Tem cabelo curto, cortado à rapazinho, e óculos de aro grosso. Ao primeiro contacto, Heloisa Seixas é assim: de sorriso fácil, olhar profundo e discurso longo e cativante, à semelhança da sua escrita. A jornalista brasileira é autora de cerca de 20 livros, incluindo O Lugar Escuro – Uma História de Senilidade e Loucura, recentemente lançado em Portugal. Ao longo de 125 páginas, Heloisa descreve a progressão do Alzheimer como uma espécie de tempestade silenciosa no cérebro da mãe, até esta se transformar por completo — até ficar um “avesso de si própria”.
O livro é um relato cru e muito realista que deixa a descoberto a raiva, o ciúme e a frustração que chegam a dominar as relações familiares, mas também o perdão, a aceitação e a harmonia. No fim do “lugar escuro” — uma metáfora para a demência de quem mais gostamos –, sobra iluminação e apaziguamento.
Falámos com a autora na sede da editora Tinta da China, em Lisboa. Sentada à mesa, Heloisa responde a todas as perguntas como se estivesse a contar uma história. A narração sempre calma, e por vezes demorada, é o reflexo do livro que escreveu. E a entrevista é um resumo dessa aventura literária.
Não foi gradual, era um sábado. Exatamente naquele dia, minha filha completava 22 anos. Sábado, 16 de fevereiro de 2002, oito horas da manhã. Talvez eu não pudesse precisar o momento se não fosse o aniversário, a mudança — mas foi como aconteceu. Minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã.
“O Lugar Escuro”, pág. 9
O livro saiu no Brasil em 2007. Dez anos depois, como acha que foi a reação dos leitores?
Este livro foi uma surpresa para mim porque provocou uma verdadeira tempestade emocional. Quando eu o escrevi nem tinha a certeza que o ia publicar. A minha mãe estava doente há cinco anos, ficou doente durante 10 anos e morreu em 2012. O livro foi publicado exatamente a meio desse processo tão doloroso de dez anos. Naquele momento, em que decidi escrever, já estava muito pacificada. Sei que no livro falo muito da minha raiva e da minha revolta mas, ao mesmo tempo, senti necessidade de fazer uma memória daquilo. Botar aquilo no papel. O que é que aconteceu? Como no início não tinha a certeza de que o ia publicar — eu estava escrevendo só para mim e isso deu-me uma liberdade muito grande –, não fiz o papel da filha boazinha, não dourei a pílula. Então, botei os meus medos, as minhas inquietações, as minhas revoltas, a minha raiva, o meu ciúme. Acabou por ser um livro não só sobre o Alzheimer, mas um livro sobre relações familiares, sobre a relação mãe e filha, sobre o ciúme entre irmãos, sobre o medo, a loucura e até sobre escrever, que é uma espécie de loucura. Quando acabei decidi publicar, porque as pessoas próximas de mim acharam que era algo muito impactante, uma coisa que as pessoas precisavam saber.
Quando esse livro foi escrito, há dez anos, o mundo era muito diferente. A gente acha que sempre existiu Google ou internet, mas não. A circulação das informações era muito menor. Quando a doença da minha mãe começou, na virada dos anos 2000 — 2002 é o momento que chamo de “marco zero”, quando escrevo que minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã –, havia muito menos informação. Então, as pessoas amigas que leram falaram que isto até podia ajudar as pessoas. Mas eu não escrevi pensando nisso. Mas, de facto, assim que o livro saiu e eu comecei a participar em palestras e a dar entrevistas, comecei a viver uma série de momentos de enorme emoção, que se prolongaram durante muitos anos.
Que tipo de momentos?
