A maioria de esquerda no Parlamento pode travar a segunda comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos (CGD). Depois de frustrada a intenção de PSD e CDS de terem acesso à troca de correspondência entre Mário Centeno e António Domingues, sociais-democratas e democratas-cristãos decidiram avançar com uma segunda comissão exclusivamente centrada no período de negociação que culminou com a tomada de posse do ex-BPI como novo presidente do banco público. No entanto, socialistas, bloquistas e comunistas podem, se assim o entenderem, neutralizar as pretensões da direita logo à nascença.

E têm várias formas de o fazer. De acordo com o Diário de Notícias, a primeira palavra pertence a Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, que poderá considerar a nova comissão inconstitucional. Em último caso, os partidos mais à esquerda podem simplesmente boicotar a comissão, que assim não reuniria quórum necessário para funcionar. Como explica o mesmo jornal, PS, Bloco de Esquerda e PCP têm a faca e o queijo na mão.

Mas ainda há algumas questões por esclarecer. A primeira, é perceber qual será o objeto da comissão. No dia em que anunciaram a intenção de avançar com a nova comissão, PSD e CDS esclareceram que o objetivo é averiguar o período desde a negociação para a nomeação da anterior administração da CGD, presidida por António Domingues, até à demissão do gestor, na sequência controvérsia com a entrega das declarações de rendimentos e património ao Tribunal Constitucional.

Ora, nesse caso, o acesso à correspondência e as SMS trocadas entre o ministro das Finanças e o banqueiro seria determinante para esclarecer o que de facto se passou e se Mário Centeno mentiu ou não mentiu no Parlamento. Sendo a iniciativa potestiva — ou seja, de agendamento forçado –, a constituição da nova comissão não depende da luz verde dos partidos mais à esquerda. Essa primeira barreira não existe.

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Mas a última palavra caberá a Eduardo Ferro Rodrigues. Será o presidente da Assembleia da República a avaliar se existe algo no requerimento constitutivo da comissão que “infrinja a Constituição ou os princípios nela consignados”.

Em entrevista ao DN e à TSF, Ferro já deixou algumas pistas nesse sentido: “Se faz sentido haver duas comissões de inquérito — uma com um objetivo mais geral, igual ao que está neste momento em movimento, e outra só por causa das SMS ou dos emails? Bem, eu tenho as maiores dúvidas, mas não me compete a mim definir. Se for uma comissão formada potestativamente, a responsabilidade é dos partidos que a levaram para a frente. Desde que o objeto seja constitucional e legal têm todo o direto de o fazer”, afirmou o presidente da Assembleia da República.

A Lei Fundamental e a jurisprudência parecem jogar a favor de socialistas, bloquistas e comunistas. O n.º 4 do artigo 34º da Constituição da República é claro: “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal“.

Como assinala o mesmo Diário de Notícias, as mensagens de texto têm um regime semelhante às escutas, ou seja, estão protegidas constitucionalmente. A interceção de comunicações apenas é admitida em processo penal.

Em 2010, Mota Amaral (PSD) teve uma decisão semelhante em mãos: durante a comissão parlamentar de inquérito ao negócio PT/TVI, o PSD queria consultar as escutas do processo Face Oculta. No entanto, enquanto presidente da comissão, o social-democrata não permitiu que as escutas fizessem parte do objeto da comissão, argumentando que: “O uso das escutas levanta um problema especial, o respeito pela Constituição. Nessa matéria temos aí uma barreira intransponível. As escutas só são legitimamente utilizáveis em processo criminal, o que não é o caso”.

Mesmo que a nova comissão de inquérito seja constituída, PS, Bloco de Esquerda e PCP podem, simplesmente, boicotar os trabalhos parlamentares. A lei, neste ponto, é igualmente clara: uma comissão só “inicia os seus trabalhos” estando preenchida uma de duas condições: “Estar indicada mais de metade dos membros da comissão, representando no mínimo dois grupos parlamentares, um dos quais deve ser obrigatoriamente de partido sem representação no governo” ou “não estar indicada a maioria do número de deputados da comissão, desde que apenas falte a indicação dos deputados pertencentes a um grupo parlamentar”.

Todas as possibilidades estarão em cima da mesa, mas qualquer decisão só será tomada depois de PSD e CDS esclarecerem qual será, de facto, o objeto da comissão, o que deverá acontecer esta terça-feira, na reunião de coordenadores dos vários grupos parlamentares representados na primeira comissão de inquérito à Caixa.