“Largas dezenas de ações contra a TVI.” É assim que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) promete responder à investigação da estação televisiva que revela um alegado esquema de tráfico de crianças a partir de um lar ilegal em Lisboa operado pela igreja. O objetivo é simples: inundar os tribunais um pouco por todo o país — e, no caso de Portugal, por toda a União Europeia — de pequenos processos movidos por fiéis e pastores, alegando danos morais e obrigando a estação a um esforço enorme (acompanhado de gastos significativos) para se conseguir defender em múltiplos julgamentos.
A estratégia não é nova: já foi usada pelo menos três vezes contra meios de comunicação social no Brasil. O caso mais mediático foi contra a Folha de São Paulo, em 2008. Perante um artigo que expunha o vasto património empresarial da igreja fundada em 1977 pelo hoje multimilionário brasileiro Edir Macedo, a IURD decidiu mobilizar pastores e fiéis em praticamente todos os estados do Brasil, para que avançassem com ações por danos morais contra o jornal.
Foram movidos mais de cem processos, que deram entrada em comarcas distantes, espalhadas por todo o território, obrigando o jornal a um gasto enorme, uma vez que teve de se fazer representar em centenas de audiências nos lugares mais recônditos e inacessíveis do Brasil. Foi preciso mobilizar grande parte da rede de correspondentes para representar o jornal e até foi necessário enviar equipas com dois ou três dias de antecedência para longas viagens de barco pela Amazónia, até aos tribunais mais distantes do país.
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Nesse ano, a igreja usou a mesma estratégia pelo menos mais duas vezes, para perseguir na Justiça os jornais Extra e A Tarde, desta vez numa escala menor — com dezenas de processos em vários pontos dos estados do Rio de Janeiro e da Bahia, respetivamente. Nos três casos, os jornais venceram todos os processos, mas não sem sofrerem grandes prejuízos em deslocações, contratação de advogados e utilização de recursos humanos.
A repetida utilização desta estratégia levou inclusivamente a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) a publicar um comunicado em que se manifestou preocupada com aquilo que considerava ser uma “grave ameaça à liberdade de informação e de expressão”. A forma como os processos eram movidos, defendeu a ABI, era uma “clara demonstração de que a ação assim coordenada tem por objetivo dificultar a defesa da parte adversa“. Agora, a TVI pode vir a ser o próximo alvo.
Queixas da Amazónia à fronteira com o Uruguai
A primeira vez que a Igreja Universal do Reino de Deus recorreu à estratégia dos múltiplos processos em tribunal contra um meio de comunicação foi no início de 2008, no seguimento de uma reportagem assinada pela jornalista Elvira Lobato na Folha de São Paulo. A jornalista, que durante três décadas cobriu assuntos relacionados com empresas de telecomunicações para aquele jornal, tinha publicado, em dezembro de 2007, um artigo a propósito dos trinta anos de existência da IURD, intitulada “Universal chega aos 30 anos com império empresarial”, que teve um grande impacto no Brasil.
Na reportagem, Elvira contou como aquela igreja construiu, em três décadas, um império na área das telecomunicações, com 23 emissoras de televisão e 40 de rádio, além de mais 19 empresas de várias áreas ligadas à comunicação, e denunciou também o esquema usado pelos bispos da IURD para garantir que as empresas não saem do controlo da organização — quando um bispo se torna sócio de uma empresa ligada à IURD, assina também um outro contrato com a igreja, afirmando que tem uma dívida fictícia para com a instituição no valor das ações de que se torna proprietário. Se, eventualmente, entrar em conflito com a igreja e abandonar a instituição, vê-se obrigado a passar as suas participações nas referidas empresas para outro bispo.
“Um mês depois, começaram a chegar ações contra mim”, recorda Elvira Lobato ao Observador. “Mas não eram ações comuns, como se você tivesse entrado no Tribunal de Justiça com uma ação contra mim. Só entraram nos juizados especiais em lugares remotos”, detalha a jornalista, explicando que, “pela legislação brasileira, as ações que entram nos juizados especiais não podem ser unificadas numa só, porque supostamente estes tribunais servem para casos ‘paroquiais’, pequenas disputas entre vizinhos, por exemplo”.
Em pouco tempo, tinham dado entrada na Justiça brasileira 111 ações distintas, em praticamente todos os estados do Brasil, contra Elvira Lobato e contra a Folha de São Paulo. Todas nestes pequenos tribunais, também conhecidos como tribunais de pequenas causas, pelo que o jornal não conseguiu que todas fossem unidas numa única ação. Tudo estava planeado para causar “o maior dano possível ao jornal”, desde a escolha dos tribunais até às localizações caricatas onde foram apresentadas as queixas.
