A juíza Florbela Lança, que decretou a providência cautelar que impossibilita os meios do Grupo Cofina de noticiarem a Operação Marquês, rejeita qualquer censura ao jornal Correio da Manhã e diz que não proibiu os títulos daquele grupo de comunicação social de publicarem notícias sobre o processo judicial que envolve José Sócrates. O tribunal, acrescenta a magistrada, apenas proibiu a revelação das provas indiciárias reunidas contra o ex-primeiro-ministro, por as mesmas estarem sob segredo de justiça externo. Confuso?
É o que consta do despacho da magistrada datado de 7 de dezembro, no qual a juíza Florbela Lança rejeitou a oposição deduzida pelo Grupo Cofina contra a providência cautelar — e manteve as proibições decretadas a 26 de outubro. O documento foi revelado esta quinta-feira à comunicação social pela defesa de José Sócrates.
Passemos a palavra à magistrada, que por dez vezes, e por palavras diferentes, repetiu a mesma ideia ao longo do despacho:
Em momento algum da decisão cautelar se proíbe qualquer órgão de comunicação social detido pela Requerida Cofina de publicar notícias, reportagens, investigações jornalísticas, artigos sobre a Operação Marquês ou sobre o Requerente [José Sócrates]. O que se proibiu foi que os Requeridos [seis jornalistas do Correio da Manhã e Cofina Media], esta na sua qualidade de proprietária e civilmente responsável, nos termos acima referidos, fizessem publicar por si ou através de outros jornalistas nos órgãos de comunicação social detidos pela Cofina Media, os elementos de prova e outros documentos e peças processuais, constantes do inquérito“, lê-se no despacho.
Isto é, os meios do Grupo Cofina podem dar notícias sobre a Operação Marquês, mas não poderão revelar “escutas telefónicas e documentos, que constituem prova indiciária, promoções e despachos do M.P. e decisões das autoridades judiciárias constantes do inquérito”. O que significa noticiar factos sobre a Operação Marquês sem revelar o que se passa no processo? Muito pouco ou nada.
Isto porque nem sequer é claro se a proibição que abrange o Grupo Cofina se refere apenas a José Sócrates ou a todos os arguidos da Operação Marquês. De facto, se ao longo do despacho a juíza fala sempre em “peças processuais do processo”, já perto do final do despacho a juíza escreve que se refere expressamente a “decisões das autoridades judiciárias constantes do inquérito referido e no que tange, obviamente, (apenas) ao Requerente [José Sócrates]”. O que abre a possibilidade ao Grupo Cofina de ser possível noticiar matérias relacionadas com outros arguidos, pois José Sócrates é o único queixoso que subscreveu a providência cautelar.
Duas questões podemos dizer que são certas e claras:
- “(…) as providências cautelares mantêm-se enquanto se mantiver o segredo de justiça externo, obviamente (..)”. Quando terminar o segredo de justiça extingue-se a proibição.
- A magistrada reconhece que “a designada Operação Marquês é de relevante interesse público, tanto mais que um dos arguidos, o aqui Requerente [José Sócrates] é uma figura pública, sendo um ex-primeiro ministro, que, por isso, está sujeito a um maior escrutínio, a uma maior sindicância pelo público e pelos órgãos de comunicação social”.
Contudo, e relacionada com este último ponto, a juíza Florbela Lança mantém que não vê interesse público nas provas recolhidas contra José Sócrates. Porquê? Passemos-lhe a palavra novamente:
O interesse público não se confunde com o interesse do público, sendo certo que o público terá interesse, curiosidade em conhecer as escutas telefónicas, os documentos, os extratos bancários, os despachos daqueles autos de Inquérito, o que não se reconduz ao necessário ‘interesse público’. Não vislumbramos nas peças jornalísticas em causa e face à factualidade indiciariamente provada, com todo o respeito por opinião contrária, sirva o fim legítimo do direito de informação, que haja utilidade social nessa divulgação, quando violadora da Constituição da República Portuguesa, da lei ordinária e das regras éticas dos jornalistas. Não estamos perante uma situação em que se dá a conhecer ao público factos, ainda que em segredo de justiça, mas antes em dar-lhes a conhecer o conteúdo, por transcrição ou resumo das escutas telefónicas, dos documentos, que constituem provas indiciárias, bem como dos despachos do Ministério Público e do juiz de instrução criminal e, ainda, de matéria relativa à vida privada do Requerente [José Sócrates]”.
