O contexto era outro, incerto. A linguagem era mais dura. Portugal ainda não se tinha saído do Procedimento por Défices Excessivos. Pairava sobre o país o espectro das sanções. Há ano e meio, no Congresso do PS, António Costa tinha um discurso e uma moção bastante críticos da União Europeia. “Por vezes é difícil ser socialista no quadro da União Europeia. Mas fora do quadro da União Europeia é impossível ser socialista”, dizia António Costa em maio 2016 aos dirigentes socialistas portugueses. Ali, como já dissera na campanha eleitoral, o primeiro-ministro defendia uma “leitura inteligente” do Tratado Orçamental. Resta saber que leitura inteligente vai agora fazer Mário Centeno do tratado do qual será um dos principais guardiões como presidente do Eurogrupo.

No congresso realizado há ano e meio, a secretária-geral adjunta Ana Catarina Mendes, chegava a dizer que o Tratado Orçamental representava mais limitações para o Governo do que os próprios partidos da “geringonça”. Tudo enquadrado por uma moção do secretário-geral muito negativa para a Europa do “império da austeridade” liderada pela Alemanha que agora apoiou o ministro português. O texto continha uma autocrítica por a sua família política — os socialistas europeus — também terem sido “contaminados, em diversos momentos históricos, pelo vírus da fé excessiva na autorregulação dos mercados, não sendo capazes de resistir às tendências de financeirização do capitalismo mundial, nem de impor uma regulação suficiente do processo de globalização”.

Naquela reunião de socialistas realizada apenas cinco meses depois de a “geringonça” ter sido formada, a linguagem estava à esquerda. Nesse ambiente, Costa invocou outra “tentação” a que os socialistas tinham de resistir: “As tentações neoliberais”. Foi por isso que apelou: “Se continuarmos a deixar que a direita seja dominada pela ideologia neoliberal, não teremos uma alternativa no espaço democrático”.

Moção de António Costa. Contra o “vírus da fé excessiva” nos mercados

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Agora, com a escolha de Mário Centeno para presidir ao fórum dos ministros das Finanças da zona euro, os socialistas portugueses vão conseguir levar a sua agenda para Bruxelas e “contaminar” os restantes Estados-membros com o vírus da viragem da página da austeridade? Consegue Centeno inverter a ideologia neoliberal da direita? Vai convencer os restantes parceiros a fazer uma “leitura inteligente” do Tratado Orçamental?

“Não acho que a margem de manobra no Eurogrupo seja muito grande, porque este não abandonou a sua filosofia”, diz o embaixador Francisco Seixas da Costa, ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus, ao Observador. O socialista João Galamba contrapõe que “não se elege um ministro das Finanças para presidir ao Eurogrupo, desconsiderando o discurso que esse ministro faz e fez sobre o seu país”. Para o deputado, não faz sentido escolher um protagonista sem ter em conta o que ele pensa:

Não sei se poderei ir tão longe a ponto de dizer que validaram o discurso de Mário Centeno, mas pelo menos não o invalidaram”, afirma Galamba.

Outra coisa é os restantes países seguirem esse discurso como a nova cartilha europeia. Por isso, como será difícil vergar a rigidez comunitária, Seixas da Costa vê mais depressa Centeno a ter um discurso ambíguo do que o Eurogrupo a seguir as suas opiniões: “O Estado português agora não pode falhar um milímetro”, diz o embaixador.

Significa que Centeno vai ver-se, por vezes, numa posição um pouco esquizofrénica: haverá momentos em que a especificidade da situação portuguesa poderá obrigá-lo a apresentar propostas contra o mainstream do Eurogrupo”, prevê Seixas da Costa.

As ideias mais moderadas de António Costa em Bruges

Mais recentemente, no discurso que fez em Bruges, no Colégio da Europa, em setembro deste ano, sobre o seu pensamento europeu, o primeiro-ministro não foi tão longe. Foi muito mais contido nos termos. Considerou a resposta europeia à crise de 2008 como “tardia, contraditória e insuficiente”, o que “expôs dolorosamente as deficiências estruturais da construção do Euro”. Embora considerasse que a Europa está mais bem preparada para embates como aquele, também afirmou que não estava tudo resolvido: “Não nos iludamos: as fragilidades originárias da União Económica e Monetária (UEM) continuam em larga medida por resolver”. Admitiu que com o apoio de Angela Merkel e de Emmanuel Macron seria possível “avançar por pequenos passos” para a Europa não continuar parada “a meio do caminho”. E fez propostas concretas:

Temos de concluir o que iniciámos, como a união bancária, e precisamos de ter mecanismos eficazes para enfrentar choques externos e criar estabilizadores automáticos em caso de crise. O seguro europeu de depósitos, a base orçamental do Fundo Único de Resolução, a progressiva transformação do Mecanismo Europeu de Estabilidade num verdadeiro Fundo Monetário Europeu são propostas importantes, cuja implementação reforçará a União Monetária”.

