Geovanna Gonzalez quer ser artista, encontrar a fronteira entre aquilo que provoca ansiedade e é vazio e aquilo que é real. Com a mão direita segura um copo de vinho que leva à boca vagarosamente, dando pequenos goles. “Interessa-me explorar a tensão entre o sintético e o natural”. Dos lábios pintados de roxo exala um odor suave e adocicado, apenas ligeiramente alcoólico. “Entre o que é plástico, tecnológico e feito pela mão humana e a natureza”. O volumoso cabelo encaracolado está penteado todo para o mesmo lado, revelando, do outro, um undercut. O peso do corpo inclinado inteiramente sobre a parte direita. Cabelo, ombro e joelho alinhados numa atitude natural de descontração.
Licenciada em Belas Artes pela Otis College of Art Design, em Los Angeles, Geovanna, 25 anos, não viu grandes hipóteses de encontrar um lugar na cidade dos anjos caídos, dos sonhos estilhaçados no passeio da fama. Mas ouviu falar de um oásis boémio e artístico no centro da Europa, ponto de passagem e de abrigo para os perdidos e proscritos desde o início do século XX – dos hedonistas que gozavam a vida como num cabaret, em festas decadentes antes de o terror se abater sobre o continente, ao andrógino David Bowie durante os anos 70. Uma cidade onde os jovens podem expressar-se e fazer arte, fugindo ao emprego de 40 horas semanais, mas conseguindo dinheiro suficiente para pagar um quarto e viajar. Há um ano, a norte-americana de origem porto-riquenha e costa-riquenha seguiu a ansiedade de querer explorar, deixou para trás a ansiedade de um mundo que sentia cada vez mais fechado e veio para Berlim.
Durante o fim de semana em que a cidade comemorou os 25 anos da queda do muro, duas obras da artista francesa Perrine Lacroix, sobre os tempos da República Democrática Alemã (RDA) e da Stasi, foram exibidas na Erratum, uma galeria instalada numa cave de um prédio no meio de Kreuzberg, um dos bairros que mais facilmente se associa à cena artística e criativa berlinense. Em Kreuzberg há galerias improvisadas em caves, como esta, mas também em bares e em halls de entrada de casas privadas.
Em 1989, Winfried e Sabine Freudenberg sonharam com a liberdade e idealizaram uma fuga retirada do imaginário infantil. Um passeio de balão. Winfried, engenheiro elétrico na Alemanha de Leste, mudou-se para Berlim e procurou trabalho numa companhia energética, garantindo desta forma acesso a todo o gás necessário para o seu sonho. Com pequenos pedaços de polietileno, adquiridos ao longo do tempo para afastar suspeitas, o casal construiu um gigantesco balão de gás com 13 metros de altura e 11 de diâmetro. Na noite de 7 de março, Winfried encheu o balão no local onde trabalhava. Um jovem percebeu que algo se passava e avisou a polícia da Alemanha de Leste.
Surpreendidos, Winfried e Sabine recearam que o balão não tivesse ainda gás suficiente para permitir a fuga do casal e decidiram que Winfried seguiria sozinho. Mas, sem o peso de um segundo corpo, o balão atingiu uma altitude maior do que a calculada pelo engenheiro. Winfried esteve à deriva a 2000 metros de altitude durante horas, sujeito a baixas temperaturas. Às 7h30 do dia seguinte, o balão despenhou-se no subúrbio de Zehlendorf. O corpo de Freudenberg, a última pessoa a tentar transpor o muro, foi encontrado horas depois num jardim da zona.
Perrine Lacroix soube desta história em 2013 e focou-se na leitura poética que depois transportou para a obra em vídeo “Winfried”. “O material que eles usaram era tão frágil”, diz Perrine, olhos azuis, ternos e curiosos, sorriso tímido e pueril, como se estivesse novamente a descobrir a ironia melancólica da ideia dos Freudenberg. “Havia uma diferença enorme entre o material que usaram e o plano que tinham”. Perrine pegou num pedaço de polietileno e prendeu-o a uma janela, como se fosse uma cortina. Depois, filmou o efeito do vento e da corrente de ar no plástico, que primeiro se insufla, ganhando uma pujança delicada e depois se abate, ondeando como se fosse espuma.