“Eles diziam que os fiéis se sentiram atingidos pela reportagem. Mas nenhum fiel se sentiu atingido em cidades grandes e de fácil acesso. Só em locais onde a Folha não tem escritórios, onde não há Internet, onde não dá para chegar rapidamente… Uma num município no meio da Amazónia onde só dá para ir de barco e se demora três dias a chegar, outro na fronteira com o Uruguai…”, lembra a jornalista.
Orlando Molina, diretor jurídico da Folha de São Paulo, acompanhou de perto o caso e recorda bem as dificuldades que o esquema causou ao jornal, um dos maiores do Brasil. “Chegaram ações dos quatro cantos do Brasil. As ações eram pulverizadas para dar muito trabalho. As deslocações num país do tamanho do Brasil têm um custo enorme e provocam um desgaste muito grande”, explica o responsável ao Observador.
As ações eram praticamente todas iguais. “Os textos que vinham de todo o lado eram quase sempre os mesmos, com pequenas variações, mas sempre com a mesma ideia. Eram fiéis que alegavam que por causa da reportagem se tinham sentido ofendidos na sua fé e exigiam indemnizações para reparação de danos morais”, recorda Orlando Molina. Nenhuma queixa contestava diretamente os dados apresentados na reportagem. Todas se referiam a situações em que, após a publicação do artigo, os fiéis tinham sido ofendidos ou humilhados por causa das informações lá reveladas.
Foram as semelhanças entre as ações que fizeram os responsáveis do jornal começar a perceber que haveria algo por trás dos processos. Não seriam apenas ações individuais, mas um esquema orquestrado pela IURD para causar danos ao jornal.
Durante quase um ano, o jornal multiplicou esforços para conseguir cumprir a obrigação de se fazer representar em todas as audiências. O escritório de advogados que trabalha com a Folha de São Paulo teve de mobilizar advogados em quase todos os estados do país, o departamento jurídico colocou a maioria dos funcionários a trabalhar no caso e correspondentes do jornal em todo o território foram destacados para representar Elvira e o jornal nas sessões.
“Isto virou uma coisa infernal. Foi um atentado judicial contra a imprensa, e obrigou a Folha a um gasto enormíssimo, uma vez que eu não podia estar em todas as audiências”, lembra Elvira. “Havia jornalistas da Folha viajando por todo o país para me representar. E toda a imprensa, na altura, se uniu à Folha, toda a gente nos apoiou, porque se entendeu que aquilo era uma estratégia para evitar que a imprensa falasse da Universal.”
Orlando Molina lembra o “esforço muito grande” para conseguir ir a todas as audiências. O critério era tentar que Elvira Lobato fosse ao maior número de sessões possível. Só quando não havia possibilidade de levar a jornalista é que era nomeado um substituto. “Montámos uma estrutura interna para trabalhar com todos os advogados, para distribuir toda a documentação por toda a gente. Foi, basicamente, um trabalho de planeamento, entre o jurídico interno e o escritório de advogados”, explica.
A dada altura, tornou-se insustentável continuar a levar a jornalista a sessões por todo o país. Para facilitar o processo de defesa, Elvira aproveitou uma oportunidade para sair do Brasil. “A minha filha teve um bebé, nos Estados Unidos, e eu consegui uma autorização para ir para lá dois meses, para a ajudar. Foi uma forma de aliviar a turbulência da Folha aqui. Assim, eles podiam representar-me em todas as sessões sem nenhuma complicação, com a justificação de que eu estava fora do país.”
O jornal acabaria por ganhar todos os processos, mas o impacto daquele episódio foi significativo. “A Folha gastou mais do que gastaria se tivesse sido condenada a indemnizar alguém pela reportagem”, assegura Elvira. Orlando Molina corrobora, mas sem precisar valores. “Os gastos foram significativos para o jornal, sobretudo com as despesas de deslocamento. Num dos casos o local era tão distante que as pessoas que foram tiveram de sair com dois dias de antecedência, tomar um avião e terminar o trajeto de barco, na Amazónia”, lembra o diretor jurídico da Folha de São Paulo.
“Nunca se tinha visto uma coisa daquelas”, diz hoje Elvira Lobato, que se afastou do jornalismo diário e da cobertura das questões ligadas à IURD. “Isso foi um sucesso da Igreja Universal. Durante anos fiquei sem cobrir a igreja, e eu era a repórter que mais escrevia sobre eles. Não porque a justiça tinha proibido, mas como eu era alvo de 111 ações, considerei que não tinha mais imparcialidade para escrever sobre a igreja”, esclarece a jornalista. O episódio tomou uma dimensão de tal ordem que “houve até um deputado estadual que começou a ameaçar os jornalistas que ia fazer ‘igual à Universal’”.
