António Barreto, ministro da Agricultura do I Governo Constitucional e grande responsável pela Lei de Bases da Reforma Agrária de 1978, esteve esta quinta-feira na redação do Observador para uma entrevista conjunta. O primeiro presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos acaba de lançar mais um livro, a reedição do seu estudo clássico Anatomia de uma Revolução, livro editado em 1987 e há muito esgotado. Este foi um pretexto para uma entrevista aberta, à redação e aos leitores, sobre tudo: da política atual à política de há 40 anos, dos fogos de Pedrógão Grande ao caso Galpgate, passando pelos problemas da Justiça, que vive “um dos momentos mais drásticos”, e da comunicação social, que considera “complacente” com o atual Governo.
Mas, antes, começa pelos “mitos” associados ao período de ocupações de terrenos agrícolas que marcou o período pós-25 de Abril. E, claro, pela relação com o PCP. Para António Barreto, os comunistas, há 40 anos como agora, sempre souberam que a sua posição dependia da “correlação de forças” entre os vários blocos partidários e adaptaram-se permanentemente às circunstâncias. “Reparem que Jerónimo fala sempre em nova correlação de forças. Tal como fez Cunhal. É esse o carácter essencial dos comunistas”, nota. Muito crítico da solução da “geringonça”, que “nunca devia ter acontecido”, Barreto contesta o facto de PS e PCP quererem caminhos diferentes e, apesar disso, apanharem “bocadinhos” do mesmo comboio.
Sobre a tragédia de Pedrógão Grande, ou o assalto em Tancos, defende que a culpa tem de ser mais dividida. Porque o partido que está no Governo no momento da tragédia dirá sempre que é “a natureza, o sol, a meteorologia”, e o partido que está na oposição dirá sempre que a culpa é do Governo. Seria igual fosse PS ou PSD, diz. Quanto ao Galpgate considera que ou os secretários de Estado que se demitiram são “tolos” por aceitarem aqueles presentes, e por isso “não merecem a pasta”, ou “escondem mais alguma coisa”. Fica a dúvida lançada.
A reforma agrária foi, na revolução portuguesa, a transformação mais revolucionária que já tivemos. Pode dizer-se isto?
Pode-se pôr a Reforma Agrária em paralelo com a nacionalização dos grandes setores económicos e financeiros, de um dia para o outro. A nacionalização de toda a banca, com exceção da banca estrangeira, curiosamente. Toda a banca nacional e os seguros foram nacionalizados, assim como os grandes grupos industriais e de serviços. Com exceção das questões políticas, como a criação de uma Constituição, foi na Reforma Agrária que se foi mais longe, a par das nacionalizações.
Havia ocupações e havia, sobretudo, uma região inteira do país ocupada ou nacionalizada. Mas o que mostra no livro é que, de alguma forma, essa ocupação não foi tão espontânea quanto parece.
De todo. Eu cheguei a fazer uma estatística do número de ocupações, pessoas envolvidas e área das herdades ocupadas. Talvez as duas primeiras ocupações, logo em dezembro de 1974 e janeiro de 1975, como a da Herdade do Outeiro, que foram produto de um conflito local, essas, sim, foram espontâneas.
Mas, a partir de janeiro/fevereiro de 1975, as ocupações passaram a ser organizadas. Pelo sindicato, pela câmara municipal, depois o Grémio da Lavoura, que dava apoio logístico, depois os serviços do Ministério da Agricultura, que foram vitais. Posteriormente, foram criados centros da reforma agrária em cada um dos distritos, com extensões para os municípios, e esses centros tinham os agentes técnicos, financeiros e administrativos necessários. A seguir veio a banca e as Forças Armadas, que foram fundamentais.
Chegou a haver uma brigada da Reforma Agrária, com as herdades que iam ser ocupadas e quando iam ser ocupadas, para os militares se prepararem. Até o Governo apoiava, mas as leis que vêm legalizar as ocupações só entram em vigor no mês de abril. As leis fazem explodir as ocupações. Sobretudo depois do crédito agrícola de emergência: foi criado um sistema em que, se uma pessoa ocupa a terra e coloca lá todos os trabalhadores que entende, a partir desse dia vai-se inscrever no centro da Reforma Agrária, no Ministério, no banco local e no Banco de Portugal, e a partir desse dia os salários são pagos e garantidos.
Entretanto, Portugal vivia uma crise política profunda, havia vazio de poder em varias regiões, havia proprietários que não queriam investir e queriam fugir com as máquinas. Então, começou a criar-se uma situação de instabilidade. E houve um regresso de muitas pessoas ao Alentejo, malta nova, ou que vivia nas colónias, que passa a ver na Reforma Agrária que há um emprego seguro e condições de vida melhores.
