“Só melhoro quando chove”. Esta é uma das frases que Marisa Matias cita para definir a sua vida. O verso pertence ao poema ‘Dona Doida’, de Adélia Prado. “Essa frase diz muita coisa, apesar de ser muito simples”. E apesar de preferir que sejam outros a defini-la, considera-se “determinada, muito, e sonhadora. O que não significa que não ande com os pés bem assentes no chão”.

A candidata às presidenciais, apresentada pelo BE, tem 39 anos, feitos a 26 de fevereiro, e é a mais nova de todos os candidatos na corrida a Belém. As raízes estão em Alcouce, uma pequena aldeia no concelho de Coimbra, a cerca de 17 km da cidade onde depois veio a fazer a licenciatura.

“A minha vida é uma soma de improbabilidades”, contou no programa de televisão na internet ‘Otra Vuelta de Tuerka’ ao líder do Podemos, Pablo Iglesias, que considerou que a história de vida da deputada não é muito comum entre os seus colegas deputados do Parlamento Europeu (PE). Quando era criança tinha que caminhar entre quatro a cinco quilómetros para chegar à escola primária e, ao voltar das aulas, ajudava a “trabalhar a terra” e a “cuidar dos animais”. Mas cuidar dos animais não era o seu forte porque distraía-se a ler ou a fazer os trabalhos de casa. “Não era muito frequente chegar a casa com o mesmo número de animais com que tinha saído”, confessou entre risos.

Porque o orçamento familiar numa casa com três filhos “era muito curto”, começou a trabalhar aos 16 anos para poder continuar a estudar, algo que os pais, um guarda florestal e uma empregada de limpeza, sempre incentivaram. É nessa altura que frequenta o liceu já na cidade de Coimbra. “Eu via as dificuldades que havia dentro de casa”, recorda. “Cuidou” de outras pessoas, trabalhou em limpezas, foi rececionista e foi, também, secretária da Revista ligada ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Mas atribui pouca importância a isso: “Não é uma história muito especial. É a história da maioria da minha geração, que não vivia na cidade, que não tinha recursos”.

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No liceu, tinha escolhido a área científico-natural, da biologia, da química, da matemática. Mas quando foi para a universidade, em Coimbra, decidiu deixar essas matérias para trás e abraçou a Sociologia, tendo feito exame de filosofia como prova de ingresso. A mudança de rumo ficou a dever-se ao livro “Pela Mão de Alice”, de Boaventura Sousa Santos, de quem agora é “amiga e admiradora”, como contou a Pablo Iglesias. Não tinha a “mesma formação que os outros” que concorriam para entrar, mas diz ter tido “muita sorte”. Quando viu o exame e reparou que metade era Marx ficou “feliz”, e que 25% era Engels “mais feliz” ficou e, por isso, diz que “não foi difícil ter a nota para entrar em sociologia”. Tornou-se a primeira da família a tirar um curso, a licenciar-se. E a fazer um doutoramento (“A Natureza farta de nós? Ambiente, saúde e formas emergentes de cidadania”).

‘O’ comunista

Na vida de Marisa, Boaventura Sousa Santos está para a sociologia, área em que fez também doutoramento, como Álvaro Febra está para a política. Este último era um vizinho dos avós, conhecido como “o comunista”. “Nós tínhamos a informação de que o comunismo era muito perigoso, a minha família não era politizada, e na terra todos o conheciam como o comunista”. Na conversa com o líder do Podemos, Marisa Matias conta que, quando estava em casa dos avós, “passava a maior parte do tempo” a “ouvir as histórias” de Álvaro Febra, algo que os amigos não entendiam. Eram “histórias de resistência, de luta, de como foi perseguido”. Foi com elas que Marisa Matias se iniciou na política, área que, atualmente, abraça como eurodeputada, pelo Bloco de Esquerda.

É eurodeputada mas não deixa a sociologia de lado. Ao Observador, diz que “mais que usual, é inevitável” juntar a sociologia à política, e destaca: “Recorremos às ferramentas que temos”. A filiação partidária de Marisa Matias ao Bloco de Esquerda aconteceu em 2005. “Já vinha da Associação Manifesto, que está na origem do Bloco”. E “participava nas atividades [do Bloco] como independente”, mas relembra que era “a independente mais militante” que lá estava. E identifica-se com “a ala Bloco” porque, na sua opinião, o BE “já ultrapassou a fase das alas” e “agora é um partido coeso”. Dentro do partido é dirigente, pertence à Mesa Nacional e, também, à Comissão Política.

Como ideologia de vida Marisa, refere “os valores fundamentais da liberdade, igualdade e fraternidade“, os ideais da Revolução Francesa. E salienta: “Sobretudo acreditar que a vida não tem que ser sofrimento, devemos abraçar a dignidade humana”. E estes princípios refletem-se na vida do dia a dia. Abraça movimentos ligados aos direitos humanos, ao ambiente, às mulheres e às minorias, e trabalha em “articulação com todos esses movimentos”, algo a que não é obrigada mas que gosta de fazer.