A jornalista não tem dúvidas de que todo o esquema foi planeado ao detalhe. “Foi tudo muito esperto. Alguém pensou na melhor forma de perturbar, de causar o maior dano. Os juizados especiais, os locais de difícil acesso, obrigando a ocupar outros repórteres”, explica Elvira. Até a própria TV Record, um dos canais mais vistos do Brasil, que é propriedade da IURD, foi usada para apelar aos fiéis que movessem processos contra o jornal.
Em vários dos processos, os fiéis que moveram as ações foram condenados por litigância de má-fé, ou seja, por utilizarem indevidamente o sistema judicial. Noutros, os juízes consideraram que a reportagem “não tinha nenhuma intenção de abalar a credibilidade, mas estava baseada em factos verdadeiros, que era um texto jornalístico e que não tinha nenhum dano à moral de ninguém”, explica Orlando Molina.
Mas o estrago estava feito. Meses de audiências, centenas de viagens e estadias por todo o Brasil, jornalistas desviados dos seus postos para representarem o jornal em pequenos tribunais. “Perderam tudo, mas puniram o jornal com gastos, e esse foi o ganho deles”, remata Elvira.
“Foi um assédio judicial”
Também em 2008, ao mesmo tempo que a Folha de São Paulo destacava metade da rede de correspondentes para chegar a todos os julgamentos que corriam pelo país inteiro, a mesma estratégia foi posta em ação a uma escala menor no estado do Rio de Janeiro, contra o jornal carioca Extra, do grupo Globo.
Ao Observador, o então diretor de redação do Extra, Bruno Thys, recorda o “grande prejuízo” que o jornal teve para tentar fazer face aos cinco processos — todos iguais — que pastores da IURD moveram em juizados especiais por todo o estado do Rio de Janeiro, que tem mais de metade da área de Portugal.
“Ainda em 2007, nós publicámos uma matéria sobre um fiel da Igreja Universal, de Salvador, que saiu de um culto, entrou numa igreja católica e quebrou uma estátua de São Benedito. Só publicámos um facto, era uma matéria do dia-a-dia, saiu a meio da semana, não era nenhum trabalho de investigação jornalística. Na altura, eu era diretor de redação. Fiquei completamente surpreso quando começaram chegar queixas, apresentadas por pastores da IURD, que entraram com ações em várias comarcas do Rio de Janeiro. Diziam que estavam ofendidos, agredidos com a matéria”, lembra Bruno Thys.
Tal como na estratégia levada a cabo contra a Folha de São Paulo, os processos começaram a dar entrada vindos de todo o lado. “Não foi um processo, foram vários, o que nos obrigou a ir a vários lugares. Se não fôssemos, perdíamos as ações”, recorda o ex-diretor. O Extra não teve mãos a medir: “Não tínhamos advogados para tanto. Tivemos de contratar um escritório”.
Ainda hoje Bruno Thys se mostra incrédulo com a estratégia levada a cabo pela IURD. “Eles tinham o direito de se sentir ofendidos, mesmo que a nossa matéria não tivesse nada de ofensivo, e de seguir para a Justiça. O pior foi a estratégia. Estou convencido de que a equipa de advogados deles instruiu os pastores todos a entrarem com ações. Foi um assédio judicial, porque o intuito deles era apenas prejudicar-nos, não era reparar nenhum dano”, explica.
O processo acabaria por terminar com a vitória do jornal em todas as ações, mas não sem causar danos à publicação. “Deu-nos trabalho e realmente causou grande prejuízo. Tivemos de contratar um escritório de advocacia, custear despesas, advogados, audiências quase todos os dias. A função da justiça é reparar danos, dirimir questões, não é ser usada como arma para prejudicar alguém. Para usar uma expressão, eles usaram a justiça dos homens para prejudicar a outra parte”, lamenta Bruno Thys.
As ações da IURD obrigaram a publicação a montar “uma verdadeira estratégia de defesa”, porque se o jornal perdesse um dos processos podia ter “graves problemas”. “Aquele foi um momento em que a IURD estava particularmente agressiva contra os media independentes. Qualquer noticiário contra os interesses deles, eles atacavam”, explica o antigo diretor, lembrando que foi o caso contra Elvira Lobato que deu o mote para os outros.
“Eles começaram a assediá-la judicialmente. Nós só tínhamos publicado um facto, mas que coincidiu com a publicação da matéria da Elvira, uma grande repórter por quem eu tenho muito respeito. E então eles começaram a atacar toda a gente”, recorda.