Mas, apesar de tudo, há ocupações de movimentos de base e há uma forte componente social. Havia uma vontade de intervir na distribuição de propriedade. O problema era mais ao nível da sazonalidade do trabalho, da grande diferença de classes sociais. É muito mais um movimento social do que um movimento de reforma agrícola, não?
Já tocou em dois ou três mitos que, sendo mitos, têm pouca base real. Primeiro, no Alentejo, em 1973/1974, havia praticamente pleno emprego. A ideia de que havia muita gente desempregada não corresponde à verdade. O Alentejo sofria de falta de mão de obra. Havia criação de emprego em grandes quantidades. E os salários subiam: entre 1973 e 1974 os salários subiam porque não havia mão de obra que chegasse. Outro mito é o das terras abandonadas. Conseguiu criar-se a ideia de que um montado é uma terra abandonada, o que é uma estupidez absoluta. O montado é uma solução reexaminada por muita gente, da esquerda à direita, absolutamente indicada para as zonas áridas e quentes do Alentejo.
Ao contrário do trigo que se tentou por lá e deu cabo de tudo.
Deu cabo de tudo. É interessante porque, poucos anos antes do 25 de abril, houve uma polémica muito interessante entre duas pessoas que prezo muito, uma de esquerda outra de direita: o professor Mariano Feio, geógrafo e proprietário no Alentejo, e o professor Henrique de Barros, professor de agronomia e homem de esquerda. O Mariano Feio defendia o sequeiro e o montado, o Henrique de Barros defendia a intensificação do regadio. E fizeram uma polémica elevadíssima no tom e nos argumentos, por escrito, que chegou a ser impressa como livro, mas que nunca chegou a ser publicado. Naquela altura eu tinha simpatia pela solução do Henrique de Barros, mas o Mariano Feio tinha argumentos importantes. A dada altura, o Henrique de Barros dizia: “o senhor Mariano Feio tem bons argumentos a favor do montado, mas na sua herdade rega”. E era verdade. Em estudos independentes e internacionais o Alentejo teria 4%, 5%, 6%, 7%, 10% de terras abandonadas, apenas.
Há levantamentos feitos pelos serviços do Estado, que depois são marginalizados, sobre o que é que está abandonado, e é quase nada.
Chegou a fazer-se uma lista, a dizer: as herdades x e y estão subaproveitadas. Mas isso são 5% ou 10%. Simplesmente criou-se a mitologia de que o Alentejo estava abandonado, que o montado era um abandono, mas não. Para que serve o montado? Para os ricos irem viver para os casinos em Lisboa e sacarem o dinheiro da cortiça de nove em nove anos.
E para a caça.
Sim, mas tudo isto já lá vai. Outra mitologia era: vamos começar por ocupar as terras abandonadas. Simplesmente, o que se começou a fazer foi ocupar as terras mais ricas e mais trabalhadas e com mais regadio. Ninguém vai ocupar o deserto. Entre ocupar o deserto e uma horta eu vou ocupar uma horta, claro. O mapa do Alentejo das ocupações é muito claramente o mapa das melhores herdades. E as leis, quando se dizia que serviam para penalizar os proprietários absentistas, fizeram uma coisa absolutamente miserável: penalizaram as benfeitorias. Imagine-se dois irmãos que receberam a terra dos pais, 500 hectares para um e 500 para o outro. Um trabalha o terreno o outro não faz nenhum, vem a lei de abril e castiga o que gastou dinheiro para tratar a terra, não o outro.
O livro tem características que podem permitir uma reflexão sobre a evolução da sociedade portuguesa. A primeira é a perspetiva de que a sociedade é fraca perante um Estado forte. O segundo ponto é a divisão do país, porque a reforma agrária é um processo que se passa no sul, no Alentejo. Havia um país dividido e uma sociedade fraca face a um poder político-militar que é, de facto, quem estabelece os termos daquilo que depois parece ser uma ação coletiva. Ainda podemos ver estas duas características na sociedade portuguesa contemporânea?
Quanto à divisão norte/sul foi absolutamente real. A dada altura, receava-se o que no norte se fazia, que era queimar sedes de partidos, etc. É então feita uma lei, a ZIRA (zona de intervenção da reforma agrária). A direita faz a ZIRA porque não quer que haja intervenções políticas de reforma agrária no norte e no centro, porque quer bloquear o Alentejo dos comunistas. Mas os comunistas perceberam que a ZIRA também era a defesa deles. Há vários episódios de herdades e quintas onde houve tentativas de ocupações que eram recebidas pelos próprios trabalhadores com caçadeiras. E é curioso porque, para a direita, a ZIRA é feita para estancar o comunismo e a revolução, e, para a esquerda, é feita numa lógica de defesa como uma espécie de fortaleza.
É uma espécie de primeiro episódio da história da regionalização em Portugal.