“A Marisa é uma pessoa muito empenhada” e “muito trabalhadora no Parlamento Europeu. É uma das boas eurodeputadas de Portugal”. Quem o diz é Rui Tavares, ex-colega de Marisa Matias no PE, e que conheceu a deputada bloquista há cerca de sete anos “num grupo de reflexão sobre assuntos europeus, dinamizado por Miguel Portas”. Tavares saiu entretanto do BE e é hoje dirigente do Livre/Tempo de Avançar. Do lado do PSD, Carlos Coelho, também eurodeputado, vê Marisa Matias como “uma mulher inteligente, com muita energia”, além de “muito ativa e segura das causas que defende”.

Matias já levou imigrantes sem papéis ao Parlamento Europeu, “que não tinham acesso a cuidados básicos”. Uma iniciativa com alguns constrangimentos porque, inicialmente, os imigrantes “ficaram parados nas barreiras de segurança”, recorda a eurodeputada, que recorreu “a uma assessora que tinha entrado com o cão”, argumentando que se tinham deixado entrar um cão, qual seria a justificação para não deixarem entrar os imigrantes. “É uma guerreira”, “uma mulher que vai à luta mas de forma inteligente”. Quem o diz é o eurodeputado Carlos Coelho, que resume: “É de uma combatividade inteligente“.

Marisa Matias considera-se também uma feminista porque “o feminismo é igualdade entre homens e mulheres, não é uma sobreposição”. Por isso, defende que o facto de ainda ser notícia o facto de existirem mulheres candidatas à presidência da República (algo que só aconteceu uma vez, quando Maria de Lurdes Pintassilgo concorreu) “mostra o caminho que ainda há a percorrer”. Uma das convicções de Marisa é a de que existe uma “sociedade mais justa quanto mais toda a gente se puder representar”.

“A Marisa é uma das pessoas mais coerentes que conheço, e das mais altruístas“, afirma Tatiana Moura, amiga da eurodeputada há 20 anos, também socióloga de profissão e diretora do Instituto Promundo. Acrescenta que “o bem-estar de pessoas próximas é uma prioridade” para a amiga. Conheceram-se quando estudavam na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – Moura em Relações Internacionais e Matias, um ano mais velha, em Sociologia. Mas foi no Centro de Estudos Sociais que se tornaram mais próximas. “A Marisa faz parte da minha família de escolha”, salienta Tatiana Moura.

E na família reconhecem-se não só as qualidades, mas também os defeitos. Tatiana Moura considera que os de Marisa derivam das suas qualidades: “Não sabe parar”. Algo que a amiga diz poder ser considerado tanto uma qualidade como um defeito, recordando que, por vezes, ela e outros amigos recomendam-lhe que abrande “um bocadinho”. E do outro lado da ideologia política? À direita, Carlos Coelho considera que “o maior defeito” da colega “é ser do Bloco”, dizendo que Matias marca pela “capacidade de ouvir e fazer compromissos”, além da “simpatia”. Rui Tavares não lhe atribui “nenhum defeito em específico” embora diga que “ninguém é perfeito”. Quanto às qualidades, o presidente do Livre/Tempo de Avançar refere que a eurodeputada do BE tem “uma excelente capacidade de trabalho” e “é uma pessoa que leva muito a sério as suas lutas”.

“Quando assume compromissos leva-os a sério”, salienta Tatiana Moura, dizendo que a amiga é uma “self-made woman“. Consegue “sempre arranjar tempo para estar com os amigos” ou, já em âmbito profissional, “falar em escolas secundárias” quando está em Portugal. Coordena a vida entre Bruxelas e Estrasburgo, em trabalho para o Parlamento Europeu, e o país natal. Durante as ‘semanas verdes’, em que os eurodeputados fazem trabalho no país pelo qual foram eleitos, tenta”correr todo o país”. E tem uma casa em Coimbra, onde procura ir sempre que possível, mas lamenta não o poder fazer “muito, por causa do trabalho”. É casada e, sobre a vida privada nada mais revela. Fecha-se em copas: “Temos direito à vida privada, como toda a gente”, afirma ao Observador.

A corrida a Belém é uma “continuação”

Quais as motivações da bloquista para se candidatar ao cargo de Presidente da República? “Eu acho que nós estamos a viver tempos interessantes”, responde Marisa Matias, dizendo que “vão-se abrindo janelas de esperança”. E “na altura em que algumas janelas se abrem temos a obrigação de participar” porque “a política pode ser outra coisa”. Fala numa “aliança de gerações”, entre uma geração pouco politizada, mas que começa a envolver-se, e “a geração dos pais e avós” que agora começam a mudar a “trajetória muito direitinha” que fizeram no campo da política.