Ou seja, a juíza entende que, pela razão do processo se encontrar em segredo de justiça, as provas indiciárias ainda não são factos, pois vigora o princípio da presunção da inocência do arguido. Por isso mesmo, mantém que as seguintes notícias publicadas nos dias 21,22 e 23 de outubro no Correio da Manhã (e que estão na origem da providência cautelar requerida) não têm interesse público:
- “MP atribui a Sócrates fortuna de 30 milhões”
- “Gasta dez mil euros em roupa de luxo e hotéis numa viagem ao Brasil”
- «Fica sem plafond de dez mil por se ter esquecido do que gastou”
- “Vinte e sete meses de investigação mostram forma como ex-governante esbanjava dinheiro. Milhares de horas de escutas telefónicas”
- “OPA da Sonae sobre a PT na mira da Justiça”
- “Após a detenção dos arguidos, foram vários os telefonemas trocados entre Fernanda Câncio e lnês”; “Numa outra escuta, em que intervém lnês do Rosário e uma amiga ()»; «Queria ‘queijinhos’” — Numa escuta telefónica, Sócrates pergunta a lnês do Rosário se já tinha os seus “queijinhos”»;
- “As escutas telefónicas do processo Marquês revelam que Daniel Proença de Carvalho prestou, durante muito tempo, serviços de advocacia gratuitos a José Sócrates»;
- “Para o Ministério Público, Vara acordou um pagamento de 2,1 milhões de euros”
- “Carlos Santos Silva determinou destino da verba — O Ministério Público diz que um dos beneficiários dos 2,1 milhões de euros de Vale do Lobo foi Sócrates”;
- “Guterres comenta entrada de Sócrates na Octopharma”; “Finanças reclamam 18,6 milhões de euros em IRS” ;”Ex—líder socialista ponderou ir viver para Nova Iorque”; “Pergunta o que significa o “menos” na conta a ordem”
O processo
Como na maior parte das providências cautelares contra órgãos de comunicação social, o que está em causa no caso Sócrates vs Correio da Manhã é um conflito entre dois grupos de direitos: o primeiro representado pelo direito ao bom nome e à honra do ex-primeiro-ministro e o segundo consubstanciado na liberdade de expressão a que todos os cidadãos têm direito associado à liberdade de imprensa e ao direito de informar de todos os meios do Grupo Cofina, proprietário do Correio da Manhã e da revista Sábado, entre outros títulos.
Recorde-se que a juíza Florbela Lança decidiu a 26 de outubro que os direitos de personalidade de José Sócrates tinham um valor superior ao direito de informar do Correio da Manhã e decretou uma providencia cautelar contra todos os meios do grupo Cofina com base nos seguintes argumentos:
- Dois jornalistas do Correio da Manhã são assistentes da Operação Marquês e transmitiram documentos do processo aos seus colegas do jornal que escreveram as notícias acima reproduzidas;
- A Operação Marquês encontra-se em segredo justiça; logo, o Correio da Manhã e os seus jornalistas violaram a lei e terão praticado o crime de violação do segredo de justiça;
- Os documentos da Operação Marquês não têm interesse público enquanto estiverem em segredo de justiça;
- Foi violada a vida privada de José Sócrates e está em causa os seus direitos de personalidade.
- Apesar de só as notícias do Correio da Manhã estarem causa na providência cautelar requerida, a proibição de noticiar foi alargada a todos os meios do Grupo Cofina por se recear a passagem de informação dos jornalistas que são assistentes do processo.
Na contestação apresentada, o Grupo Cofina tentou alegar diversas nulidades (como um tribunal cível estar a pronunciar-se sobre a alegada pratica de um crime de violação de segredo de justiça cuja competência compete a tribunais criminais), argumentou que outros órgãos de comunicação social continuavam a escrever sobre o processo, alegou prejuízos materiais que advém da baixa de vendas que o Correio da Manhã e a revista Sábado têm sentido desde que as proibições vigoram e contestou a matéria de facto com o argumento essencial de que a informação publicada tinha especial relevância pública – e que tal relevância se sobrepunha aos direitos de personalidade de José Sócrates. Tudo isto foi rejeitado pela juíza Florbela Lança.
Na decisão de 7 de dezembro, revelada pela defesa de José Sócrates ao final desta quinta-feira, tem especial interesse o entendimento da magistrada sobre a importância jornalística de um processo como a Operação Marquês – entendimento esse que foi apelidado como uma “censura” por parte do Grupo Cofina.
A magistrada fez questão de responder no seu despacho:
A proibição da censura, consagrada no n.º 2 do art.º 37.º da Constituição da República Portuguesa é um bem maior num Estado de Direito Democrático, cabendo às gerações mais velhas passarem esse valor incomensurável às gerações mais jovens. Para as gerações que “conviveram” com a censura e que sofreram direta ou indiretamente consequências da sua existência, as suas ações têm ainda um valor maior. A proibição da censura constitucionalmente consagrada é dos bens, dos valores, das garantias de maior relevância e que deverá ser intransigentemente defendida. Ato de censura é diferente, diverso, das limitações, restrições, constitucionalmente previstas. Essas limitações mostram-se também consagradas na Lei da Imprensa (cfr. art. º 3.º, n.º 1)”
Ou seja, a magistrada entende que a liberdade de imprensa não é absoluta e pode ser limitada quando outros direitos se sobrepõem, com o direito à honra e à vida privada.
É neste último campo que surge a temáticas das escutas telefónicas – meio de obtenção de prova essencial na Operação Marquês e que visa particularmente José Sócrates. E aqui a juíza é clara:
Acresce que, e no que concerne à publicação de escutas telefónicas, que (…) o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, sendo proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria criminal. De acordo com tal normativo, é proibida a devassa ou a divulgação de comunicações telefónicas por quem às mesmas tiver acesso”
Isto é, a comunicação social não pode revelar escutas telefónicas por as mesmas recaírem sobre “conversas do foro privado” e pelo facto de o conhecimento das interceções telefónicas estarem reservadas ao poder judicial. Curiosamente, a magistrada invoca a Constituição mas ignora a norma do Código de Processo Penal que proíbe expressamente a divulgação de escutas telefónicas pela comunicação social sem autorização dos visados – uma norma aprovada pelo governo de José Sócrates na ressaca do caso Casa Pia.
A Cofina tem pendente um recurso no Tribunal da Relação de Lisboa sobre a interposição das providências cautelares requerida por José Sócrates.