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António Pedro, o gigante esquecido

Celebram-se os 50 anos da morte do escritor António Pedro, um dos maiores agitadores da vida cultural portuguesa do século XX, e revelam-se dois quase-inéditos sobre o Brasil.

A personalidade literária e artística de António Pedro (1909-66), uma raridade de talentos e versatilidade, aguarda ainda — meio século após a sua morte, que agora se assinala — a devida consideração de editores e historiadores académicos, que com crescente intermitência encaram o seu legado único, que cruzou poesia, jornalismo, romance, galerismo, pintura, edição, radialismo, crítica, tradução, escultura, conferencismo, até se implantar no Teatro Experimental do Porto, a que tanto ligou o seu nome, de 1953 a 1962, na cerâmica decorativa e na crónica televisiva.

retratos ap

Dois retratos de António Pedro por Arlindo Vicente, 1927 e 1929. O advogado e pintor deu o nome do amigo ao seu filho o historiador António Pedro Vicente.

À dispersão editorial da sua obra escrita soma-se a falta de identificação e resgaste impresso de inéditos e de avulsos, de crónica e crítica, sem os quais o entendimento da sua intervenção estética ficará obliterado. A Biblioteca Nacional, que o homenageou em 1982, não colocou ainda em linha o inventário do seu espólio de desenhos e manuscritos (o que permitiria exponenciar a sua consulta) e a revista vanguardista Variante, que ele dirigiu em 1942-43, ainda não foi devolvida ao mundo através de uma hemeroteca digital, apesar da brevidade e mínimo encargo desses gestos.

3. Auto-retratos

Dois auto-retratos de António Pedro, c. 1940.

Alguém escreveu, há mais de trinta e cinco anos, que «António Pedro, merecidamente, ocupa um lugar de relevo que, se até agora ainda não lhe foi reconhecido, é apenas porque ele, durante toda a sua vida, chegou sempre primeiro do que os outros, e porque não viveu em sintonia com uma realidade cultural portuguesa desfasada do resto do mundo», parecendo repercutir Casais Monteiro, no citado obituário: «Ele foi em muitas coisas o homem necessário, mas sempre, em última análise, solitário».

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O próprio haveria de escrever, no prefácio a um Dicionário Prático jamais impresso: «gosto de ser português como o António Nobre gostava de ser tísico, por saber que desse mal não há remédio para me curar. E antes vítima que renegado, prefiro-me a viver uma vida que não quero a ter uma morte que não entenda».

A reduzidíssima abordagem da sua obra é — senão um caso de deliberada ocultação — pelo menos o resultado de uma bizarra indiferença de historiadores e críticos de arte e literatura diante daquele que, sem qualquer dúvida, foi um dos maiores agitadores da vida cultural portuguesa do século XX. No obituário para o jornal Estado de São Paulo, um admirável depoimento omitido em todas as publicações dedicadas a António Pedro em 1982, 2005 e 2009, Adolfo Casais Monteiro chamou-lhe simplesmente «o animador da vanguarda» (no próprio título…), e um pouco abaixo escreveu: «Seria um desfiar sem fim apontar todas as coisas mais ou menos anónimas que se lhe devem.»

4. Devagar 1929

Esmero gráfico nos livros de poesia Devagar e Diário.

António Pedro foi o primeiro galerista de Maria Helena Vieira da Silva, na sua UP, na Rua Serpa Pinto, 44, ao Chiado, em Junho de 1935. Tinha então apenas 26 anos e escreveu no catálogo o seguinte: «Estão aqui os quadros de Maria Helena. Os seus primeiros quadros modernos, os primeiros quadros modernos que se expõem em Portugal desde Amadeo de Souza-Cardoso. Não é o momento de discutir se a sua arte é melhor ou pior do que. Para classificar uma coisa são precisos elementos de comparação que em Portugal, por ora, não existem.» A sua lucidez já havia sido lapidar para com Mário Eloy em 1931 («nós, é claro, em Portugal, não somos grandes pintores. Andamos aí a pintar e faz-se o que se pode. O Mário Eloy […] não foi um grande pintor na Europa. Para cá era muito bom»), e haveria de sê-lo também, quanto a António Dacosta, que desde cedo bastante apadrinhou. A exposição de ambos com a inglesa Pamela Boden é tida como um momento-charneira da arte portuguesa.

