A defesa do procurador Orlando Figueira, a cargo do advogado Paulo Sá e Cunha, conseguiu uma importante vitória no dia 22 de junho ao conseguir convencer o Tribunal da Relação de Lisboa a substituir a medida de coação de prisão preventiva por prisão domiciliária com pulseira eletrónica no processo em que o magistrado do Ministério Público é suspeito de ter sido alegadamente corrompido por Manuel Vicente, vice-Presidente da República de Angola. Mas os fundamentos da decisão são potencialmente polémicos.

A notícia da alteração da medida de coação foi dada pela agência Lusa no próprio dia da decisão, mas desconhecia-se até agora a fundamentação da decisão tomada pela 9.ª Secção da Relação de Lisboa.

De acordo com o acórdão a que o Observador teve acesso, o raciocínio do coletivo composto pelos desembargadores Almeida Cabral (relator) e Rui Rangel (adjunto) é o seguinte:

  • O tribunal acredita que os indícios recolhidos pelo Ministério Público para os crimes de corrupção e de branqueamento imputados a Orlando Figueira “são robustos” e “é muito forte a probabilidade de ao recorrente vir a ser imposta uma condenação, fixada em pena de prisão”;
  • Apesar de reconhecer que existe o “perigo de fuga” e de “perturbação de inquérito” — sendo que bastaria a comprovação de apenas um deles para a manutenção da prisão preventiva –, o tribunal entende que a obrigação de permanência na habitação acautela devidamente esses perigos desde que Orlando Figueira seja, de facto, impedido de contactar com o exterior através da internet e de telemóveis. Como será feito esse controle? É uma pergunta que ainda não tem resposta, sendo certo que Orlando Figueira ainda aguarda da execução da decisão do tribunal.
  • Quanto ao perigo de fuga, os desembargadores acreditam que a “sua formação cultural” e o facto de ter sido “magistrado do Ministério Público”, faz com que Orlando Figueira seja “um cidadão com responsabilidades e deveres acrescidos”. Por isso mesmo, a Relação de Lisboa tem a convicção de que o magistrado ficará em Portugal para “afirmar e comprovar a sua invocada inocência, com o consequente refazer da sua imagem e credibilidade social”.

Vamos desenvolver os argumentos expressos pelo relator Almeida Cabral no acórdão para se perceber melhor a decisão da Relação de Lisboa.

As suspeitas do Ministério Público

O MP diz que o procurador Orlando Figueira terá sido alegadamente corrompido por Manuel Vicente, tendo supostamente recebido cerca de 630 mil euros como contrapartida pelo arquivamento de um inquérito em que o vice-Presidente da República de Angola era visado como suspeito de branqueamento de capitais.

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Esse montante terá sido divido em diversas tranches:

  • A primeira terá sido de 130 mil euros. Os indícios recolhidos pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) contra o antigo procurador (Orlando Figueira pertencia aos quadros do DCIAP antes de lhe ser concedida uma licença sem vencimento de longa duração a 1 de setembro de 2012) começam num alegado empréstimo de 130 mil euros que o Banco Privado Atlântico (BPA) lhe terá concedido quando ainda era procurador do DCIAP, sendo que esse banco tem a Sonangol, empresa que era liderada por Manuel Vicente na altura dos factos sob investigação, como um dos seus acionistas.

As suspeitas sobre o alegado caráter ilícito desse empréstimo fundamentam-se no facto de o crédito ter sido dado em 2011 sem garantias e sem fiador e quando Orlando Figueira não era sequer um cliente habitual do BPA. Além de que, desde a data da sua concessão até ao presente, “apenas foi pago pelo arguido um montante diminuto referente a juros, não tendo sido amortizado capital”, alega o MP, segundo o acórdão da Relação de Lisboa.