Foi um bocado. Os centros da reforma agrária só havia na ZIRA, as brigadas de ocupação só havia na ZIRA. No norte, pelo contrário, havia as campanhas de dinamização cultural, onde iam militares, psicólogos, professores, médicos, que iam doutrinar as hostes reacionárias. Essa divisão existia. Quanto ao outro aspeto, o essencial da revolução do 25 de abril é organizado pelo aparelho do Estado. O que não quer dizer que não tenha havido entusiasmo da população — houve, houve um brutal entusiasmo e uma verdadeira erupção de alegria. Mas alguns dos passos dados do 25 de abril ao 25 de novembro já estavam compendiados. Leia-se o Rumo à Vitória, de Álvaro Cunhal, e o Relatório ao Sexto Congresso. Ele aí discute isto: “Há camaradas que perguntam o que vai acontecer se um dia houver um levantamento nacional”, conta, e Álvaro Cunhal diz: “um levantamento nacional pode ser civil ou militar, ou ambos, e o que têm de fazer é isto, isto e isto, têm de criar um governo provisório, fazer uma eleição Constituinte, não dar poder à Constituinte”. Isto aconteceu em São Petersburgo.
Havia uma inspiração clara da revolução russa.
Sim, em Portugal, o que é que o MFA e alguns esquerdistas têm como roteiro? Isto. Quando a Constituinte começa a reunir em 1975, os partidos democráticos querem ter uma hora antes da ordem do dia para discutir a política nacional — e o PCP não quer. Há ali um grande embate e a maioria vence. O que é que o PCP faz, então? Não está presente. O plenário começa e os comunistas saem da sala durante uma hora, quando se está a discutir a política nacional. Quando termina, o presidente da Assembleia Constituinte toca a campainha para dizer ‘acabou a hora antes da ordem do dia’. E nessa altura eles voltam a entrar na sala. Assim aconteceu até ao dia 24 de novembro. No dia 25 de novembro, o PCP perde. E a primeira sessão da Assembleia Constituinte depois disso já é diferente: o PCP está presente na hora da discussão política e diz algo como “na nova correlação de forças nós vamos estar onde se está”. E reparem que, hoje em dia, de cada vez que aparece em público, o Jerónimo de Sousa fala na ‘nova correlação de forças’. O critério essencial da estratégia dos partidos comunistas desde há 100 anos é o mesmo: a relação de forças. O que fez com que [Charles] de Gaulle tenha dito uma vez: “os comunistas fazem o que se lhes permite e permitem o que se lhes faz”.
Temos perguntas de leitores e da redação. Mas antes uma pergunta em nome próprio: Eu sou alentejano e cresci a ouvir em Grândola os gritos de ‘Barreto para a rua, esta casa não é tua’. Naquela época nunca foi agredido? Não teve tentativas de agressão?
Fisicamente tive três vezes, mas sem grandes consequências. Uma delas em Murça, Trás-os-Montes, por um bando de extrema-direita. Outra em São Miguel, no teatro Micaelense, por um grupo da Frente de Libertação dos Açores. E outra numa aldeia em Viana do Alentejo por um grupo de comunistas — empurra daqui, pontapé dali, nada mais do que isso. E uma vez em Salvaterra de Magos impediram-me de falar, mas nada de mais. Aqui em Lisboa nada, só coisas de intimidação aborrecidas. Eu vivia num hotel nas Janelas Verdes e houve pichagens feitas na rua, no pátio do hotel, na entrada. Diziam “morte ao Barreto”, “vai para a rua”. E em Vila Nova de Gaia também, onde viviam os meus pais.
Não estranhou que no Alentejo não tenha havido nessa fase verdadeiras tragédias?
Não estranhei porque tomamos algumas precauções. Não só eu, o general Ramalho Eanes, o Governo na altura. Desde que entrei em funções houve cerca de 540 de saídas da polícia e da GNR para resolver problemas da contra-revolução. Por combinação entre o Ministério da Agricultura, o Ministério do Interior e o general Ramalho Eanes, fizemos várias reuniões e uma das coisas que decidimos foi que as brigadas da GNR que iam para o Alentejo deviam ir sempre com duas, três vezes mais pessoas do que o que seria necessário. Iam com metralhadoras pesadas, jipes armados, G3, o que o PCP chamava na altura de o “aparato fascista”.
Qual era a ideia? Quanto maior for o aparato maior será a capacidade de intimidação. Resultou, e resultou sobretudo porque as balas não eram verdadeiras. Isso ninguém sabia. Curiosamente houve várias vezes notícias no “Diário”, o jornal do PCP, a falar de ‘tentativa de assassinato deste ou daquele’. Aquilo eram exclusivamente balas anti-manifestação. Em todo este período, não houve um único morto no Alentejo. Viria a acontecer mais tarde, quando parou o ‘aparato fascista’, e quando, para fazer uma operação, iam apenas dez guardas da GNR, que, esses sim, estavam armados com balas verdadeiras. Foi a receita para o desastre.