Anos antes, em 1929, tendo ido a Cabo Verde, onde nasceu, para efeitos de incorporação militar (seria isentado por «excesso de altura»…), escreveu um livro de poemas, Diário, que segundo Francisco Fragoso, em artigo muito recente (As Artes entre as Letras, Porto, 27 de Julho de 2016, p. 8), é «obra de cunho teluricamente caboverdiano, razão pela qual [ele] é considerado como o primeiro intelectual caboverdiano a descobrir literariamente Cabo Verde». Jaime Figueiredo, capista do livro, seria levado por António Pedro a expor no Salão dos Independentes, em Lisboa, no ano seguinte.

cabo verde

Do livro de poemas dedicado a Cabo Verde em 1929, considerado precursor para a identidade cultural caboverdiana.

Nesse Diário, como em Devagar, publicado em Coimbra com um prefácio de Hipólito Raposo, também em 1929, e mais ainda em A Cidade (1932), quase um livro miniatura, torna-se notório o interesse de António Pedro pelas artes gráficas, ou, para ser mais específico, por tipo-grafismo. Num depoimento de 1989, Thomaz de Mello informou que, além da galeria de arte UP — cuja fachada era uma obra de arte por si mesma —, tinham «uma mini-tipografia equipada com o mais moderno que havia nas fundições tipográficas», «onde muita coisa diferente realizámos», e Maria João Mendes dos Santos, numa tese dedicada ao designer gráfico Sebastião Rodrigues, reconhece ter sido António Pedro «um pioneiro da tipografia moderna em Portugal, cujo trabalho tem passado com alguma frequência despercebido», mas «é um precioso documento para a compreensão da relação existente entre a vanguarda política e a vanguarda artística, o modernismo e o nacionalismo» (2002, fl. 26). Pelo Natal de 1935, cronista de arte do jornal Fradique, produziu com caracteres, vinhetas e símbolos um gracioso «Presépio. Brinquedo gráfico de António Pedro para os meninos dos tipógrafos», publicado na primeira página da edição de 26 de Dezembro.

Ele sabia tão bem o que queria e podia, que fez imprimir — e proclamou-o expressamente — a revista Variante (1942-43) nas mesmas excelentes oficinas gráficas de Libânio da Silva que haviam feito, nos anos 20, a referencial Contemporânea de José Pacheko e a Athena de Fernando Pessoa. José-Augusto França garante que António Pedro foi o designer gráfico da revista, «notavelmente paginada» (Arte Portuguesa Anos 40, p. 144).

A indomável vertigem criativa levou-o a pintar um armário antigo da sua sala com motivos surrealizantes em talha e embutidos policromados de «gosto pessoalíssimo, inconfundível», que o poeta Carlos Queiroz comentou e Mário Novais fotografou em 1944, para o n.º 19 da revista Panorama.

Do muito que António Pedro fez, também ressalta a sua aproximação ao Brasil, a ponto de França a ter equiparado à iniciativa de António Ferro na década dos primeiros modernismos. Também isso tem sido descurado.

De facto, quando viveu em São Paulo e no Rio de Janeiro, de Dezembro de 1940 a finais de 1941, Pedro conheceu artistas plásticos e escritores, publicou em revistas, expôs e vendeu quadros a museus, e quando voltou para Lisboa fez tudo o que estava ao seu alcance para dar a conhecer por cá a nova cena cultural brasileira: deu uma conferência no Secretariado de Propaganda Nacional sobre pintores brasileiros aquando da vernissage de uma exposição de Cícero Dias, e escreveu para jornais e revistas como Atlântico, Variante, Diário Popular, Aventura e Mundo Literário (1946) textos que ficaram esquecidos, como esquecida ficou uma importantíssima entrevista que ele deu a Castro Soromenho para O Século Ilustrado de 10 de Janeiro de 1942, a pretexto da sua permanência no Brasil, em que demonstra enorme perspicácia quanto a valores estéticos de futuro, como o escritor Lúcio Cardoso, autor de Crónica da Casa Assassinada (1958), e o artista multimédia Flávio de Carvalho, e classifica Macunaíma como «o livro mais notável que se publicou de há vinte anos para cá em língua portuguesa», e só teria edição em Lisboa… em 1998.