De acordo com a posição do MP expressa no acórdão da Relação, Orlando Figueira terá afirmado no primeiro interrogatório como arguido que deu “uma garantia verbal” ao BPA de que, caso vendesse a sua casa, teria de comunicar esse facto ao banco. Ainda segundo o MP, Figueira disse que “o banco fez o favor de acreditar na minha palavra, uma vez que tudo se baseou no princípio da confiança”, lê-se no acórdão.

De acordo com a investigação do DCIAP, existirá ainda a coincidência temporal de o empréstimo ter sido recebido pelo então magistrado no mesmo dia em que Figueira deu um prazo de 10 dias à defesa de Manuel Vicente para explicar a origem dos fundos que utilizou para comprar um apartamento de luxo no empreendimento Estoril Sol.

  • Segue-se uma segunda tranche de 190 mil euros. As suspeitas que existiam contra Manuel Vicente estavam a ser investigadas no âmbito do mesmo inquérito que visava igualmente outras figuras de destaque do regime angolano, como, por exemplo, o general ‘Kopelipa’ (chefe da Casa Militar do Presidente José Eduardo dos Santos). Orlando Figueira decidiu em janeiro de 2012 autonomizar as suspeitas que incidiam sobre Manuel Vicente. Quadro dias após essa decisão, o procurador terá aberto duas contas no BPA: uma em euros e outra em dólares. Foi para esta última conta que a sociedade Primagest terá transferido a 16 de janeiro de 2012 o montante de 210 mil dólares (cerca de 190 mil euros, ao câmbio desta terça-feira) a partir de uma conta do BPA de Luanda — no mesmo dia em que Paulo Blanco, advogado da Procuradoria-Geral de Angola e de Manuel Vicente, recebeu a notificação que confirmava a abertura de um inquérito autónomo relacionado com o vice-Presidente de Angola.

A investigação do DCIAP, a cargo da procuradora Inês Bonina, entende, segundo o que está expresso no acórdão da Relação de Lisboa, que foram essas alegadas contrapartidas que levaram Orlando Figueira a autonomizar e a arquivar o inquérito contra Manuel Vicente em fevereiro de 2012, alegadamente violando “critérios de objetividade e imparcialidade.

Além disso, e segundo o Banco de Portugal, o BPA não informou, como está obrigado por lei, o supervisor bancário da existência das duas contas bancárias de Orlando Figueira.

Na perspetiva do MP, não há dúvidas que a Primagest é “uma entidade angolana a que Manuel Vicente se encontra associado”.

Além do MP, diversos agentes económicos que fizeram negócios com a Primagest também não têm dúvidas de que a sociedade está inserida no universo Sonangol, a empresa pública angolana que, mais do que uma petrolífera, é um fundo soberano de Angolano. Segundo a revista Visão, Ricardo Oliveira, líder da empresa de engenharia Coba (uma das principais do sector em Portugal), afirmou a 8 de junho de 2012 que “um prestigiado grupo angolano, liderado pela Sonangol”, tinha “tomado uma posição de referência no capital da Coba”. O grupo chamava-se Primagest. Ricardo Oliveira tinha afirmado o mesmo um ano antes ao jornal Público.

O mesmo disse o advogado João Caiado Guerreiro à revista inglesa Legal Business.

  • Numa terceira fase, Orlando Figueira terá recebido mais 310 mil euros da Primagest. De acordo com o MP, o procurador que trabalhou no DCIAP até setembro de 2012 terá recebido desde essa altura, e até 2015, um total de pelo menos 500 mil euros da sociedade que pertencerá à Sonangol.

Todos os valores transferidos pela Primagest foram explicados por Orlando Figueira à luz de um contrato-promessa de trabalho, sendo que o interlocutor angolano do procurador era um membro do Conselho Fiscal da sociedade Atlântico Europa, que detém a totalidade do Banco Privado Atlântico Europa.

