É um grupo secreto, impossível de encontrar numa pesquisa no Facebook, onde só entram homens com mais de 18 anos, perfis criados há pelo menos um ano e meio e com fotografias de perfil identificáveis, para que os administradores tenham a certeza de que estão a aceitar iguais e não mulheres infiltradas ou outros elementos indesejados. Chama-se IMASOLDIER (sou um soldado, em português), e já conta com mais de 44.500 membros. Na mesma rede social existem grupos-cópia, com o mesmo nome mas número muito mais reduzido de participantes.

Terá sido neste grupo que, no passado domingo, surgiram pela primeira vez e sem qualquer tratamento que protegesse a identidade da vítima, as imagens do alegado abuso sexual de uma jovem em público, num autocarro durante a Queima das Fitas do Porto, que decorreu entre 7 e 14 de maio. Várias fontes confirmaram ao Observador que o vídeo acabou por ser apagado do grupo algumas horas depois. Teria havido muitos comentários, uns mais críticos do que outros, na sequência da publicação. Alguns dos envolvidos no alegado abuso farão parte do grupo, garantem as fontes ouvidas pelo Observador que acederam ao IMASOLDIER.

O caso está a ser acompanhado, se bem que não investigado, avançou uma fonte da Polícia Judiciária ao Observador, uma vez que a jovem em questão, já identificada pela polícia e maior de idade, não apresentou queixa até ao momento: o crime de abuso sexual contra pessoa incapaz (a rapariga estaria embriagada) é semi-público quando a vítima tem mais de 18 anos, carecendo por isso de queixa formalizada pela própria.

Apesar de garantir não ter conhecimento da existência do IMASOLDIER, a mesma fonte diz que o português poderá ter sido inspirado nos grupos norte-americanos revelados recentemente, que militares usavam para partilhar imagens de colegas nuas. Embora não tenha sido possível apurar há quanto tempo existe o grupo, é pouco provável que tenha havido esta influência, dada a quantidade dos seus membros: o escândalo nos Estados Unidos foi revelado apenas há dois meses.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O Observador teve acesso não ao grupo mas a várias dezenas de posts lá publicados, bem como às regras por que se rege a comunidade, criada com este lema: “Por nós HOMENS, para interagirmos longe dos olhares das MULHERES, tirar dúvidas, soltar sorrisos, partilhar momentos bons e menos bons das nossas vidas”. O Observador teve também acesso aos perfis de largas dezenas de membros e administradores do grupo.

Um deles, natural do norte do país, terá cinco contas na rede social e pelo menos uma no Instagram onde posta regularmente fotografias sob o hashtag #imasoldier, algumas com roupas personalizadas com a marca e um número de conotação sexual, 69, associado. Contactado pelo Observador, o administrador, que se apresenta como tenente (umas vezes utiliza o próprio apelido, outras um fictício e brejeiro) e em algumas publicações dá a entender que estará a criar uma linha de merchandising associada ao grupo, não se mostrou disponível para falar.

As publicações no IMASOLDIER, que terá militares e agentes das forças de segurança entre os membros, são invariavelmente fotografias e vídeos de conteúdo sexualmente explícito (atos de sexo anal e oral são mais louvados do que outros), captados sem o conhecimento das intervenientes.

Em alguns casos, as identidades, caras e tatuagens das mulheres — “as inimigas”, cujas “bases” os “soldados” devem “tomar” — são protegidas e ocultadas por emojis. Umas serão as namoradas e mulheres dos membros, outras não. Alguns elementos do grupo terão inclusivamente feito chegar imagens comprometedoras às mulheres traídas, tendo as regras do grupo mudado há pouco tempo, tal como está escrito na página: “A partir de agora ninguém publica fotos nem vídeos hardcore sem passar para administração aos nossos perfis criados só para postar no grupo, assim mantemos a privacidade e confidencialidade de cada um [sic]“.

Alguns membros do grupo — há publicações feitas a partir de todo o país e até de Angola — têm ainda por hábito fotografar mulheres desconhecidas na rua, de costas ou não, partilhando depois o local onde se cruzaram com elas ou onde podem ser habitualmente encontradas. O Observador teve acesso a imagens de mulheres em centros de saúde, restaurantes, discotecas, centros comerciais e na rua. E até de duas militares da GNR fotografadas num balcão da Caixa Geral de Depósitos, com a seguinte legenda: “Marchavam a cima da lei [sic]“.

Alguns dos mais de 44.500 membros do grupo podem nem saber sequer que fazem parte dele (embora seja pouco provável, uma vez que receberão notificações de cada vez que alguém lá publica um post), ou não ter conhecimento de quem os adicionou.

Ao Observador, a mulher de um membro do IMASOLDIER, que ficou a saber da existência do grupo há cerca de uma semana, depois de descobrir as palavras-passe das redes sociais do marido, disse que já existiu pelo menos uma página de boicote ao grupo, que entretanto terá sido denunciada e fechada:

Há três dias, quando vi o vídeo da rapariga no autocarro decidi que tinha de fazer alguma coisa. Foi o mais grave que vi no grupo, e duas horas depois estava apagado. Quero que o grupo acabe e que as vítimas saibam o que andaram a fazer com elas. Já consegui identificar uma, uma rapariga que aparece num vídeo de sexo. Falei com ela, contei-lhe o que estava a acontecer. Ela sabia que o vídeo existia, já é antigo, mas não fazia ideia de que estava a circular outra vez. Diz que não quer fazer queixa.”

Outra mulher, que diz ter tomado conhecimento do grupo secreto numa página feminista, contou ao Observador que há elementos a copiar as publicações que lá são feitas para denunciar o caso na polícia e que ainda só não o fizeram por medo. “Ontem uma rapariga fez um post viral sobre o vídeo do abuso no autocarro e publicou as caras dos rapazes que fizeram aquilo. Em 20 minutos, teve milhares de partilhas. E muitas, muitas ameaças, acabou por apagar a publicação. Temos medo. Uma amiga minha tem um amigo na polícia, ele já lhe disse que, para acontecer alguma coisa, ou alguém envolvido faz queixa ou isto se torna viral.”

Apesar de a rapariga alegadamente abusada após uma noite de Queima das Fitas não ter querido (pelo menos para já) apresentar queixa, o caso já se tornou conhecido em todo o país. Divulgado, depois de apagado do IMASOLDIER, no site Azeitugal, acabou por chegar ao Correio da Manhã, que também o publicou. O cuidado que o jornal teve a desfocar as caras de vítima e agressores não o isentou de receber duas queixas, uma da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, outra da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, por dar eco ao abuso.