historia

Páginas duma Introdução a uma História da Arte, publicada em 1948 e nunca reeditada. A pedagogia, a elevação cultural e o debate de ideais foram esforços centrais de António Pedro, e não apenas no Teatro, como é mais conhecido.

O desleixo com que sucessivos estudiosos se ocuparam da memória de António Pedro foi ao ponto de terem passado ao largo de um extenso artigo que precisamente o máximo modernista brasileiro Mário de Andrade lhe dedicou no Diário de São Paulo a 12 de Agosto de 1941, a propósito da exposição do «notável pintor» (sic) na galeria da revista Clima, e que consta dum notório dossier de clipping conservado na Biblioteca Nacional…

A atenção de António Pedro àquele país vinha de trás. Thomas de Mello, seu parceiro na Galeria UP, de 1932 a 1934, nascera no Rio de Janeiro, de uma família recheada de talentos literários e artísticos. Na revista Mensagem. Manifesto de uma geração, com a qual esteve envolvido, em 1938, há colaboração de Giuseppe Ungaretti e Jorge de Lima, dois poetas brasileiros a que estaria particularmente ligado na década de 40. Inversamente, Rui Mário Gonçalves não teve dúvidas de que «alguns» dos Poèmes dimensionnels de António Pedro, expostos em Lisboa em 1936, e os 15 Poèmes au hasard, do ano anterior, «são percursores do neoconcretismo e da poesia visual surgidos no Brasil durante os anos 50» (Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, p. 613). Numa entrevista ao brasileiro Clóvis de Gusmão em Abril de 1941, falou do «velho desejo» de ir ao Brasil e conhecer Adalgisa Nery (a musa de Drummond de Andrade), Tarsila do Amaral, Manoel Bandeira, Jorge Amado, e Cândido Portinari — cuja passagem por Lisboa, em Junho de 1946, ele saudaria n’O Mundo Literário com o aviso «Pintor brasileiro com lugar marcado entre a primeira dúzia dos pintores contemporâneos […] Não passam a toda a hora por esta Lisboa à beira-asneira plantada personagens da sua categoria.»

Cabe lembrar que foi no Brasil que António Pedro escreveu (e desenhou) Apenas uma Narrativa. A própria explicação prefacial do título do romance invoca, aliás, um debate brasileiro em curso acerca de géneros literários, levando-o a citar Mário de Andrade («Romance é aquilo que o seu autor resolver designar assim»). 

Apesar de ter sido considerado por Eduardo Lourenço «um milagre sem repetição», o único romance de António Pedro teve de aguardar 35 anos por uma primeira reimpressão (Estampa, 1978) e depois quase outro tanto por uma segunda (Quasi, 2007) — e agora não figura sequer numa colecção dita «representativa do melhor da literatura portuguesa» lançada pela sucursal brasileira da editora Tinta da China, com o patrocínio dum inesperado Turismo de Portugal e do sempre sonâmbulo Instituto Camões.

O projeto da revista Variante, que desenvolveu pouco depois da volta do Brasil, visava claramente uma aproximação dos escritores e artistas portugueses e brasileiros, e o seu colapso após dois números, mais do que à «falta de colaboradores nacionais à altura sonhada para a revista» (interpretação algo simplista de J.-A. França, depois repercutida por comentadores), deve ser atribuído ao contraste com os grandes meios do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro e do seu congénere brasileiro postos à disposição da concorrente Atlântico, criada em simultâneo e num período histórico de evidente carência. Ainda assim, no editorial do segundo número, haveria de escrever: «Não são apenas sucessos de livraria as revistas e os livros de guerra e, assim, é possível supor que o homem se cura de preferir informar-se sobre como se destrói uma civilização, a saber como ela se cultiva, renova e mantém» (itálicos meus).

