos de atenção mais prolongados, explica Inês Afonso Marques. Mas há também a possibilidade de um maior sentido de partilha com o outro e de valorização dos brinquedos, o que anda a par e passo com a responsabilidade.

É um menos que é mais, além de ser uma fonte de criatividade, ou seja, um convite a criar e a inventar desafios novos com o que existe em redor. Há, inclusive, estudos que evidenciam essa realidade, como o de dois investigadores alemães que convenceram uma creche a banir os seus brinquedos durante um período contínuo de três meses. O resultado, descrito no jornal The Guardian, pode ser considerado surpreendente: se no primeiro dia as crianças pareciam confusas, três meses depois recorriam à imaginação para se divertirem, ao mesmo tempo que se concentravam mais facilmente e comunicavam de uma forma mais eficiente.

saco de papel Toys This & That

O certo é que não há um número ideal de brinquedos, até porque falar de quantidade não é a mesma coisa que falar do tipo de brinquedos — mas já lá vamos. Apesar da dificuldade em fazer perceber qual é o cenário ideal, Paulo Sargento deixa uma ideia aproximada: imaginando um quarto ou uma sala, o importante é que a quantidade de brinquedos que aí se encontram permita à criança ter espaço e oportunidade para brincar com todos no mesmo dia. 

Mas, então, porque se oferecem tantos brinquedos às crianças? Para responder à questão é preciso ter em conta que não são apenas a mãe e o pai que oferecem presentes aos mais novos — familiares e amigos tendem a contribuir para a conta de somar. “Sabemos que os pais compram os brinquedos no sentido de colmatar alguma ausência ou até como forma de substituir a sua presença. É uma maneira de os pais se sentirem menos culpados”, adianta Inês Afonso Marques.

Paulo Sargento acrescenta outros dois motivos: “a ideia generalizada de que ter é superior ao ser” e o “marketing que é muito bem feito” e que convence as crianças a pressionarem os pais a adquirir mais e mais. Sobre isso, os dois profissionais da psicologia garantem que, para uma criança, é mais importante a relação que tem com os adultos e com os próprios pais do que os brinquedos que teve na infância, acumulados no quarto ou espalhados pela casa. 

Que tipo de brinquedos é que as crianças devem ter?

Antes de mais, o brinquedo não precisa de ser necessariamente uma coisa comprada. Mikaela Övén, formadora de Parentalidade Consciente e autora do livro Educar com Mindfulness, introduz na conversa o método de Waldorf — presente em algumas escolas portuguesas –, que consiste numa pedagogia apostada em utilizar apenas brinquedos à base de materiais naturais. “Coisas muito simples e nada extravagantes”, garante, que podem ser desde pedras a blocos de madeira. O objetivo passa por apelar “ainda mais” à imaginação dos mais novos, o que contraria os brinquedos “que já têm funções muito definidas”.

Mikaela, que também estudou ciências comportamentais na Universidade de Lund, na Suécia, defende que o problema não passa necessariamente pela quantidade de brinquedos, antes pelo tipo, referindo que é necessário adaptá-los às necessidades das crianças. E dá um exemplo: “O meu filho, a certa altura, brincava com muitos carrinhos, uns 50. Ao início parecia-me demais, mas a brincadeira dele até fazia sentido, dado que organizava os carros por cores, tamanhos e tipos. As crianças não são todas iguais e são os pais que devem avaliar se há ou não brinquedos a mais.” 

Posto isto, há conselhos a dar, como a ideia de que os pais devem questionar-se sobre a função dos brinquedos que compram. O brinquedo deve ser, por isso, adequado ao nível de desenvolvimento da criança, no sentido em que seja capaz de estimular as competências certas. Mas há também a questão da segurança, considerando, sobretudo, a composição dos objetos (se têm ou não peças demasiado pequenas). 

E porque não é demais repetir que brincar ajuda a moldar o temperamento dos mais pequenos, há brinquedos e brincadeiras que se ajustam a determinadas crianças e que podem tanto valorizar como desvalorizar certos comportamentos, garante Paulo Sargento, que dá um exemplo claro: “Brinquedos com muitas cores e que fazem muito barulho vão prejudicar uma criança hiperativa, ela não vai conseguir estudar.” 

Brinquedos analógicos ou digitais?

Sendo esta uma geração em que as crianças “nascem” a saber usar smartphones e tablets, o tema dos jogos digitais é incontornável. E, segundo Inês Afonso Marques, é também uma oferta da qual devemos fazer uso, desde que a utilização não seja exclusiva. Porquê?

“No jogo de computador há uma recompensa constante e imediata que, de alguma forma, pode favorecer a dependência. Uma criança pequena precisa muito da supervisão do adulto de modo a saber quando parar. É preciso uma maior capacidade de perseverança para fazer um puzzle, enquanto o jogo digital acaba por reconfortar mais facilmente, tal como a fast food.” E se é claro que os mais novos têm um certo fascínio por tablets, importa dizer que os jogos analógicos não estão pela hora da morte, garante a psicóloga, até porque ao seu consultório chegam miúdos que facilmente se distraem com o velhinho Quatro em Linha.

Israeli school kids with computers in Jerusalem

KOBI GIDEON/EPA

O debate de uma infância tecnológica não tem nada de novo e já antes a psicóloga Vera Lisa Barroso argumentou que os jogos digitais permitem “a estimulação de todas as competências cognitivas dos jogos de tabuleiro, mas com outras vantagens extremamente aliciantes para as crianças. Estas ficam fascinadas com a qualidade gráfica e com o realismo das imagens e dos sons, enquanto muitos pais ficam fascinados com a possibilidade de terem um tempinho para eles.” Ainda assim, é preciso fazer a ressalva — falamos de jogos “tendencialmente isolantes”, no sentido em que limitam a interação social das crianças.  

Uma coisa é certa, pelo menos para o psicólogo Paulo Sargento: não existem brinquedos maus. O que importa é forma como estes são oferecidos e o acompanhamento que existe da parte dos pais: “Estamos na era digital e privar uma criança disso é pior. Acompanhá-la é sempre a solução. Temos de tomar conta dos miúdos até nas brincadeiras. O pai que compra um computador a um filho para que este não o chateie está a fazer um erro tremendo porque não o quer acompanhar na brincadeira — o brinquedo não tem culpa nenhuma.”