A luz e o som desta instalação enchem a Erratum e servem de cenário aos jovens franceses, britânicos e norte-americanos que decidiram começar a noite de sábado aqui. Vestem casacões largos de malha, cheios de borbotos e buracos. Usam as calças acima dos tornozelos, o que permite revelar as meias grossas com padrões abonecados, como flocos de neve e animais. Enquanto bebem cerveja e vinho, comprados no local, passeiam pela galeria soturna de tetos baixos e conversam em grupo. Assistir a esta exposição temática é uma forma passiva de comemorar o aniversário.
Um minijob, um apartamento partilhado e a arte
Geovanna conhece este circuito. O seu trabalho já esteve exposto em algumas destas galerias, que frequenta assiduamente. Há tantos espaços destes em Berlim que a maior parte deles não é anunciado, mas passado de boca em boca. É como uma rede que alimenta e faz proliferar a arte e os artistas. Um aspeto importante de estar nesta cidade e de tentar fazer trabalho criativo passa por “sair da zona de conforto”, diz Geovanna, que dedica uma boa parte do seu tempo “a ser social, a esforçar-se ativamente por conhecer pessoas, por assistir a exposições”. É uma ideia simples: conhecer um amigo de um amigo e fazer um projeto com ele. Desde que está em Berlim conheceu muita gente. “Foi fácil conhecer pessoas e fazer coisas”, diz. Algo que, pensa, não seria possível fazer em Los Angeles, onde não existe o “sentido de comunidade” que encontrou na capital alemã. “Berlim é muito relaxada. Em LA ou se está no topo ou no fundo. Não há um espaço intermédio: ou és estudante, ou és um artista que vende cada quadro por 10 mil dólares (8 mil euros)”.
E para esta pintora, essa descontração foi um antídoto perfeito para a ansiedade que começava a sufocá-la. “Já não tenho tanto medo de fazer aquilo que quero fazer. Não me questiono. Ganhei esta confiança e sei que vou levá-la comigo para onde for”, diz Geovanna, a quem não preocupa, por enquanto, viver da atividade artística. “Se agora tivesse de me dedicar exclusivamente à minha arte, a pressão financeira iria afetar o processo criativo”. O trabalho num restaurante americano como chefe pasteleira durante três ou quatro dias por semana, onde recebe oito euros à hora, permite-lhe pagar os 300 euros de renda e despesas num apartamento em Kreuzberg, que divide com outras três pessoas, bem como o estúdio onde desenvolve as instalações e pinturas. O minijob de Geovanna – um emprego com um salário máximo de 450 euros em que os trabalhadores não têm de pagar impostos ou segurança social – liberta-a para a arte.
Nesse restaurante, Geovanna conheceu Eva Gonçalves, uma portuguesa de 31, designer. No mesmo local, as duas tornaram-se amigas de uma música israelita, um francês que quer ser fotógrafo, uma paquistanesa que estudou design, uma espanhola designer de interiores, uma lituana dançarina, um canadiano guitarrista e um inglês poeta. Em Berlim, o difícil é ouvir falar alemão, encontrar um berlinense. Nos últimos três anos, mais de 205 mil pessoas emigraram para a capital alemã. A maioria tem menos de 40 anos.
Uma armadilha
Eva Gonçalves chegou a Berlim em janeiro de 2010. Veio para um estágio não remunerado na revista Monokultur, onde até hoje continua como editora. Esta publicação existe há oito anos, tendo sido lançadas 37 edições. Cada uma delas com uma entrevista a uma figura conhecida do mundo da arte e da cultura. Como Tilda Swinton, Brian Eno, Ai Weiwei, Dries Van Noten ou David LaChapelle. É uma revista que aposta seriamente no design e na fotografia e que se serve de uma gigantesca rede de contactos para conseguir as importantes entrevistas. As vendas revertem exclusivamente para a produção da próxima edição. Cerca de 15 pessoas colaboram com a publicação. Nenhuma delas é paga.
Nos quase cinco anos em que vive na capital alemã, Eva chegou a trabalhar no tal restaurante americano. Um turno por semana, pago a oito euros à hora permitia-lhe pagar a renda de um apartamento partilhado com uma espanhola designer de moda. No início deste ano acabou por desistir porque o trabalho como designer já era suficiente para pagar as contas. Chegou a fazer publicidade, um trabalho bem pago, mas que também abandonou. “Não me interessa vender porcaria”, acaba por dizer Eva, aliviada, depois de procurar uma justificação. Esta portuguesa de cabelos negros e encaracolados, cortados acima do queixo, preza a possibilidade de desenvolver os projetos em que acredita. Como um livro de cozinha portuguesa para alemães que organizou com uma amiga e ilustradora alemã. Também rejeitou a proposta de trabalhar, em part-time, como assistente de uma designer reconhecida.