16. AP e MMPC

António Pedro e a atriz brasileira Maria della Costa, em Moledo do Minho, década de 1950.

O fotógrafo e artista plástico Fernando Lemos, 90, escreveu alguns depoimentos sobre o seu amigo António Pedro que vale a pena reler nesta ocasião — tanto mais que ele é hoje o único sobrevivente dos grandes exilados do pós-guerra, como Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro, sem esquecer Victor Cunha Rego. Referindo-se a Moledo do Minho, diz Lemos que

«Ali o Gigante foi-se aninhando num exílio demorado. O homem das sete léguas, avejão lírico que não cabia dentro de si nem na medida dos outros, ali foi engendrando a sua base e o seu ponto final. | Andou no Brasil como pintor, na África como jornalista, pelas várias Europas como intelectual, sempre insatisfeito, curtindo a mágoa de ser Gigante»
Fernando Lemos

(«Em sua memória, Comércio do Porto, 12 de Setembro de 1967; agora reproduzido in As Artes entre as Letras, cit.). Mas é sobretudo num escrito de 1981 que encontramos a chave para entender quanto a passagem de António Pedro pelo Brasil em 1940-41 poderia ter significado algo mais. Diz Lemos: «deveria ter aberto, se por aqui mais tivesse ficado, um canal não só amplo como interdisciplinar para o trânsito de manifestações significativas». Lamentando que «uma lacuna a mais não tenha permitido que uma figura expressiva e rara como a de António Pedro houvesse interligado os traços culturais indispensáveis para a criação de um real intercâmbio, afirma convictamente que ele «teria sido o mais brasileiro e o mais moderno dos portugueses transplantados para este continente», pois «a sua personalidade envolvente, lúcida, refinadamente selvagem é também o jeito quente nestas terras americanas», além das «suas inquietações mágicas de libertação surrealista, a mesma que faz de qualquer leitura dos grandes escritores latino-americanos uma lembrança de Apenas uma Narrativa».

Em tributo à memória de António Pedro e demonstrando o muito que há por fazer por ela, publicamos adiante dois quase-inéditos que ele dedicou ao Brasil, aguardando a exposição que o Museu Nacional Soares dos Reis lhe vai consagrar — em data ainda não divulgada, apesar da proximidade; e tratando-se duma reposição —, as conferências que lhe serão dedicadas no Centro Cultural de Moledo e na Fundação Eng. António de Almeida, e em particular a de Júlio Gago no Castelo de São João, na Foz do Douro, a 24 de Outubro, ele que tem sido, nas redes sociais, um quase-biógrafo de António Pedro, de quem foi colaborador no Teatro Experimental do Porto.

O Rio de Janeiro visto por António Pedro

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In Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 26 de Abril de 1941.

Dedicado «ao Jorge de Lima».

Título original: «Última folha de um diário de viagem».

Quando eu cheguei à cidade rolou-me a cabeça nos pináculos e nos vales e foi um espectáculo maravilhoso. Os olhos rolaram-se-me nas árvores antigas e foram pássaros e folhas brilhando húmidas nos galhos musculosos. Sabes? Havia jardins e gaiolas, peixes e laranjas por toda a parte. Nos jardins as árvores eram velhas e indiferentes. Tinham varises e às vezes sangravam dos cabelos. Via-se que sabiam histórias, mas não podiam contá-las. Tinham as copas lá em cima muito altas e havia em todas um meneio de desespero que era difícil de adivinhar.

Depois toda a população se pôs a dançar os batuques do carnaval no côncavo do meu estômago. Encheram-se de vazio e poeira, com uma alegria que não era de ninguém. Vestiram-se todos de poetas, com folhas e cetins.

Ao fim eram como frutos e (eu ri!), às árvores apetecia-lhes tê-los dependurados: veio depois um poeta verdadeiro à minha casa. Semeou-me nas janelas ladrões enforcados e bailarinos. O poeta verdadeiro fez o que as árvores não tiveram coragem de fazer. Eu tenho a preguiça das árvores e os sonhos do poeta.

