Em Portugal há dois tipos de empresários: os que vivem encostados ao Estado e os que só pedem que o Estado não atrapalhe. Infelizmente, os primeiros são os mais numerosos. Belmiro de Azevedo era porventura o mais representativo do grupo, pequeno, daqueles que não estão à espera de subsídios nem preferem os sectores protegidos da economia.
Nos quase 20 anos em que trabalhei no Público, sobretudo naqueles em que fui seu director, pude perceber como, para ele, a liberdade que se vivia na redacção era um prolongamento natural do seu espírito independente e crítico. O Público não era a “flor na lapela” da Sonae, não era o toque de distinção num grupo “de merceeiros”, como alguns gostavam de olhar para os que tinham revolucionado a grande distribuição em Portugal fundando os Continente. Muito menos uma “flor na lapela” do homem que nascera pobre em Marco de Canaveses e que a aristocracia do regime – e da cidade do Porto – sempre viu como um intruso.
Quando o Público fez 20 anos, a 5 de Março de 2010, ele, que não deve ter escrito sequer uma mão cheia de textos para o jornal que lhe pertencia, publicou um testemunho onde significativamente escrevia que “já vivi o suficiente para perceber que o poder, em geral, aceita com dificuldade a crítica, a denúncia e a irreverência”. Também sei o que isso significa, mas aqui o importante é perceber que, para Belmiro de Azevedo, o seu jornal não faria sentido sem crítica, denúncia e irreverência – o que significa que aquela que é a matriz genética do jornalismo que sempre pratiquei e pratico, e que foi a matriz fundadora do Público, era no fundo uma outra expressão da forma de estar na vida de Belmiro de Azevedo.
Mais: essa era uma das qualidades que faziam de Belmiro de Azevedo um empresário, não apenas um bom gestor de empresas ou de fortunas. E ainda menos de rendas.
Basta recordarmos alguns dos momentos mais marcantes da sua vida para percebermos que tinha aquelas qualidades que distinguem os empresários dos patrões.
Primeiro, o gosto pelo risco. Quando, no início da sua carreira, impôs ao banqueiro Afonso Pinto Magalhães que nunca nomeasse para uma Sonae que ainda não era dele nenhum dos seus três genros agiu com aquele grau de auto-confiança próprio dos líderes e aquele toque de arrogância que por regra encontramos em todos os líderes carismáticos. Nesse momento, pôs a sua carreira em jogo e ganhou. Como ganharia apenas três anos depois a aposta “louca” no primeiro Continente, o de Matosinhos, uma grande superfície olhada de soslaio pelos eternos “velhos do Restelo” da Pátria.
Alguém sem audácia, alguém receoso de assumir riscos, não teria lançado a Optimus numa altura em que o mercado parecia saturado, muito menos teria montado a extraordinária OPA sobre a PT. Alguém sem a coragem de sonhar com voos sempre mais altos não teria tentado ser líder mundial da indústria de aglomerados de madeira, comprando primeiro a Tafisa, líder na Península Ibérica, e depois a Glunz, primeiro grupo industrial global.
Muitos dos projectos que lançou falharam, houve negócios que foram desastres, empresas que comprou e a que não conseguiu dar a volta, mas a verdade é que não é deles que nos lembramos por uma razão simples: não tinha medo de falhar, preferia tentar, diversificar, abrir novos horizontes. Confiava no instinto e na sua capacidade de fazer melhor.
Depois, Belmiro acreditava na inovação e na concorrência. Lembro-me bem do dia em que se deixou convencer, de forma definitiva, pela ideia de lançar o Público. Foi numa reunião no Porto, num edifício junto ao Hotel Sheraton. Nós tínhamos levado os estudos de mercado e o plano de negócios que tinham sido desenvolvidos sob a direcção de Carlos Moreira da Silva, mas levávamos também o primeiro número zero, o primeiro mono de um diário radicalmente diferente desenhado por Henrique Cayatte com uma elegância que fez com que fosse amor à primeira vista. Nessa manhã de sábado acendeu-se, de vez, a luz verde que nos permitiria avançar, e senti que isso aconteceu não por olhar para os números, mas por sentir que aquilo que lhe estávamos a mostrar era o embrião de um jornal radicalmente diferente e inovador.
Ao longo dos anos, e das muitas reuniões que tive com ele, a sua exigência para que apresentássemos resultados económicos – e o Público só deu lucro em três ou quatro dos seus mais de 27 anos de vida – ia sempre a par com a sua abertura para que lhe apresentássemos soluções disruptivas.
Sem estas características não lhe teria sido possível lançar-se em tantas áreas diferentes e ter mudado tanto a forma como vivemos em Portugal – porque Belmiro de Azevedo mudou muito mais do que a forma como fazemos compras, mudou também o modo como olhamos para os empresários que vêm do nada e acabam na lista da Forbes dos mais ricos do mundo. E fez com que essa percepção mudasse ao valorizar a formação dos quadros, ao ele próprio ter começado na escola de Tuias, onde se ia para as aulas descalço, e acabado engenheiro químico, ao nunca se ter deixado enfeitiçar pela riqueza, mantendo até ao fim da vida hábitos frugais e evitando luxos desnecessários, tendo absoluto horror ao exibicionismo.