“Por agora quero fazer as minhas coisas. Se isso não correr bem, terei sempre essas oportunidades”. Neste momento, está envolvida na direção artística de um novo projeto: uma revista veganista para mulheres. O primeiro número deverá sair na próxima primavera e todo o projeto entusiasma Eva, que apesar de não ser vegan, diz gostar da consciência ética do movimento. Além disso, está a desenhar o website de uma amiga que faz joalharia e a preparar o projeto gráfico de um amigo que está a fazer um documentário sobre a resistência antinazi na Polónia. “Todos estes projetos… Amigos de amigos que conheci em Berlim”, diz.
A rede de contactos berlinense parece funcionar para Eva, que estima que no ano de 2014 tenha feito entre 1000 a 1500 euros por mês. Eva está prestes a mudar-se para um apartamento onde viverá sozinha. Uma casa espaçosa que lhe custará – renda e despesas incluídas – 490 euros. Eva conseguiu provar junto das finanças que fazia menos de 2000 euros por mês, o que a coloca no escalão inferior em termos de seguro de saúde. Vai pagar 180 euros por um seguro que cobre aulas de yoga e consultas de acupuntura. E que “é um descanso”, diz, porque considera que a saúde alemã funciona muito bem. Muitos dos jovens europeus que chegam a Berlim não conseguem pagar esta prestação, recorrendo, durante um tempo, ao Cartão Europeu de Seguro de Doença, que assegura a prestação de cuidados de saúde a cidadãos europeus em viagem. O passe mensal para transportes custa 70 euros, uma opção que pode facilmente ser deixada de lado numa cidade onde quase todos se deslocam de bicicleta.
Recentemente, a designer portuguesa soube que foi aceite na Caixa Social dos Artistas (Künstlersozialkasse, em alemão), uma ajuda estatal dada aos artistas que não consigam rendimentos suficientes para fazer descontos para a reforma e para situações de doença ou invalidez. No caso de Eva, o Estado criou uma conta em seu nome e paga todos os meses os 350 euros que correspondem a esses descontos. A designer paga apenas uma pequena parte.
“Com 1000 euros vives uma vida ótima”, diz, com consciência de que em Portugal “não teria a mesma flexibilidade a nível económico. O custo de vida é parecido com o de Lisboa, mas o nível de vida aqui é superior. O nosso Estado social não é verdadeiro. Onde arranjas um part-time onde te pagam oito euros à hora?”. A vida ótima de Eva inclui disponibilidade financeira suficiente para se envolver em projetos pessoais gratuitos. Como um clube do livro que organiza com Geovanna e a que chamou “Read what you want” e que quer reunir leitores em diferentes pontos da cidade para lerem e discutirem literatura. As duas amigas estão a preparar um encontro literário no Ringbahn, um comboio que desenvolve um círculo quase perfeito em torno do centro de Berlim.
Por tudo isto, Eva quer que Berlim seja a sua base a nível fiscal, apesar de não estar certa de adorar a cidade. “Por vezes fico farta”, dispara inesperadamente. Farta de um ritmo intenso, da loucura constante. “Há sempre uma festa. É uma cidade que acorda sempre depois das 10h”. Eva tenta sair apenas duas vezes por semana e trabalhar oito horas por dia: “É difícil manter o equilíbrio em Berlim”. A descontração e o espírito boémio da cidade escondem uma competição feroz. E o sonho artístico pode facilmente ficar pelo caminho. Com as ajudas estatais e os minijobs “não é difícil chegares a um ponto em que estás relaxado”, diz Eva, “mas podes perder a motivação para fazer mais”. Berlim não é exigente, mas pode ser traiçoeira.
“Uma armadilha”, diz a designer.
A Grécia da Alemanha
Noel Nicolaus marcou encontro com o Observador no Yaam, um clube na antiga zona leste de Berlim, junto ao rio Spree. O nome é uma abreviatura de Young and African Arts Market, apropriado para um ponto de encontro multicultural, onde berlinenses e estrangeiros se encontram para jogos de basketball, concertos de reggae e jantares africanos, ou simplesmente para se sentarem junto ao rio, em assentos de plástico como os que se encontram nos estádios de futebol ou em pedaços de tijolo colorido, pés no chão coberto de areia, aquecendo-se numa fogueira acesa num contentor de metal.
