Jornalista mexicana, Lydia Cacho ocupou-se a seguir o rasto das máfias globais que gerem a prostituição em todo o mundo. Turquia, Israel, Japão, Camboja,Birmânia, Argentina, México… Passou cinco anos a viajar, disfarçada de bailarina, prostituta, freira e traficante para chegar aos sítios mais impensáveis onde se pratica a escravatura mais indigna – cruzando-se frequentemente com pedofilia, homicídios e outras formas de violência difíceis de descrever.
O livro fez furor no mundo, e para isso também ajudou o prefácio de Roberto Saviano – acaba de ser lançado em Portugal pela editora 2020. Este é um relato de uma situação global e é também uma denúncia de um crime que ainda é convenientemente ignorado. O Observador avança, em pré-publicação, o capítulo dedicado ao Japão.
Japão: A Máfia das Gueixas
Tóquio unplugged
Rodha é uma bela mulher de pele de alabastro e com uma cabeleira ruiva que nenhuma tinta artificial conseguiria imitar. Enquanto fala, os seus grandes olhos verdes pestanejam ao ritmo das palavras mais intensas. Visita-me no meu escritório de Cancún e não só está disposta a contar -me a sua história, como chegou com um donativo para o refúgio de mulheres e meninas que dirijo. A sua capacidade de compaixão parece inesgotável. Até me ter inteirado da sua história e viajado até ao Japão, não conseguia compreender cabalmente por que razão esta norte-americana dedicava a sua vida e a sua obra a uma missão de justiça. Foi assim que me relatou o seu encontro com a cultura japonesa:
“A liberdade, quando não conhece limites, pode ser tão destrutiva quanto perigosa. Acabava de fazer 18 anos e já me tinha libertado dos meus pais. Sentia-me tão viva, tão excitada com essa liberdade recém-adquirida: era um dia pelo qual esperava há tanto tempo! Toda a minha vida tinha estado numa redoma de cristal. A minha continha família e religião, e mais nada, não conhecia nada fora dessa redoma. Escola cristã, ir à igreja três vezes por semana, «hora da Bíblia» diária; estudo semanal das Sagradas Escrituras… A minha vida passava-se entre a história do bem e do mal, mas eu não conhecia absolutamente nada da maldade real.
Tinha a mentalidade de uma menina de 5 anos, em termos de maturidade para compreender o mundo real. A minha grande fragilidade foi não ter sido educada para enfrentar o mundo humano para lá dos preceitos religiosos e das fantasias televisivas; não me proporcionaram conhecimentos e nunca desenvolvi ferramentas para me proteger da violência. A minha liberdade despertou uma necessidade de viajar, uma urgência que não podia ser travada.
Quando fiz 17 anos, decidi que aos 18 viajaria para o Japão com um contrato para cantar. Tinham-me descoberto e sabia que devia aproveitar a oportunidade. Contra as recomendações de toda a família, fiz as malas e preparei-me para explorar a Ásia com a minha voz e a minha música. Os meus pais estavam assustados. A princípio, recusaram, mas depois o meu pai encarregou-se de analisar o contrato e de se assegurar de que não me exigiriam usar minissaia ou roupa provocante para cantar. A minha primeira viagem foi um sonho. Fiquei fascinada com a cultura e os costumes japoneses, embora depressa viesse a descobrir que os seus sorrisos artificiais e os seus modos amáveis são uma forma de hipocrisia social. Eles veem os norte-americanos como uma sociedade sem orgulho e pensam que somos incapazes de conter as nossas emoções, razão por que nos desprezam, mas isso só aprendi muito depois. A minha primeira viagem fez -me crer que tudo era belo e que eu poderia triunfar.
Voltei para casa na minha pacata vila do Sul dos Estados Unidos e vi um anúncio no jornal em que procuravam cantoras e hospedeiras no Japão. A agência era diferente da primeira, mas atraiu -me porque oferecia muito mais dinheiro.”
O clube noturno onde Rodha chegou a trabalhar era elegantíssimo. Sentada ao lado de um rico empresário japonês, enquanto bebia um uísque com Coca-Cola, ia tentando responder à pergunta dele garantindo-lhe que, efetivamente, toda a penugem do seu corpo era do mesmo vermelho brilhante da cabeleira. Depois chamavam-na de outra mesa e ela continuava na conversa com os distintos clientes; no entanto, os dias passavam e ainda não a tinham deixado cantar, dizendo-lhe para esperar. Uma semana depois, começaram a chegar os yakuzas. Muitas jovens que se aproximam das elites de mafiosos ficam impressionadas com o ar misterioso e o luxo que os rodeia. Assim o relata Rodha:
“Fiquei completamente aturdida: «Incrível! Mafiosos a sério!», disse para mim mesma. «Como nos filmes!» Mas o meu cérebro de adolescente não estabeleceu uma ligação entre os mafiosos verdadeiros e a maldade humana mais cruel. Mais tarde, demasiado tarde, percebi que nessa noite estava a ser oferecida aos compradores. Era um clube de venda de escravas finas.”