Duas perguntas de um leitor: Há ainda em Portugal um certo preconceito social contra a direita? E outra: O papel da comunicação social portuguesa é totalmente isento, nomeadamente ao nível da imprensa escrita?
Ora bem, agora preciso de dar um salto de 40 anos. Eu creio que existe algum preconceito contra a direita, e é curioso porque quando, por exemplo, nos debates parlamentares ou noutras ocasiões alguém diz “isto é a política da direita”, isso é um insulto. E passa como tal. Se for o contrário, “isso é de esquerda”, para a maior parte das pessoas é qualificativo.
Em Portugal há o Bloco de Esquerda mas não há nenhum partido que diga sequer que é de direita.
Se eu disser que é uma política de direita já estou a dizer que é uma política que não presta. Nem vale a pena argumentar sobre isso. A direita, ela própria, talvez por causa da ditadura de Salazar, também tem vergonha de dizer que é de direita, o que contribui para o preconceito. Eu não gosto de simplificar, mas às vezes ajuda: o que é que a direita faz? Dinheiro, empresas, enriquece e faz enriquecer. A esquerda faz o quê? Cultura, letras, palavras, cinema, teatro, jornais, educação. A esquerda tem, digamos assim, “boas especialidades” e a direita tem “más especialidades”. Não sei se isto é um preconceito exclusivamente português, em França também se sente um bocadinho isto. Já sobre a comunicação social, há de tudo. Há tendenciosos e há isentos. Na imprensa portuguesa escrita há de tudo. Mas, acrescento, nos tempos que correm há uma tendência primordial de complacência com a esquerda. E há o contrário, há alguma predisposição pouco amigável com a direita. O bom momento que este Governo viveu neste ano e meio ficou a dever-se, em grande parte, à complacência, à cortesia, da imprensa em geral.
Fazendo uma ponte entre o que viveu naquele período e o que se vive hoje, os partidos eram mais ou menos parecidos no que diz respeito aos temas agrários, mas depois houve uma clara clivagem entre o PS e o PCP. Quarenta anos depois vemos na correlação de forças atual o PS a governar, na prática, com o PCP. Esta solução fez-lhe espécie? Disse uma vez que gostava que tivesse falhado.
Eu disse que gostava que não se tivesse feito. Criou-se uma ideia de que todos os partidos têm direito a ser governo e que houve uma espécie de capitis deminutio em relação ao PCP. Quando se começou a fabricar esta solução, ouvia-se algo como: ‘então achas que os votos do PCP são diferentes dos outros, achas que os deputados do PCP são de segunda categoria?’. Não acho, não, mas não gosto deles, não gosto do programa deles. Não sou obrigado a apoiar um Governo no qual eles estão. Acho que é a coisa mais natural do mundo: não ser obrigado a gostar. Os votos são todos iguais, os deputados são iguais, mas há os de que gosto e os de que não gosto, há os democratas e os que não são democratas.
Porque é que eu queria que não se tivesse feito [a geringonça]? Em primeiro lugar, porque pensava, e penso, que Portugal está numa situação muito difícil estruturalmente e numa situação internacional ainda mais difícil, apesar da aparência de crescimento económico a que estamos a assistir. Pensava que era preciso uma maioria parlamentar muito robusta e sólida para começar a fazer as grandes reformas. À crítica de que o Bloco Central é a corrupção, peço para verem um governo de um só partido e para compararem. Em segundo lugar, conheço muito bem o programa político do PCP e do BE, o que quer que se faça com estes dois partidos é sempre com uma intenção: é mais um passo para chegar ao mesmo sítio. E esse sítio é “não Europa, não euro, não NATO, não democracia conforme a conhecemos”. E eu não quero isso, não quero fazer bocadinhos de caminho com alguém que não quer ir para o mesmo sítio que eu. Não vou meter-me no comboio com alguém que quer ir para Alverca quando eu quero ir para a Marinha Grande ou para o Porto. São dois caminhos diferentes. Agora, os votos dos comunistas são iguais aos outros, com certeza.
O que é que durante tanto tempo impediu o Partido Socialista de realizar, isto é, de ceder, a esta ideia do PCP. Falo de Mário Soares, das tendências dele, dos cuidados que ele tinha, da memória do PREC. Era só isso? Era só a proximidade do PREC?
Quem impediu essa coligação foram os socialistas, sempre. Incluindo o António Costa que, durante vários anos, era um dos porta-vozes do PS, do PS democrático, do PS europeu, contra o PS de coligação à extrema-esquerda. A mudança mais importante neste conjunto, nesta relação de forças, é que o PCP percebeu há dois ou três anos que era agora ou nunca e que a via do declínio estava nas cartas. Até porque existia o Bloco de Esquerda ali ao lado deles. O PCP quer crescer para cima do Bloco mas o Bloco quer crescer para cima do PS ou para dentro do PS. O PS tinha grupos de extrema-esquerda, uma esquerda mais musculada. O Lopes Cardoso era de uma esquerda mais robusta.