Agora, na minha casa há um cheiro de primavera. A máquina bonita do carrocel parado, que é só um ninho de gatos, sai da cortina com seus arames inúteis para os meus olhos cansados. O calor esvaziou-me a consciência e esta imaginação adormecida. Quebrou no meu aquário um arranha-céus e o peixe que sobrou da hecatombe anda de andar em andar e vê-se que não sabe a cor das estrelas. Os limos das minhas mãos já são como os dos navios do fim duma viagem, e tornam venenosas as ostras e os caramujos. Quanto ao Cristo do Corcovado, ainda mais me separa das Igrejas feito árvore de luz entre a neblina, na harmoniosa escabrosidade do monte.

Ando quase doente. A boca recusa-se-me ao sabor das ervas que outro verde esquentou e outro sócio endureceu para o pasto deste onagro, filho do meu pai e da minha mãe, onde cavalgo — Quixote e Sancho — à busca de moinhos que não há. O sol cegou os meus olhos para outra luz que não seja esta de contornos agrestes e de sombras recortadas.

0. Autoretrato 1943

Autorretrato de 1943

Não sei que fome me tomo de alçar até ao céu as janelas do quarto, que não tenho de forrar tudo de veludo e de apagar as luzes, de me arrancar os olhos e de me pôr a adivinhar-me neles.

Eu sei exactamente do que se trata.

Quero saber se eu em verdade serei apenas aquela árvore que se move, sem folhas e sem frutos, só com flores e vestigens. Se serei aquela alga do mar que as correntes arrastam à babugem de todas as areias, e foi enfeite de embarcações e foi brinquedo de banhista e foi cama de caranguejo e esconderijo de polvo e serviu de leito ao amor de todos os bichos do mar e há-de ser estrume da terra quando a colherem um dia. Quero saber se em verdade serei aquele lobo que comeu o cordeiro e depois só podia pastar naquele vale estéril em que só havia cardos.

Sabes? Depois desta viagem só poderei fazer outra viagem. Sinto já nos ossos o meu cansaço de fim de mundo e aqui este sol vai amadurecer-me a carne por completo.

Depois, será lindíssimo o meu fim.

Hei-de procurar uma planície sem sombras. Hei-de plantar-me no meio, enorme, como uma doença da terra. Depois escorregar-me-ão as feições até ao chão. Ficarei aí como uma mancha até às primeiras chuvas. Se vieres por esse tempo colhe num vaso alguns torrões. Devem servir para fazer crescer as orquídeas e os fetos.

Amor pelo Brasil, por António Pedro

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In Diário Popular, Lisboa, 23 de Setembro de 1942.

Título original: «Porque manda o coração».

Este artigo seria elogiado, dois dias depois, no jornal carioca A Manhã.

Não é mania, não. Nem jeito de moda literária, nem sequer reconhecimento. É mais do que isso: é amor.

É que falar do Brasil para quem partiu fremente de curiosidade e voltou saudoso como de nenhum lugar, para quem quis ir por três meses e por lá ficou quase um ano, apaparicado de mimos que não merecia, pode parecer querer pagar com piropos o que se recebeu. E não é verdade.

Quando se chega à Guanabara, o coração vai pesado de suspeita e é só o deslumbramento. Três mil anedotas e o chalé de azulejo, luzidio e torpíssimo da aldeia fundamentam em nós mais que uma dúvida — o descrédito.

O brasileiro é aquele brutinho camiliano nascido em Famalicão e que lá torna, um dia, de chapéu de palha, pronúncia estropeada, a dar dinheiro aos bombeiros para que lhe inaugurem o retrato ao som da filarmónica local. O Brasil, uma África de febres sem o mistério dos elefantes e dos leões. O resto, coisas vagas.