A jovem tinha assinado um contrato para cantar e, eventualmente, gravar um disco. No início, fazia apenas de acompanhante, mas estava encantada: as bebidas eram servidas gratuitamente e o ambiente era sofisticado. Aos 18 anos, julgou que estava a entrar na vida adulta. Porém, à medida que as semanas iam passando, começou a sentir -se aborrecida e inquieta, e exigiu que a levassem ao clube onde deveria cantar — como na primeira vez.
Reclamou que não estavam a cumprir o contrato de trabalho, o mesmo que o pai tinha esquadrinhado. Pouco a pouco, foi-se revelando o princípio do pesadelo. O seu advogado tinha ficado com o visto e o bilhete de regresso, argumentando que precisava deles para obter uma autorização de trabalho. Além disso, em vez de lhe darem um apartamento como estava escrito no contrato, mantinham -na hospedada num hotelzito cujo quarto era pouco maior do que um armário. Como se isso não bastasse, não havia uma única pessoa norte -americana perto com quem pudesse falar: estava só.
Uma madrugada, quando os clientes já estavam a ir-se embora, uma gueixa adolescente chamada Miko convidou-a a dançar noutro clube:
“Surpreendeu-me, porque as gueixas são más e déspotas com as estrangeiras. Como a Miko mal me dirigia a palavra, fiquei espantada com o convite, mas senti-me lisonjeada e pensei: «Talvez agora goste de mim e poderei ter uma amiga!» E assim aceitei ir com ela, crendo que o facto de outras jovens adolescentes japonesas me verem com a gueixa as faria aproximarem-se de mim. A maioria das acompanhantes eram japonesas, só havia uma menina chinesa muito bonita, outra menina das Filipinas e eu. Chegámos a um clube no sexto andar de um prédio. Quando entrei com ela, pareceu -me estranho que não houvesse ninguém a dançar; de facto, havia apenas um grupo de dez homens, todos japoneses. Notei que à volta das mesas redondas estavam sentados os yakuzas, que atuaram como se estivessem à nossa espera. Reconheci dois deles que tinham estado antes no «nosso» clube. Estava absolutamente fascinada com aqueles mafiosos elegantes. Olhava para eles como se fossem uma novidade, e para mim eram, com os seus dedos mindinhos mutilados [Para pedir perdão ao chefe da máfia quando cometem um erro, os yakuzas cortam a si próprios o dedo mindinho e entregam lho em sinal de fidelidade. Só assim são perdoados]. Na minha mente imatura, não conseguia vê-los como eram na realidade. O seu poder e riqueza são impressionantes, e eu, como outras adolescentes, deixei -me levar pelo assombro desse poder. Em vez de uma ligeira vénia que todos os japoneses costumam fazer em jeito de saudação, as pessoas saúdam os yakuzas quase beijando -lhes os pés.”
Depois de ouvir a história de Rhoda na América, fui ao Japão, onde segui as pistas dos bares e rotas onde operam os membros das yakuzas. Queria conhecer o ambiente que ela descrevia. Eram nove da noite. Caminhava pelo bairro de Ginza, o equivalente japonês da Quinta Avenida de Nova Iorque. Sabia o que procurava. Passeava lentamente com a minha máquina fotográfica e a de filmar. De repente, vi sair três gueixas jovens de uma viela e aproximei-me. Seguiram-nas dois homens de fato preto, saídos de uma porta que nada indicava ser vigiada por um segurança alto e impecavelmente vestido. Decidi filmar a cena e imediatamente o segurança dirigiu-se para mim num tom furioso. Disse-lhe que era uma turista e que estava a filmar a minha viagem. «Nihongo wakaranai» («Não sei falar japonês»), disse-lhe. Depois perguntei-lhe em inglês com ar de ingénua: «Porque é que isso o incomoda?»
Ele limitou-se a agarrar-me pelo braço, levou-me até à avenida e disse-me em japonês que desaparecesse dali. Percorri dois quarteirões e entrei num pequeno restaurante para ver o material que tinha recolhido, comer qualquer coisa e retomar o fôlego. Mais tarde, quando perguntei a um polícia se aquele era um bar yakuza, ele disse-me que provavelmente seria, mas que não o podiam provar, porque a máfia «não desrespeita a lei».