A maioria do partido e do eleitorado do PS estava muito consciente de que podia perder eleitorado do norte e do centro de um dia para o outro se se metesse em aventuras esquerdistas. Viveu esses anos todos com essa obsessão. E bem, acho eu. Houve uma avaliação de que a força do PCP era menor. Portanto, se já não tinha a força que tem, já não tinha agora a força que tinha do passado. Muitos do Bloco de Esquerda vão um dia acabar no PS, quem sabe, outros no PCP, outros não sabem para onde é que vão. Neste conjunto de avaliação de forças, o primeiro-ministro António Costa disse: “É a altura”. Além de que não havia mais nada. Ou era isto ou não era nada. A conjugação destas duas coisas fez com que houvesse uma mudança.
Mas não é fácil. Fala-se na PT, no Espírito Santo, no BPN. Qualquer assunto que apareça, o único ponto é: faça-se isso para nacionalizar, para acabar com os privados. Sempre. Então onde é que o PS pode aguentar isto? Ou tem mais votos e dispensa o PCP no governo ou não tem mais votos e não dispensa o PCP, e tem de ceder porque o PCP está muito atento à relação de forças.
Tem dito nos últimos anos que os consensos alargados estão excluídos, então com a atual relação de forças isso está ainda mais excluído. O que teria de mudar para transformar o seu pessimismo sobre Portugal em otimismo?
Continuo um otimista para mim próprio e quando vou a estacionar o carro normalmente tenho lugar. Sou otimista em relação à minha vida. Em relação a Portugal, não sou otimista porque as condições continuam muito difíceis. O nosso grau de endividamento é o pior que há em Portugal, do privado, do sistema bancário, de todos. É tão grande que os portugueses estão dependentes e condicionados como raramente estiveram na vida. Talvez tivessem mais autonomia e mais liberdade durante o reino dos Filipes do que agora. Parece uma brincadeira mas não é. O reino dos três Filipes, sobretudo o primeiro: além de ser um grande rei, ele era duplamente rei de um lado e do outro e tinha duas legitimidades e nunca aboliu as tradições políticas portuguesas durante o seu reinado. Portugal tinha mais autonomia. Dependia de um rei estrangeiro, com certeza, mas autonomia própria. Havia uma coisa chamada “Conselho de Portugal”. Nós estamos tão dependentes e vai ser difícil sairmos desta dependência antes de decorrerem muitos anos. Por outro lado, as circunstâncias internacionais, olhadas com alguma atenção e alguma seriedade, é aflitiva.
Não é possível, num ano ou dois, alterar tendências profundas do ponto de vista da mentalidade política e da força europeia. A Europa está hoje fraquíssima, está muito velha, com muito pouca capacidade de inovação. A capacidade de inovação europeia está a transitar, a transferir-se para outros sítios. A capacidade financeira está a transferir-se. A Europa ainda tem um grande mercado. A frase não é minha, infelizmente, mas é uma bela frase: “A Europa está como um parque temático”. Tem o gótico, tem o maneirista, tem o romântico, tem o impressionista, na arquitetura, na cultura, na música. É um parque temático para turistas internacionais. Isto é péssimo para a Europa e para os europeus, como é mau para um país que precisa do exterior para crescer e consolidar. Por outro lado, não vejo que os nossos partidos políticos e os nossos dirigentes políticos estejam empenhados em fazer alguns esforços, nomeadamente de abdicação das suas ideias próprias, de fazer coligações, de fazer entendimentos. Não estão dispostos a isso. Estão dispostos a pedir aos outros sacrifícios, austeridade, contenção, reforma, pensões. Estão dispostos a tudo. Nós estamos dispostos a que eles façam concessões para encontrarem as soluções instrumentais necessárias. Por isso, continuo pessimista.
Quando assiste a um debate parlamentar fica angustiado com o tom, com o registo, com a agressividade. É uma coisa que aconteceu por causa da crise dos últimos anos e da viragem à direita nos partidos ou da viragem à esquerda de outros ou há algo mais estrutural e mais preocupante?
A única coisa sólida que há em Portugal é o Estado. Para se agarrar. Já há pouca cultura, há pouca economia, pouca empresa. Os partidos políticos olham para a economia mas, infelizmente, com muito más intenções. Houve corrupção por tudo quanto é sítio, isto é, partidos a tentarem encontrar uma base sólida de subsistência. As pessoas a que é que se ligam? Ligam-se à economia, aos ricos, aos votos, aos sindicatos, ao Estado. O Estado em Portugal é enorme como é sabido, mas ainda é para um partido político a única fonte com alguma seriedade. Depende dos votos, depende do Estado. Como o objeto é único e é objeto de todos os desejos, as pessoas berram umas com as outras e gritam e são mal-educados e insultam-se sistematicamente. Depois, nos corredores, parece que há um clima mais ameno, para a televisão.