“Este é o tipo de bar que as pessoas esperam quando chegam a Berlim”, diz Noel, antes de entrarmos na parte coberta do clube, um espaço escuro, com as paredes pintadas de negro ou cobertas por graffitis. Este doutorando do Instituto de Antropologia Europeia na Universidade Humboldt investiga as migrações dentro da Europa durante a crise atual, centrando-se no caso concreto de Berlim e especializando-se nos emigrantes do sul do continente.
“Berlim é a Grécia da Alemanha”começa por dizer para desenhar o cenário que deu origem à sua investigação. Historicamente, o desemprego aqui é mais elevado do que no resto do país. Em Berlim não há dinheiro, diz Noel. “É uma cidade que tem de ser apoiada pelos Estados mais ricos como Baden-Württemberg e a Baviera”. Então, a emigração para Berlim não pode ser explicada pelos motivos tradicionais. “Quem quer melhores condições de vida vai para Estugarda ou Hamburgo. Não vem para Berlim”.
Utilizada como montra de duas ideologias em conflito depois da II Guerra Mundial, Berlim foi mantida próspera de forma artificial. As indústrias do leste eram financiadas pela RDA. À parte ocidental, onde foi levantada a obrigatoriedade do serviço militar, o que atraiu jovens de toda a República Federal Alemã (RFA), chegavam grandes quantias de dinheiro e subsídios atribuídos por Bona.
Depois da queda do muro, a grande maioria dos habitantes da parte leste mudou-se para a parte ocidental, deixando para trás cerca de 200 mil edifícios vazios e em más condições e indústrias falidas, uma vez interrompido o financiamento estatal. Alguns dos edifícios e fábricas abandonados foram ocupados por artistas independentes e ativistas que aí deram origem a espaços culturais e de criação artística, com cinemas, bares e salas de ensaio para músicos e bailarinos. Um dos mais famosos, o Tacheles, que acolheu artistas como a coreógrafa Sasha Waltz e Nick Cave, foi vendido em 2012, para dar lugar a um conjunto de apartamentos. Estes okupas tornaram-se o símbolo da criatividade berlinense depois da queda do muro.
Berlim continuava a atrair os outcasts, os hippies, os artistas pobres de todo o mundo. No início dos anos 2000, o novo mayor da cidade, Klaus Wowereit quis aproveitar esse magnetismo natural, vendendo a coolness de Berlim em anúncios publicitários e folhetos turísticos. “A pobre, mas sexy” Berlim – nas palavras de Wowereit – seria uma marca e a cultura underground que a distinguia – os okupas, a música techno – podiam funcionar como ímanes diferenciadores. Berlim como uma “máscara sedutora” para a Alemanha austera, diz Noel. “Berlim não é como Nova Iorque e Londres, mas é a alternativa underdog e criativa”, continua, explicando que esta estratégia comunicativa desenvolvida pela classe política se baseou no conceito de “creative class” de Richard Florida.
Nesta teoria, Florida defendeu que a forma de as cidades se regenerarem e desenvolverem economicamente passa pela sua capacidade de atraírem a tal classe criativa – cientistas, engenheiros, artistas, profissionais das indústrias culturais, da saúde, do direito e das áreas da gestão.
Noel defende que esta imagem da Berlim “pobre, mas sexy”, esta “espetacularização” da cidade já “fez o que tinha a fazer, atraindo artistas de todo o mundo, mas também muitos turistas (de 2004 para 2013 o número de dormidas passou de 13 milhões para 27 milhões) e multinacionais e investidores que querem comprar terrenos públicos, o que, de acordo com os ativistas urbanos, incentiva o processo de gentrificação, fazendo disparar as rendas e encarecendo o custo de vida.
Quem vai vencer a batalha de Berlim?
Junto ao ponto onde o rio Spree marcava a fronteira entre a parte ocidental e a parte leste, o troço mais extenso que resta do muro da vergonha abre uma porta sobre o futuro de Berlim.