Rodha contra os dragões
“Eu e a Miko estávamos sentadas, rodeadas pelos mafiosos, e eu sentia-me impressionada por homens como aqueles, como que saídos de um filme, quererem divertir-se comigo. «Que aventura!», pensei. Pediram-me que cantasse uma canção em karaoke e cantei a única que conheço em japonês. Encantada com os aplausos, sentei-me a tomar a bebida que tinham pedido para mim. Quinze minutos depois de a beber, senti-me muito pesada. Nunca tinha experimentado essa sensação ao beber álcool. Algo estava errado, pois imediatamente me senti como se me tivessem injetado cimento nas veias. Dois yakuzas ergueram-me nos braços e levaram-me para o elevador. Não conseguia compreender o que estava a acontecer, falava-lhes em inglês e não me respondiam. Onde estava a Miko? Porque é que o prédio andava à roda? Já dentro do elevador, deixei de sentir as pernas, os joelhos cederam e um dos yakuzas pegou em mim ao colo como se eu fosse uma criança.”
A jovem estava consciente, mas o seu corpo mantinha-se paralisado. Ao sair, ainda viu uma grande fila de Mercedes-Benz, mas logo a seguir perdeu a consciência. Deixou-se ir, aterrorizada; bem no fundo, sabia que algo estava errado, muito errado. Mais tarde, viria a descobrir que a tinham drogado para participar numa cerimónia sexual.
“Acordei no meio de um nevoeiro mental, completamente vestida, sentada num sofá. Olhei em volta. Era uma suíte impressionante, do mais luxuoso que já tinha visto. Havia uma enorme cama redonda ao centro, sofás, uma sauna e o que parecia uma cabina de banho turco. Senti-me um pouco mais tranquila: talvez o álcool me tivesse enjoado e aqueles homens tinham-me ajudado a subir até à sua suíte para descansar um pouco. Posteriormente, surgiram diante de mim vários yakuzas nus, apenas tapados com uma toalha à cintura [Em todos os prostíbulos e salões de massagens do Japão, os homens tomam banho antes de terem sexo com as prostitutas]. Tinham o corpo completamente tatuado. Sentada no sofá, o medo apoderou-se de mim, senti-me consumida pelo terror. Finalmente, vieram-me à memória as palavras do meu tio Jim. Ele não queria que os meus pais me deixassem ir para o Japão, insistia que lá levavam as jovens para torná-las escravas sexuais. «Escravatura branca!», assim lhe chamou ele. Sobressaltada, levantei-me de sopetão e corri para a porta. Antes que me desse conta, três yakuzas detiveram-me, um deles bateu com a minha cabeça contra a parede e ouvi o meu crânio a estalar. Não aguentei mais e desmaiei.”
Quando Rodha acordou, estava nua na cama com os olhos vendados. Obviamente, os homens que a tinham violado não queriam ser reconhecidos. Dois agentes do FBI que entrevistei sobre este caso garantiram-me que a consistência da história de Rodha e a coincidência detalhada com outros testemunhos das poucas norte-americanas resgatadas dos yakuzas lhes tinham fornecido elementos suficientes para entender o grau de crueldade desses mafiosos. Para realizarem uma cerimónia de união entre eles, escolhem uma mulher que lhes serve de objeto ritual.
“Tenho a certeza de que o primeiro que me violou era o chefe da seita Yamaguchi-gumi, designado pelo número 0293845 0934. Era à época o chefe de cerca de 38 mil membros da seita de yakuzas. Durante a noite, a venda caiu, literalmente, dos meus olhos. Aquilo não podia estar a acontecer-me. Eu era mesmo uma boa rapariga. Na escola secundária, tinha ganhado os concursos de sensibilidade e talento artístico. Lembro-me de chorar quase em silêncio enquanto se revezavam. Dizia para mim mesma: «Mamã, mamã, por favor», mas só ouvia as gargalhadas masculinas. Até que por fim, quando já não podia mais, comecei a gritar o nome de Jesus. Eles olharam uns para os outros, tentando entender o significado das minhas palavras. «Meu Deus, ajuda-me!», continuava a gritar. Suponho que o nome de Deus fez que um se irritasse muito, pois esbofeteou-me com força. Os meus gritos mais pareciam sussurros, devido ao medo, ao cansaço e à droga.”