A restauração do puro conflito de classes, de esquerda e direita, é errado. Gosto que cada qual defenda as suas ideias. O problema é que a esquerda e a direita já não refletem toda a variedade da política de uma sociedade. É tão mau fazer esquerda/direita conforme se está a fazer hoje como era mau fazer católicos/maçons há 100 anos. São a meu ver, divisões erradas.
Em Portugal, é uma divisão nova na democracia. Em 1975 não há uma divisão esquerda-direita.
Exatamente. Isto está a ser restaurado agora. A esquerda-direita está a ser restaurada agora. A Europa fez-se nestes 40 ou 50 anos entre outras coisas porque conseguiu duas coisas importantíssimas: dispensou a luta nacionalista e dispensou a luta de classes. Na construção europeia, a esquerda e a direita colaboraram muitíssimo, e deixou de ser uma coisa muito importante. A maneira como votam o Parlamento Europeu e os Parlamentos nacionais é muito interessante porque se vê que há uma espécie de desbastar da agressividade irreversível entre esquerda e direita.
Como é que analisa a atitude do Governo relativamente ao incêndio de Pedrógão Grande e em relação ao assalto em Tancos? Como é que vê a forma como o governo reagiu mas também o Chefe de Estado-Maior do Exército? Acha que António Costa devia demitir os ministros da Administração Interna e da Defesa?
Em relação à mistura entre os incêndios e Tancos e as armas, é uma mistura que resulta da conjuntura cronológica. Foram a poucos dias uma da outra. Só têm de comum a trapalhada e a falta de preparação. Há 20 ou 30 anos, escrevi um artigo num jornal em que eu dizia ‘meu pobre país frágil’. Houve um senhor diretor do jornal que me disse: ‘Você acha mesmo que é tão frágil quanto isso? Olhe que não, Portugal já está melhor e tal’. Pois esse senhor diretor do jornal por acaso é o José Manuel Fernandes.
Um mês depois, perante inundações que deram cabo de metade do país, nasce um artigo dele de editorial, dizendo: ‘Afinal ele tinha razão, Portugal é um país frágil’. Isto mantém-se. Apesar de ter havido progresso seguro em muitas áreas do país, a prevenção pública das escolas, das ruas, das estradas, das florestas, das arribas, das falésias no mar, é tudo muito frágil. Qualquer rabanada de vento, qualquer chuva, já nem falo de terramoto, têm rapidamente consequências muito negativas. Há quem diga: ‘Não, não, isto melhorou muito porque, por exemplo, nós tínhamos dois ou três mil mortos na estrada, há 40 anos’. Verdade, era o país da Europa, dos países do mundo, com mais mortos na estrada e é verdade que hoje não é comparável. Estamos, acho eu, melhores.
Estamos a piorar outra vez, aparentemente.
Isto ficou a dever-se por um lado a autoestradas. Quando há autoestradas, os carros não se cruzam e portanto há ali um grande desbaste de acidentes. É um bocado de prevenção e é um bocado de educação, certamente. Mas isso não chega. Este sinal de melhoramento existe mas não chega. Parece ser dado sempre o privilégio ao que é rápido, ao que é visível, ao que dá nas vistas. ‘Tu fazes o que dá nas vistas, não fazes o que faz falta’. A prevenção é o que faz falta e a prevenção não dá nas vistas. Nunca dá nas vistas. Prevenir o caminho para as escolas das crianças, prevenir um fogo numa floresta, prevenir que autoestradas ou estradas nacionais não tenham aquela espécie de armadilha. Isto é prevenção.
Mas, com Tancos, a primeira coisa que eu pensei foi que há dez anos um jornal publicou a lista de espiões. Foi um caso único no mundo. O único pais do mundo que um dia publicou a lista dos seus espiões secretos foi Portugal. Este Governo não fez muito pior nem muito melhor do que o anterior, nem o anterior fez muito pior nem muito melhor do que o anterior. Nós já tivemos incêndios tão maus como este, com uma exceção: neste caso houve a morte de 64 pessoas, o que altera tudo. Também já houve roubo de armas em Portugal múltiplas vezes. Há aqui uma enorme trapalhada, falta de prevenção, sistemática atenção e prioridade dos governos, deste e do anterior. A ideia de que este Governo foi melhor do que o anterior ou pior do que o anterior para os incêndios ou para Tancos? Não aceito essa ideia. O anterior podia ter feito muitas coisas para prevenir, mas este também. Quando os nossos amigos estão no poder, o incêndio é culpa da natureza, do sol, do clima mediterrâneo e do eucalipto, com certeza. Se estão os da oposição, então o culpado é o Governo. Hão-de reparar que isto é simétrico, aos partidos do Governo e aos partidos da oposição.