Uma literatura, talvez, talvez o mais que nos disseram com tal sabor a melodia de ouvido, com tal gosto a frase feita que o coração não tem jeito de acreditar. Nem sequer na boniteza se acredita até ao fim, e se nos dizem ser o Rio a cidade mais linda do Mundo, levamos insensivelmente a afirmação à conta de intercâmbio. Mas é então que a Guanabarra tira a desforra das dúvidas e do prejuízo — esse espectáculo magnífico, arquicenográfico da terra e do mar, esse deslumbramento da cidade, essa misteriosa apoteose do céu.

Eu sei que hoje as coisas já não são bem assim. Esta dúvida, esta suspeita, esta tradição da anedota têm-se diluído, passado mais, pelo esforço benemérito e teimoso de uma meia dúzia, pela intervenção calorosa e eficiente da pública amizade dos governos, pela actividade meritória dos seus organismos de propaganda.

Os livros, as revistas que desabam aos milhares das casas editoras do Rio, de São Paulo, de Porto Alegre, a inundar os escaparates dos livreiros de Lisboa, do Porto, das cidades e vilas mais recônditas de Portugal e das suas Áfricas, arredondam a noção de tamanho, de prosperidade, de multidão que as quantas fotografias reproduzidas deixam antever como espectáculo grandioso.

Mas repeti-lo não é jeito nem mania.

A Guanabara é espectáculo, mas o Brasil não é só paisagem. O brutinho camiliano foi o que se contentou de uns centos de contos, e se veio embora para deslumbrar com eles a aldeia em que nasceu. Lá perdia o pé, por isso veio. Lá é o portuga, cá o brasileiro. Lá e cá, foi ele quem deu origem às anedotas iguais. Lá e cá é um pobre-diabo sem segurança e sem significado. É parente talvez, talvez irmão, daquele minhoto de bigodaça loira, capaz de trabalho como um burro de carga, capaz de todos os sacrifícios mas a quem, nos olhos claros, o mar deixou o segredo ambicioso do semeador de continentes, seu antepassado, que foi marinheiro de Vasco da Gama. É parente, talvez, mas degenerou. O outro, o que dá gosto, não volta. Quando planta os pés e os filhos na terra acolhedora do Brasil, fica brasileiro e não deixa de ser português. E com essa gente admirável, vasada, há séculos, em Santos e na Bahia, no Rio de Janeiro e no Pará, os melhores e os mais fortes, os mais capazes de ambição dos moços do Minho, de Trás-os-Montes e da Beira, com seus filhos e netos, não se faz, não poderia ter-se feito um país de modinhas e folclore. Fez-se o Brasil.

E o Brasil é um renovar permanente de iniciativas e de esperanças. Colaboram nelas a terra e o subsolo, tornam-nos os homens possíveis pela confiança e pela vontade. E o Brasil é um renovar permanente de realidades.

É uma agricultura a que só faltam braços para poder saciar a fome do mundo.

É uma indústria que floresce e cresce num ritmo inacreditável, transforma tudo e melhora e modifica e constrói e fabrica, e só não aumenta na medida das suas possibilidades, porque para as suas possibilidades nunca mais acaba de chegar o dinheiro necessário.

É uma literatura viva, saída de coisa nenhuma, tomada de assalto a uns bonzos de imitação, sem interesse nem surpresa, por uma juventude sôfrega de espírito e radiante de originalidade.

É uma pintura como em toda a América só no México encontra parceria.

É sobretudo uma gente sensível, acolhedora, que guardou da nossa Europa latina uma noção de medida e de simpatia humana com que tempera e amacia o cansativo nervosismo americano, de que deixou também contagiar-se para seu bem.

É assim o Brasil.

Liga-nos a ele o sangue, e esta voz do sangue não é imagem literária — sente-se na medida em que nos comove a sua beleza, no orgulho em que se assiste ao seu progresso espantoso, na fraternidade moral com que acompanhamos, quase sem querer, as suas atitudes.

Podem os nossos interesses não coincidir com os do Brasil. Basta que não colidam e vibrará sempre em uníssono com a dele a nossa sensibilidade. É que se quer ao Brasil como à carne da nossa carne. E não é mania, não. Nem jeito de moda literária, nem sequer reconhecimento. É mais do que isso — é amor.

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