Sobre a corrida a Belém, oficializada a 7 de novembro de 2015, a candidata afirma: “Vou disputar esta corrida, não vou só marcar presença”. E, a ser eleita, o trabalho de eurodeputada vai deixar saudades? “Sim, vou ter saudades”, mesmo não achando que seja “uma rutura ou quebra… é uma continuidade”. “Sempre lutei pelo país no Parlamento Europeu”, onde é vice-presidente da esquerda europeia, portanto “é uma continuação”. Quer fazer “política de outra forma” e “colocar a defesa de Portugal e a dignidade do povo” em primeiro lugar, porque “chega de humilhação. Temos um povo maravilhoso, não temos que andar de joelhos”. Diz ter assistido a uma transformação do projeto europeu da qual não gostou, a “uma humilhação dos países do Sul”.

Afirma que é essa vontade de fazer política de forma diferente que mais a distancia da também candidata presidencial Maria de Belém Roseira. “Temos pontos em comum e pontos que nos diferenciam”, argumenta Marisa Matias. As diferenças estão “na maneira de fazer política”. Porquê? Porque “as pessoas precisam de acreditar que se pode fazer política de maneira diferente”. “Acredito numa política que seja totalmente livre de interesses, a não ser o coletivo”, reitera Marisa Matias.

Tatiana Moura, independente simpatizante do BE, vai de encontro a esta ideia. Afirma que a amiga “traz uma perspetiva de fora [trabalho no Parlamento Europeu], que pode ser nova”, e que esta “colocará sempre quem vote nela, a vontade do coletivo, como prioridade“. Para si, a amiga candidata às presidenciais é uma pessoa “sempre aberta ao diálogo e ao entendimento, não é intransigente”. Algo que Moura pensa ser uma das características que marcam a diferença entre Marisa Matias e os restantes candidatos de esquerda. Neste ponto, Tatiana Moura enfatiza a frase de Marisa Matias, em declarações ao esquerda.net, no seguimento do discurso de Catarina Martins (que introduziu Matias na corrida a Belém): “Não me candidato para subtrair. Candidato-me para somar”. Moura interpreta esta frase dizendo que a bloquista se apresenta “não como uma fratura à esquerda, mas sim como mais uma possibilidade de entendimento”.

Charlie Brown: um cavalo em contra-mão

A carreira política de Marisa Matias conta uma candidatura à Câmara Municipal de Coimbra, em 2005, tendo o Bloco obtido apenas 2,10% dos votos, e com o cargo de deputada ao Parlamento Europeu (PE), desde 2009. Cargo esse que já lhe valeu algumas vitórias, derrotas mas também histórias caricatas que nunca esquecerá.

Matias recorda uma viagem à boleia de um cavalo chamado Charlie Brown. Em 2011, durante a revolução no Egito, era vice-presidente da delegação para as relações com os países do Mashreq (da qual é atualmente presidente) e “era preciso alguém do Parlamento Europeu para acompanhar o processo” para reunir com as partes envolvidas, como os bloggers. Marisa foi, e aterrou no Cairo. Esteve na Praça Tahrir a recolher testemunhos e a falar com manifestantes, mas também precisava de ir ao outro lado do Cairo, pelo que se dirigiu a uma fila de táxis. “Fui ter com um taxista e perguntei se me podia levar, ao que ele respondeu: Estamos numa revolução, não há táxis”. Mas “o taxista ligou a um primo, que ligou a um primo, a um primo… que tinha um cavalo”, recorda Marisa Matias. O cavalo, de seu nome Charlie Brown, tinha um atrelado. A agora candidata à presidência recorda que “parte da trajetória foi feita numa via rápida e em sentido contrário” e, quando demonstrou receio pela sua vida, o dono do cavalo respondeu: “Não se preocupe que o Charlie Brown conhece isto tudo”.

Recorda, ainda, uma outra história, de quando estava há pouco tempo no PE. Tornou-se relatora da diretiva para combater comercialização de medicamentos falsificados dentro da União Europeia e essa diretiva era presidida pela Suécia, que pediu uma reunião. “Cheguei com 10 minutos de antecedência”, recorda, e cumprimentou os membros da presidência sueca. “Sentámos e fez-se silêncio”. Marisa esperava que alguém da presidência sueca desse início à reunião, dado que o convite tinha partido deles, e perguntou a um dos assessores porque não o faziam. Afinal, tinha que ser a própria a iniciar a reunião e a apresentar a ordem de trabalhos, algo que não tinha preparado. “Levantei-me e cumprimentei todos os membros, um a um, que foi o tempo que tive para estruturar uma ordem de trabalhos”, recorda. E acrescenta: “Não me envergonho nada disso. Era tudo novo para mim, e não sabia desse formalismo”.

Pelo trabalho que desenvolveu em torno dos medicamentos falsificados, na estratégia europeia de combate ao Alzheimer, e por ter estado na origem do Intergrupo para a diabetes foi considerada a eurodeputada do ano em 2011, recorda o Público. E, na opinião de Carlos Coelho, foi pelo trabalho que desenvolveu nesse relatório sobre os medicamentos falsificados, no qual “conseguiu gerar consensos” apesar de ser um tema “complicado”que envolvia “interesses económicos”, que Matias “ganhou muito respeito”. “Como eurodeputada não se limita a esbracejar, constrói”, afirma o eurodeputado social-democrata.

*Texto editado por Helena Pereira