Demissões? Sinceramente, não sei. Sei que o Governo fez tudo para esbater um assunto e o outro. Fez tudo para dissolver as responsabilidades. Fez tudo o possível para que não se saiba nada imediatamente, o mais devagar possível. O ‘golpe democrático’, entre aspas, muito entre aspas, do primeiro-ministro António Costa foi o de dizer publicamente, no dia seguinte ou dois dias depois: “Já escrevi perguntas aos serviços e as perguntas são públicas”. Até parece que isto é a democracia em ato. Pelo contrário, isto é a pura manipulação, isto é dizer: ‘Não, não temos nada a ver com isso, a responsabilidade é dele’. E como cada serviço tem uma ideia diferente, da GNR, da PSP, das Forças Armadas, dos bombeiros, do serviço público de prevenção, do serviço do Ministério, o Governo e o primeiro-ministro distanciam-se. Com um gesto de pura demagogia democrática.
Não seria este o momento ideal para se fazer a discussão sobre qual é o papel do Estado e que Estado querem os portugueses?
Acho que é sempre o momento. Talvez agora mais do que anteriormente. Nós vamos ter eleições daqui a dois anos. Em principio, daqui a dois anos, talvez seja antes. Depois nunca. Se tudo correr como algumas pessoas prevêem, vamos ter eleições no fim da legislatura. O fim desta legislatura vai passar pelo interessantíssimo problema de se saber se continua a esquerda, se passa para a direita ou se se faz uma junção sem alteração.
O Estado que querermos, depende desta discussão. Se queremos um Estado liberal ou um Estado robusto e interventor. Se queremos um Estado que tem uma enorme despesa social ou menor. E, no caso da despesa social, ser uma despesa social universal ou seletiva. Isto é, por exemplo, se os serviços de saúde são pagos de forma igual para toda a gente, ricos e pobres, ou se são pagos sobretudo para os pobres e para os remediados. Isto é o que está em discussão hoje. Com o nosso grau de endividamento, é indispensável fazer esta discussão, o mais depressa possível. Até por causa do Estado social. Com esta dívida e sem um crescimento económico da ordem do três, quatro, cinco por cento, que vai ser impossível, não se paga o Estado social. É uma boa altura, sempre foi, para refazer a discussão.
O atual Governo conseguiu demonstrar que há uma alternativa à austeridade ou que, pelo menos, é possível uma austeridade com um perfil menos agressivo? Por outro lado, acha que a estratégia do PSD de esperar pelo diabo foi a melhor estratégia?
Acho que a oposição se enganou redondamente desde o primeiro dia. A oposição devia ter dito imediatamente que um Governo que passa no Parlamento é um governo legítimo, um governo legal, empossado com o beneplácito, a posse conferida pela Presidência da República, tem os votos do Parlamento, foram legitimamente eleitos. Esse Governo é eleito desde o primeiro minuto e a oposição devia ter considerado isso e ter estabelecido isso de uma vez para sempre.
Se eu tivesse sido primeiro-ministro nesse caso, a primeira coisa que eu teria dito ao Parlamento era agradecer ao governo anterior. Agradecia o esforço que eles fizeram, agradecia a poupança que eles conseguiram, agradecia terem posto as finanças públicas em melhor estado ao fim de quatro anos, criticava os excessos, criticava o que eu achava que não devia ter sido feito e que eu iria corrigir, mas agradecia ao governo. Se o primeiro-ministro, António Costa, queria uma arma letal para a oposição, era esta, era a de agradecer. Mas já se sabe que metade do que o Governo atualmente está a fazer é aquilo que se chama uma austeridade de outra maneira. Havia alternativa? O que é uma alternativa? É uma maneira diferente de fazer coisas parecidas ou coisas diferentes.
Está a ser uma alternativa, esta solução?
Está, mas não a alternativa no essencial que é o pagamento da dívida e o crescimento económico. Ainda não é alternativa nenhuma. Mas é alternativa às pensões, às reformas, ao bem estar das pessoas, ao dinheiro que foi devolvido e à paz social. A paz social faz parte de uma estratégia política do Governo e o primeiro-ministro comprou a paz social com o PCP e com o Bloco. E enquanto der é um sucesso, é um êxito.
Se os votos derem maioria absoluta ao PS, o PS trata o PCP e o Bloco com piparotes ou então obriga-os a ir para o governo numa estratégia do género do François Mitterand, que não precisava do partido comunista no governo, meteu-o no governo e deu cabo dele. Posso dizer que António Costa queira fazer isso se tiver os votos. Se não tiver os votos, o PCP e o Bloco vão fazer mais exigências e vão ser muito mais agressivos e muito mais assertivos.