O caso repetiu-se com o jornal A Tarde, da cidade de Salvador, no estado da Baía. Em dezembro de 2007, o jornal também tinha publicado uma notícia sobre a destruição da tal imagem de São Benedito, naquela cidade, e em menos de um mês, já em 2008, tinha mais de três dezenas de ações em cidades de vários estados do Brasil.
“Se a moda pegar, estará extinta a liberdade de imprensa no Brasil”, disse na altura a assessora jurídica do jornal, Ana Paula Cardoso de Morais. Também o diretor editorial do grupo A Tarde, Ranulfo Bocayuva, acusou a IURD de levar a cabo uma “ação orquestrada para intimidar e cercear a nossa liberdade de expressão“.
Das 36 ações movidas contra o grupo A Tarde, nenhuma foi apresentada na cidade de Salvador, onde está a sede do jornal, o que para os responsáveis da publicação foi mais uma indicação de que se trataria de uma ação concertada para prejudicar o jornal.
Advogados prometem “dezenas de ações” contra TVI
Logo no dia seguinte à emissão do primeiro episódio de “O Segredo dos Deuses”, na TVI, o escritório de advogados CCA Ontier, que representa a Igreja Universal do Reino de Deus em Portugal, enviou um comunicado aos meios de comunicação social indiciando que a resposta à investigação da estação televisiva poderá passar por um estratégia semelhante.
“O escritório central da IURD foi já contactado e os seus membros, em Portugal e fora, apresentarão largas dezenas de ações contra TVI em Portugal e no estrangeiro”, lê-se no comunicado.
Em declarações por escrito ao Observador, na sequência deste comunicado, o advogado Martim Menezes, daquele escritório, assegurou que “os membros da Igreja estão por todo o mundo e não só em Portugal”, e que “obviamente irão demandar a TVI em Portugal e fora, onde a emissão também é recebida”. “Temos inclusive notícias que no Brasil, Espanha, Estados Unidos, Luxemburgo, Inglaterra, França, Suíça e Alemanha serão intentadas muitas ações”, afirma ainda o advogado.
“Não cabe à Igreja ter qualquer preocupação com os custos para a TVI, que felizmente os poderá pagar, ou dos jornalistas que optaram por distorcer notícias, falando em adoções ilegais mas legais, passando imagens dos menores sem distorcer o seu reconhecimento, causando muitos danos a todos, apenas em busca de audiência e usando como grande fonte um homem condenado na Justiça e com dezenas de processos e que foge a essa justiça”, disse o advogado, referindo-se ao antigo bispo Alfredo Paulo Filho.
Um jurista conhecedor dos sistemas judiciais português e brasileiro explicou ao Observador que, apesar não haver em Portugal uma figura equivalente aos juizados especiais, a IURD poderá aplicar a estratégia de outras formas.
Por um lado, se a igreja decidir contestar diretamente os factos apresentados na reportagem da TVI, poderia efetivamente instar os seus fiéis a apresentarem as tais “largas dezenas” de ações na vara cível da comarca de Lisboa. Essas queixas, em virtude de serem apresentadas na vara cível, mesmo que tenham o mesmo objeto e os mesmos factos, não serão obrigatoriamente e automaticamente juntas numa única ação, como aconteceria na vara criminal. Isso poderia obrigar a TVI a defender-se em dezenas de julgamentos distintos, mas todos em Lisboa.
Já no que diz respeito a processos movidos noutros países, o mesmo jurista explica que só terão seguimento as queixas que tiverem algum nexo de ligação com a jurisdição onde é apresentada a ação. Ou seja, se um fiel espanhol mover uma ação a contestar a reportagem da TVI num tribunal em Espanha, o tribunal vai declarar-se incompetente por não ter jurisdição, e o processo acaba ali.
Contudo, se o mesmo fiel apresentar uma queixa por ter sofrido algum tipo de ofensa em Espanha na sequência da emissão da reportagem — no fundo, aquilo que foi feito nas queixas contra a Folha de São Paulo –, aí a queixa pode ter seguimento. Mais: tratando-se de países da União Europeia, a TVI poderá mesmo ver-se obrigada a defender-se junto de tribunais de vários Estados-membros.
Contactado pelo Observador, o diretor de informação da TVI, Sérgio Figueiredo, disse que a estação está “familiarizada” com a forma de agir da Igreja Universal do Reino de Deus na justiça, mas não se mostrou preocupado com eventuais processos e garantiu que não houve ainda notificação de nenhuma ação em concreto movida contra a TVI. “Não vamos condicionar as nossas opções editoriais com base no risco judicial“, afirmou o responsável editorial da estação, sublinhando que “as melhores provas estão na reportagem” e que todas as revelações feitas na investigação estão “bem fundamentadas”.