O MP, contudo, não acredita nessa versão e diz que o contrato era fictício. Um exemplo disso mesmo, no entender da investigação do DCIAP, é a alegação de que Figueira nunca se deslocou a Luanda para emitir pareceres jurídicos. Figueira diz que o seu interlocutor na Primagest (Paulo Conceição Marques) deslocava-se a Lisboa, cidade onde o procurador dava os seus pareceres. O magistrado afirmou no seu primeiro interrogatório que “fez alguns trabalhos de ‘consultadoria verbal’ e ‘outros'” que entregou a Marques.

  • Outras contrapartidas terão sido os cargos no BCP e no Activo Bank. Além das contrapartidas monetárias, o MP entende que o posto conseguido por Orlando Figueira no departamento jurídico do BCP (banco do qual a Sonangol é acionista) também terá tido a alegada influência de Manuel Vicente. “Outro dos favores que se encontra indicado como tendo sido prestado ao arguido por parte de Manuel Domingos Vicente, em troca do arquivamento dos processos em que fosse visado, foi a sua colocação no compliance do banco Millenium BCP e como assessor jurídico no Activo Bank”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa. Esta última instituição financeira também pertence ao Grupo BCP.

As retificações fiscais de Figueira

O Activo Bank merece ainda referência por parte do MP no que diz respeito a uma alegada violação do segredo de justiça que terá permitido a Orlando Figueira ter tido conhecimento antecipado da investigação aberta contra si quase um ano antes da sua detenção.

Esta parte da história inicia-se em 11 de março de 2015, quando a Polícia Judiciária, desconhecendo que Orlando Figueira trabalhava no Activo Bank, enviou um ofício a este banco solicitando a quebra do sigilo bancário relativo a todas as contas que o procurador detinha naquela instituição financeira. Como não houve resposta, verificou-se uma insistência das autoridades a 25 de maio de 2015.

Orlando Figueira apresentou poucos dias depois as seguintes declarações de substituição de IRS:

  • 175 mil euros recebidos da Primagest a título de trabalho dependente no ano fiscal de 2012;
  • 221 mil euros recebidos de uma entidade desconhecida a título de trabalho dependente no ano fiscal de 2014;
  • 44,5 mil euros de rendimentos de categoria B a título de prestação de serviços.

Isto é, Figueira retificou em 2015 um total de rendimentos de 440, 5 mil euros recebidos em 2012 e 2014. Segundo o MP, só o terá feito “na sequência do conhecimento que teve de uma investigação contra si”.

Estas retificações fiscais, por outro lado, também estão na origem de um crime de falsificação informática que lhe é imputado pelo MP, visto que saberia, segundo a procuradora Inês Bonina, que os rendimentos obtidos através da Primagest não eram rendimentos de trabalho dependente mas sim, e de acordo com o MP, o produto de uma atividade alegadamente ilícita.

As razões da defesa

O principal objetivo do advogado Paulo Sá e Cunha era tirar o seu cliente da prisão e substituir a medida de coação máxima pela obrigação de permanência na habitação com pulseira eletrónica — objetivo concretizado com sucesso.

Além de alegar que Orlando Figueira tinha, enquanto procurador da República, direito a foro especial, logo o inquérito tinha de ser liderado por um procurador-geral adjunto colocado na Relação de Lisboa, Sá e Cunha atacou os perigos invocados pelo Tribunal de Instrução Criminal para decretar a prisão preventiva: perigo de fuga e perigo de perturbação de inquérito.

Sobre o primeiro, Sá e Cunha diz que o “nem o facto de o recorrente [Orlando Figueira] manter relações de natureza pessoal ou profissional com cidadãos angolanos nem a possibilidade de o seu filho ir viver para os Estados Unidos da América são circunstâncias potencializadoras do perigo de fuga”. Além do mais, invoca o advogado, se o procurador tivesse tido conhecimento antecipado da investigação, “teria tido muito tempo para preparar a fuga do país, o que não aconteceu”, lê-se no acórdão.