O que pensa do número de deputados que há na Assembleia da República?
Não penso grande coisa. O número de deputados em Portugal incrustrou-se como um problema, é sempre um problema há anos e anos e anos. Se os partidos se entenderem, numa revisão constitucional, em reduzir para 200 ou 180 deputados não vejo mal nisso, talvez tenha uma vantagem. Há deputados que não fazem grande coisa, não fazem nada. Há deputados que trabalham muitíssimo. Eu andei por lá e garanto-vos que há deputados que trabalham 10, 15, 16 horas por dia, que são formiguinhas do trabalho, e há os deputados que estão ali a passear-se e a dar nas vistas. E há-os, seguramente, em todas as bancadas parlamentares. Ninguém me dirá que há um partido especial em que trabalham mais. Talvez nos partidos mais liberais haja menos sentimento regimental, um deputado preguiçoso consegue ser preguiçoso. Um partido mais ditatorial ou mais despótico não aceita que um deputado só trabalhe três horas por dia. Mas o número de deputados não vejo que seja um grande problema.
Para mim, o grande, grande problema dos deputados é o seu modo de eleição, dado que ali nenhum deputado responde perante o seu eleitorado. Responde perante o chefe do partido. O verdadeiro patrão dele é o chefe do partido. E devia ser ao povo que ele devia prestar contas. Eu sou eleitor em Lisboa, mas como Lisboa tem 50 deputados, eu tenho 50 deputados e sei lá eu quem são os meus 50 deputados.
Como é que olha para o atual estado da justiça portuguesa e para as investigações em curso?
Eu tenho uma visão muito cética e muito negativa da justiça portuguesa dos últimos 50 anos. Não se renovou, não se adaptou, não ficou independente, criou sindicatos: coisa que eu acho inaceitável. Alguns setores da justiça foram infiltrados por universos políticos. O pior de tudo é que se confundiu a independência com autogestão: a independência é a independência do juiz, mas o juiz depende do soberano e o soberano é o voto popular, portanto tem de haver uma estrutura diferente.
Estamos, talvez, a viver um dos momentos mais importantes e mais cruciais da justiça portuguesa porque há cerca de cinco anos iniciou-se uma série de processos. Banqueiros, que nunca mais acabam arguidos ou até fugidos nalguns casos. Ministros vários, incluindo condenados, em recurso à espera de cumprimento, deputados, chefes de grupo parlamentar, secretários de Estado, até chefes da polícia: presos ou julgados ou arguidos. A lista dos cargos importantes na finança, na política, no governo é uma lista única na Europa e única, talvez, no mundo. Se a justiça não dá conta disto e se isto acaba em nada – que é uma hipótese – é o fim do descrédito da justiça portuguesa para sempre.
E sobre a ameaça de greve dos juízes?
É inaceitável que os juízes façam greve, inadmissível e inaceitável. Critico e condeno veementemente. Das coisas mais graves que acontecem em Portugal é um grupo de juízes em greve: os juízes não têm o direito à greve. ‘Ah, está a tirar direitos ao cidadão’. Os cidadãos são todos iguais, menos alguns: os militares não têm direito de greve, os juízes não deviam ter direito de greve. Os deputados não têm direito de greve, os ministros não têm direito de greve, os magistrados consideram-se a eles próprios soberanos, portanto não têm direito a greve.
O que acha da demissão dos três secretários de Estado por causa das viagens pagas pela Galp?
Eu não percebo porque é que estes senhores se demitiram. Primeiro, porque não há só três que foram lá ver o futebol. Nos últimos quatro ou cinco anos, parece que há trinta e tal ou quarenta e tal. Onde estão os outros? Porque se demitem uns e não outros? Porque se demitiram agora? Eu não percebo. As notícias de avaliação de ativos da EDP e da Galp são notícias muito, muito preocupantes, porque são negócios que estão a fazer girar centenas de milhões de euros e cujas decisões dependem dos secretários de Estado também.
É crime aceitar ir ver jogos?
Acho uma estupidez e uma idiotice. Eu tenho vergonha de dizer que é crime aceitar ir ver um desafio de futebol. Chamar isso de crime eu tenho vergonha, é uma parvoíce, uma estupidez. Agora, um senhor secretário de Estado não merece ser secretário de Estado só porque aceitou um bilhete de futebol, acho que não merece: é tonto, é tolo, é idiota. Um lugar num avião, que nem sequer é executivo, um lugarzinho de Easyjet que custa 25 ou 30 euros, com umas sandes em pão velho amolecido e mais um bilhetinho para ir estar num camarote desconfortável ao frio e à chuva para ver um desafio de futebol. Isto é o quê? Das duas uma, ou eles são tontos – então desapareçam, acaba-se o assunto – ou então há mais qualquer coisa e eu não sei.