Na East Side Gallery, no domingo em que a Alemanha comemora os 25 anos da queda do muro, um grupo de ativistas urbanos protesta ao som de música techno, emoldurados pelos murais coloridos e icónicos e por estilizadas e poderosas torres de vidro. Uma deles é a sede da Daimler, o grupo que produz os carros Mercedes. Os manifestantes aqui reunidos lutam contra a venda de terrenos públicos para a “construção de condomínios de luxo e para a instalação de grandes multinacionais”, como diz Dr. Motte, conhecido DJ berlinense e um dos fundadores da Love Parade, ao Observador. Apontando para um desses edifícios em construção, Dr. Motte diz: “Aquele prédio pertence a um ex-informador da Stasi!”. Refere-se a Maik Uwe Hinkel, antigo espião dos serviços secretos da República Democrática Alemã (RDA), e construtor de apartamentos luxuosos nestes terrenos.
Esta é a batalha que divide a cidade: quem controla Berlim? Quem vai decidir como se molda a sua skyline? Quem vai definir a sua identidade?
Em 1990, o desemprego em Berlim ultrapassava os 10%, quando a média na Alemanha ocidental se ficava nos 8%. A cidade estava totalmente endividada, com um défice de quase 60 mil milhões de dólares. Desde o início dos anos 90, a Câmara de Berlim procurou formas de utilizar os terrenos abandonados nas margens do rio Spree, com o objetivo de atrair investimento.
Um dos projetos previstos para esta área ficou conhecido pelo nome de Mediaspree, um grande investimento que pretende renovar o espaço urbano junto ao rio, atraindo empresas de media e de telecomunicações e modificando a paisagem arquitetónica do local. Após a queda do muro não havia dinheiro suficiente para pôr em prática o projeto, que foi deixado, temporariamente, de lado. Nos anos 2000, arrancou finalmente. Em 2008, dois anos depois do início das obras, foi inaugurado um gigantesco pavilhão desportivo e de entretenimento – o O2 Arena, com capacidade para 17 mil espectadores, próximo do que resta do muro. Milhares de protestantes reuniram-se na noite de inauguração para expressar o seu descontentamento.
Os opositores deste projeto municipal de reconstrução da zona ribeirinha berlinense são conhecidos por “Sink Mediaspree” e levam a cabo várias ações de protesto contra um plano que acusam de ser responsável pela destruição de uma zona história e pela subida das rendas. Em setembro de 2008, os opositores do Mediaspree venceram um referendo local com 87% dos participantes a votarem contra novas mudanças nesta área. Apesar de a votação não ter consequências legais, o movimento “Sink Mediaspree” ganhou a simpatia de alguns políticos berlinenses.
“Berlim tem dois caminhos possíveis”, diz Noel Nicolaus, num passeio ao longo do Spree. Junto ao rio, surge uma pequena aldeia de tendas de lona e yurts mongóis. É a Teepee Land, que resiste num terreno valioso. Os membros desta comunidade são antigos okupas que criaram este espaço e tentam protegê-lo e dinamizá-lo, promovendo exposições e sessões de cinema. A poucos metros dali, está a comunidade Spreefeld, uma cooperativa de habitação fundada por académicos e gente da classe média, que compraram o terreno e desenvolveram uma experiência de vida comunitária eficiente do ponto de vista energético e onde os automóveis são proibidos. Também eles resistem.
Estas duas comunidades, que tentam manter os modos de vida e as experimentações sociais que tornaram Berlim famosa, constituem a segunda via a que Noel se referia. Mas o investigador pensa que a cidade está a optar por uma direção clara. “Berlim é mais competitiva do que costumava ser. Está a ficar demasiado focada nos negócios”, lamenta o investigador, que teme que esta mudança afete aquilo que permite à cidade atrair gente de todo o mundo.
Os emigrantes que estuda no seu projeto de doutoramento chegam, diz, “a um ambiente muito competitivo num mercado muito frágil” como é o artístico e cultural. “Só uma minoria consegue singrar”. Os outros “vivem numa bolha de um estilo de vida boémio, sustentando-se com minijobs”.
Noel pensa muitas vezes em Berlim como uma “terra do nunca”. Uma cidade onde muitos acabam presos nas festas intermináveis em discotecas como o Barghain, que abre na sexta-feira à noite e só encerra segunda de manhã. Três dias de drogas e sexo para quem conseguir ser selecionado nas filas de espera à entrada. Tal como Eva, também ele diz estar farto da cidade. “Estou farto deste pretensiosismo vazio. O que é que toda esta liberdade produziu? Não houve nenhum renascimento cultural. Nada. Só uma utopia de festa”. Mais do que nunca, Berlim está a transformar-se numa “cidade de passagem”. E melancolicamente, Noel lembra-se da designação que traduz tudo isto. Berlim, a cidade dos sonhos perdidos.