Do ponto de vista substantivo, a defesa de Orlando Figueira negou que os montantes recebidos da Primagest representassem qualquer contrapartida pelo arquivamento do processo aberto contra Manuel Vicente.

Além de alegar que o arquivamento decidido pelo seu cliente respeitou a lei, e de recordar que as suas decisões tiveram a concordância expressa de Cândida Almeida, então diretora do DCIAP, Sá e Cunha afirma que os montantes recebidos da Primagest são legais e dizem respeito a contratos de trabalho normais estabelecidos entre aquela sociedade e Orlando Figueira, além de outros rendimentos pessoais. O contrato com a Primagest previa o desempenho de funções como diretor dos serviços de compliance do BPA.

A defesa do procurador garante ainda que “não existe qualquer prova de que a Primagest seja detida pela Sonangol e que nela Manuel Vicente exercesse qualquer domínio”. E nega qualquer espécie de tentativa de ocultação dos rendimentos (a génese do crime de branqueamento de capitas), visto que as contas foram abertas em seu nome pessoal, tal como recusa qualquer responsabilidade no facto de o BPA não ter comunicado a existência das suas contas bancárias ao Banco de Portugal.

A decisão do tribunal

O desembargador Almeida Cabral (relator do acórdão) é claro ao considerar que, tendo em conta que os “indícios probatórios” relativos aos crimes de corrupção passiva na forma agravada e de branqueamento de capitais são “por demais robustos e evidentes”, “é muito forte a probabilidade de ao recorrente vir a ser imposta uma condenação, fixada em pena de prisão, tendo-se em conta, designadamente, a factualidade indiciária referente aos crimes de corrupção passiva e de branqueamento”, lê-se no texto do acórdão.

O relator vai mais longe e diz mesmo que “há coisas que, por tão evidentes e objetivas, à luz da verdade e da isenção só poderão ter uma perspetiva de entendimento. E esta, no caso dos autos, não pode deixar de conduzir à conclusão do direto e ativo envolvimentos do arguido [Orlando Figueira] na prática dos factos descritos na decisão recorrida, muito embora se reconheça que os referentes à suposta ‘falsidade informática’ carecem de melhor aprofundamento”.

Contudo, o desembargador Almeida Cabral considera que a obrigação de permanência na habitação pode acautelar o “perigo de fuga” e de “perturbação de inquérito”, claramente reconhecidos pelo coletivo da 9.ª Secção que julgou o recurso da defesa

Além do mais, o relator considera o seguinte:

“Todavia, também não se pode deixar de levar em conta que o arguido, pela sua formação cultural e pelas funções anteriormente desempenhadas enquanto magistrado do MP, é um cidadão com responsabilidades e deveres acrescidos, sendo de admitir, também, a sua preocupação e empenho em afirmar e comprovar a sua invocada inocência, com o consequente refazer da sua imagem e credibilidade social, o que melhor conseguirá fazer permanentemente no país que o há-de julgar.”

Os desembargadores, contudo, não deixam de alertar que, para acautelar os perigos de fuga e de perturbação de inquérito, é necessário fazer cumprir a “proibição de o recorrente [Orlando Figueira] receber ou contactar, por qualquer meio, com quaisquer pessoas que não sejam os seus familiares mais diretos e advogados, designadamente fazendo uso de qualquer meio telefónico ou informático”.

Por isso, o tribunal determina que a medida de coação aplicada seja “rigorosa e permanentemente fiscalizada através dos meios técnicos adequados”, sendo certo que a a violação de alguma das obrigações “implicará a imediata aplicação da prisão preventiva”, conclui o relator Almeida Cabral.

Cabe agora à Direção-Geral de Reinserção Social vigiar a proibição de contactos a que Orlando Figueira está sujeito e zelar pela não utilização dos “meios telefónicos ou informáticos” por parte de Figueira.

Ao que o Observador apurou, Orlando Figueira aguarda no Estabelecimento Prisional de Évora a passagem para situação de prisão domiciliária.