Rhoda contou a sua história uma centena de vezes: com uma valentia fora do comum, é uma das poucas sobreviventes dos yakuzas que foi capaz de falar publicamente, de ajudar as autoridades com dados exatos, nomes e descrições de lugares e pessoas. Porém, os efeitos do stresse pós-traumático são nela evidentes. Uma vítima não pode reviver continuamente todos os pormenores da sua história na crença de que isso não a afeta e sem parar para procurar curar-se. Rhoda está consciente disso e nutre a sua força com a fé religiosa. Está convencida de que Deus lhe permitiu sair viva do Japão para se dedicar a salvar outras jovens como ela. Depois do nosso encontro, escreveu-me uma carta:
“Nessa noite morri. Foi a 21 de abril de 1989. Quem sou desde então até hoje, em 2007? Não sei, a única coisa que sei é que sou uma criatura de Deus. Durante 24 horas, cerca de 40 homens violaram-me de todas as formas possíveis. Um deles tinha uma fixação por meninas e embalava-me como se fosse uma bebé, meteu -me no jacúzi e lavou-me delicadamente enquanto cantava baixinho, como um psicopata. Era careca, musculoso e com a típica tatuagem dos yakuzas por todo o corpo. Tudo aquilo era aterrador. Eu, que cresci num lugar religioso, protetor, estava ali nas mãos daqueles homens! A esse, faltavam-lhe dois dedos. Jamais imaginou que aquilo lhe custaria outro dedo. Eu não estava disposta a deixar que escapassem impunes. As coisas que me aconteceram durante os três dias seguintes dentro daquela suíte são inenarráveis, inconcebíveis para a maioria dos seres humanos. Cada um tinha as suas próprias perversões. Alguns introduziram-me objetos, de tal forma que tive graves hemorragias. Até à data, as cicatrizes que me deixaram nos genitais impedem-me de ser mãe.”
Três dias depois, enquanto os yakuzas dormiam na suíte, ela levantou-se e, nua, saiu a correr para a rua. Começou a bater às portas da vizinhança sem saber como pedir ajuda, e a única coisa que lhe ocorreu foi gritar: «Yakuza, yakuza!» Até que uma menina lhe abriu a porta de um apartamento e ela apressou-se a entrar. A pequena chamou imediatamente a polícia e cobriu o corpo dorido de Rhoda com uma pequena bata tipo quimono.
O relato da jovem sobre a forma como foi tratada pelos polícias japoneses é praticamente idêntico aos que escutei no México, na Colômbia, na Guatemala, na Tailândia e na Rússia: são insensíveis, não têm empatia pelas vítimas e transmitem-lhes a noção de que são prostitutas e não têm direitos. A polícia japonesa costuma humilhar em público as jovens submetidas ao comércio sexual. No caso de Rhoda, o mais impressionante foi que, depois de a tirarem do hospital, a levaram ao sítio onde tinha sido vendida para que ali mesmo reconstruísse «a sua versão dos factos». Espancada, ferida e aterrorizada, vestida apenas com uns chinelos e a bata que lhe emprestara a menina que a resgatou, teve de testemunhar.
“Recordo-me de ter subido as escadas pelas quais tinha escapado. Agora ia acompanhada de polícias. Ao chegar ao andar da suíte, havia uma horda de repórteres, câmaras e microfones. Num inglês muito básico, atacando-me com as suas câmaras e microfones, faziam-me mil perguntas, e eu apenas conseguia olhar para eles. Tinha a mente em branco e não conseguia falar. Entrei em estado de choque e estive assim durante um ano. Nessa noite, seminua, coberta apenas pelo quimono, murmurei uma ou duas respostas, mas não me lembro do que disse. Não percebia como tinham chegado ali os repórteres. A polícia abriu a porta da suíte e levaram as provas, como lençóis cheios de sangue, objetos do lixo, etc.”
As três semanas seguintes foram uma loucura. As autoridades levaram Rhoda para um abrigo de segurança situado a duas horas da cidade. Passava os dias em declarações à polícia. Obrigaram-na a recostar-se sobre uma mesa para que explicasse ao pormenor, frente aos oficiais de justiça, tudo o que lhe tinham feito. Reviu centenas de fotografias de criminosos e conseguiu identificar vários yakuzas. Quando conseguiu superar o choque nervoso, telefonou aos pais: «Levei mais de duas semanas a atrever -me a telefonar aos meus pais, tal era a vergonha que sentia pelo que me tinha acontecido. Enquanto tudo isto se passava, ninguém se lembrou de me dizer que havia uma embaixada norte -americana com pessoas que falavam a minha língua», diz Rhoda, dececionada. Mas o seu atrevimento não foi em vão, pois graças a ela muitas organizações internacionais, incluindo japonesas, assumiram como alvo da sua atenção as estratégias operacionais das yakuzas. Como eu própria pude corroborar, estão muito bem organizadas e têm mais força e poder do que nunca. O seu negócio principal é o comércio sexual.
Escrevo um e-mail a Rodha para despedir-me e dizer-lhe que estou pronta para empreender a minha viagem ao Japão. Carinhosa e emocionada, dá-me pistas onde procurar os traficantes. Em jeito de despedida, envia -me uma canção impressionante, gravada para exorcizar os demónios yakuzas da sua mente. A canção chama-se «Dragons».