Finalmente, Belmiro de Azevedo era um empresário como devem ser os empresários porque sempre fez questão de fazer o seu percurso e construir o seu grupo o mais possível longe de qualquer interferência governamental. Não foram poucos os políticos, à direita e à esquerda, que foram alvo da sua crítica acerada, mesmo cruel, nunca calculada. Entre os quadros do grupo tinha-se verdadeiro pavor sempre que se sabia que “o engenheiro” — como todos se lhe referiam — ia dar uma entrevista ou fazer declarações públicas: ninguém o controlava, ninguém o convencia a conter-se, ninguém nunca o obrigou a ser conveniente.
Sem surpresa, Belmiro de Azevedo pagou um preço elevado por esta forma – tão pouco portuguesa – de estar na vida e nos negócios. Teve guerras com Cadilhe por causa da forma como explorou o mercado de capitais numa altura em que os portugueses ainda o estavam a redescobrir. Teve guerras com Cavaco por causa da privatização do Banco Totta e do BPA. E mais tarde com Guterres por causa da Portucel. Teve o mais épico dos embates com José Sócrates por causa da OPA sobre a PT, uma batalha onde já teve a seu lado o filho, Paulo Azevedo.
Não era por ser um homem do Porto (ou mesmo do Marco de Canavezes) que tinha horror aos corredores do poder – era porque o seu modo de estar nos negócios era radicalmente diferente de um dos seus grandes rivais, Ricardo Salgado. Onde este cultivava a proximidade, a cumplicidade, mesmo a promiscuidade, Belmiro fazia gala na distância. Mesmo quando isso podia prejudicar os seus negócios.
Não foi por isso nada fácil a forma como acabou por impor-se na área das telecomunicações. Não foi fácil porque o mercado estava dominado pelo incumbente, a PT, a quem o Estado e os governos davam escandalosa protecção. Não foi fácil porque a regulação independente, que devia zelar pela concorrência, nem sempre era independente. E foi ainda menos fácil quando era o dono de um jornal, o Público, que nos tempos de José Sócrates chegou a ser uma voz crítica quase isolada.
Nalguns desses momentos sei como a sua fibra foi posta à prova. Soube, por exemplo, que numa certa manhã em que viera a Lisboa para uma reunião importante com José Sócrates por causa da OPA à PT, eu tinha escrito um editorial violento a propósito de uma reviravolta governamental (nas portagens das SCUT, recordo-me bem), e que a reunião acabou por ser marcada pela fúria do então primeiro-ministro. Nunca me disse nada, nem ele, nem Paulo Azevedo, que também esteve presente. Soube muito tempo depois, quase por acaso e porque ele era assim: nunca quis que me sentisse condicionado no que escrevia por imaginar que isso podia prejudicar o maior negócio da sua vida.
Poderia contar mais episódios destes, mas o essencial a reter é que Belmiro de Azevedo era alguém que gostava de se ver como um liberal e de agir como um liberal. E é bom que entendamos bem o que isso significa, pois vivemos no país onde o PCP votou contra um voto de pesar pela sua morte e o Bloco de Esquerda se absteve, um país onde são esses dois partidos que sustentam a actual solução governativa.
Belmiro era um liberal porque acreditava realmente na concorrência e desconfiava dos governos. Belmiro era uma liberal porque, como ele dizia, criava empregos e sabia que tinha salários para pagar ao fim do mês, uma realidade que a maioria dos ministros nunca tinham conhecido. Belmiro era um liberal porque sempre tratou de combater poderes dominantes e sempre o fez tratando de ser melhor, não percorrendo os corredores do poder. Belmiro era um liberal porque sempre considerou que o principal capital do seu grupo era o capital humano, sempre apostou na formação dos seus trabalhadores, sempre foi respeitado pela maioria dos que com ele trabalharam desde os dias em que era engenheiro fabril.
Sei também como era exigente e, ao mesmo tempo, como apreciava o mérito. Por isso mesmo, conforme se foi afastando da gestão quotidiana das inúmeras empresas do universo Sonae, sempre teve a preocupação de ter debaixo de olho os principais quadros. Era uma competência de que nunca abdicou. Era, suspeito, um gosto que também cultivava, chamando-os todos os anos para uma reunião que terminava com um jantar na sua casa do Marco de Canaveses.
É por tudo isto que senti necessidade de escrever estas duas ou três coisas que, na minha perspectiva, tornam singular a figura de Belmiro de Azevedo. É também por tudo isto que deixo um desafio sob a forma de uma pergunta (a que deliberadamente não respondo): quantos mais capitães da economia cultivam, como ele, o mesmo espírito independente, o mesmo desassombro, idêntica coragem, parecida frontalidade, são capazes desse exercício que devia ser tão normal como respirar que é dizer alto o que realmente pensam?
A resposta, como sabem, é arrepiante. Mas é uma resposta que diz muito sobre o nosso atraso como país.