António Costa referiu, então, que “a verdadeira chave da estabilidade da zona euro está na convergência económica e social entre as economias dos diferentes Estados-membros.” No fundo, a ideia seria as chamadas reformas estruturais não serem aplicadas com a mesma receita em todo o lado, mas “desenhadas à medida de cada país”. E fazer o mais difícil: convencer os parceiros na reforma da UEM — em que Centeno agora terá um papel determinante — apoiada “na experiência portuguesa”.

Não será uma tarefa fácil. Para mudar a abordagem do Eurogrupo como Costa defendia no seu discurso, não podem ser aligeiradas as metas. Resta saber até que ponto os outros países admitem mudar a estratégia para os atingir. “Mário Centeno não deixa de ser um ortodoxo nas finalidades que não põem em causa os grandes objetivos, mas é um heterodoxo nos meios”, diz Seixas da Costa, que não acreditava sequer na possibilidade de o ministro das Finanças chegar ao cargo.

“É uma oportunidade para essa ortodoxia ser levada a prática com fórmulas diferentes”. Na leitura do embaixador, os equilíbrios do Eurogrupo só seriam alterados se fossem “titulados por um país grande”, como por exemplo a França, “embora Macron não tenha dado esses sinais”. No caso da Alemanha, isso só poderia tornar-se realidade “se houvesse uma coligação de Merkel com o SPD. Só assim teríamos possibilidade de alterar alguma coisa”, considera o antigo secretário de Estado.

A doutrina Centeno: a “miopia” do “défice estrutural”

Na sua moção ao congresso de 2016, António Costa também classificava como uma “intolerável incerteza” o real significado “de conceitos decisivos como os de ‘crescimento potencial’ e ‘défice estrutural’”, que condicionam os orçamentos nacionais. Portugal tem sido advertido em todos os orçamentos deste Governo em relação ao défice estrutural, um conceito complexo que tem como base o PIB potencial — ou seja, quanto é que o país produziria se a economia estivesse no seu potencial máximo. O secretário-geral do PS referia-se a este tema como um exemplo “de matérias que exigem revisão”. O debate sobre este tema está em curso entre os países do Eurogrupo.

Agora Mário Centeno poderá ter uma palavra a dizer sobre este assunto, ou pelo menos pode colocar o tema na mesa. No relatório do Orçamento do Estado de 2017, o ministro das Finanças explanou as sua considerações técnicas sobre esta questão que se pode ler na “Caixa 3” do documento. É aí que está a sua doutrina técnica e a sua interpretação sobre esta matéria, que o ministro das Finanças remata da seguinte maneira:

As atuais regras do PEC induzem uma miopia de curto prazo na avaliação da sustentabilidade das finanças públicas. A metodologia é desincentivadora da implementação de reformas estruturais pela forma como o seu impacto é transmitido ao produto potencial e pela necessidade que é imposta para a compensação do seu financiamento”.

Esta “afirmação política e institucional” de Mário Centeno num documento como o Orçamento do Estado “é relevante”, segundo João Galamba. Para o socialista, os colegas do ministro português sabem o que ele pensa sobre o assunto. E enfatiza o facto de Centeno ter sido eleito numa conjuntura muito diferente do antecessor, que foi escolhido “num período de forte preponderância do Norte sobre o Sul e de imposição das visões mais draconianas e radicais do Tratado Orçamental. Portugal passou no teste desse endurecimento”, reconhece o dirigente do PS. E pode o português mudar alguma coisa no Eurogrupo? “Este enquadramento [da sua escolha] já inclui alguma flexibilização, embora as regras sejam o que são”. Agora a esperança dos socialistas está no debate sobre “o futuro da zona euro”. Será esse futuro assim tão diferente?