Uma vez dei uma entrevista na televisão e, quando terminei, o operador saiu detrás da câmara e veio me abraçar, quase chorando. As pessoas tinham muita essa reação, principalmente por eu falar da minha raiva, da minha revolta, por eu falar que foi tão difícil em alguns momentos que eu desejei a morte da minha mãe. Essas confissões que fiz eram as coisas que mais emocionavam as pessoas porque elas estavam, muitas vezes, vivendo histórias parecidas e se sentiam perdoadas pelos sentimentos ruins que são naturais, pela culpa. Em 2013, adaptei o livro O Lugar Escuro para uma peça de teatro. Essa sensação das pessoas obviamente se multiplicou, porque quando você vê a coisa encenada, com pessoas de carne e osso, falando aquelas coisas, os sentimentos ficam ainda mais exacerbados. Durante as duas temporadas da peça, em que ela foi a vários lugares do Brasil, eu vivi uma série impressionante de momentos de muita emoção das pessoas. Aprendi muito. O que coloquei nesse livro voltou para mim em termos de aprendizado, de vivência, humanidade e compaixão.
Também se sentiu perdoada por confessar muita da raiva que sentiu em diferentes fases da vida?
Eu acho que já estava pacificada quando escrevi o livro. Acho que o livro mostra bem a passagem da raiva para a compaixão. Realmente, aprendi a gostar mais da minha mãe com a doença e, então, isso foi uma coisa até anterior ao livro. Mas o livro e a peça consolidaram essas sensações boas, essa luz, digamos assim, que eu tirei desse lugar escuro. Mas é uma coisa que, quando escrevi o livro, já vinha resolvida. Tem uma coisa curiosa: quando o livro foi publicado no Brasil, a capa era branca. Quando a peça foi encenada, na primeira montagem, que era no Rio [de Janeiro], o diretor fez um cenário todo branco sem que eu tivesse a menor participação nisso. Acho que as pessoas sentiram nesse livro uma tentativa de tirar ensinamentos ou momentos mais iluminados dessa história tão difícil.
Foi um feito inédito, escrever algo tão confessional sobre uma doença cheia de tabus?
Na época, muita gente me perguntou: “Você não se sente exposta? Você não se sente fragilizada por estar botando num livro sentimentos e histórias tão íntimas?”. Eu pensei sobre isso e concluí o seguinte: este foi o primeiro livro de não ficção que fiz, em que botei só o que se tinha passado comigo. É um relato, é uma memória. Já tinha escrito alguns livros de ficção e concluí que na ficção a gente se expõe mais. Porque quando você escreve ficção, você mexe em regiões desconhecidas dentro de você, quando é fantasia claro que você usa muito da sua vida real, seus próprios sentimentos, mas você deixa fluir coisas que estão em regiões que não domina. Você não domina a fantasia, pelo que acho que há uma exposição imensa. Acho até que me senti menos exposta quando escrevi esta história.
Minha mãe se casou com um homem que amava muito e teve, enquanto foi casada, uma vida sexualmente satisfatória, pelo que ela própria dizia, sem qualquer pudor. Ou seja: foi feliz. Mas se alguém a ouvisse falando, diria que tinha sido a vida toda a mulher mais sofrida do mundo. E isso porque valorizava muitíssimo sua única, imensa e incontornável dor: ter sido abandonada por meu pai.
“O Lugar Escuro”, pág. 14
Mas ao escrever uma história destas permite que terceiros possam, de certa forma, opinar sobre a sua vida pessoal. Não se assustou com essa ideia?
Não. Quando escrevo, de maneira geral, não penso em mais nada. Sou eu e o livro. Depois que saiu tive questões com o meu irmão e com o meu pai. Meu pai tem 92 e é absolutamente lúcido, até hoje. Há dez anos tinha 82, mais lúcido ainda. Houve questões. Mas você sabe… acabou sendo uma grande psicanálise de família. Meu irmão continua morando do outro lado do mundo, no Havai. Na altura, a gente se falou por telefone. Ele chorou muito. Mas ele gostou do que escrevi, mesmo quando falo das minhas dificuldades com ele. Aquilo, de alguma maneira, fez bem. Meu pai só teve uma reação negativa, digamos assim, que foi quando eu falei em abandono. Ele reclamou: “Eu nunca abandonei sua mãe”. Mas, na verdade, eu na história conto que ele vivia lá em casa. Que ao contrário, pela covardia dele, ele tinha medo de desfazer o casamento e, no fundo, ele ficava. Ia mas não ia. O “abandono” foi como ela vivenciou as coisas.
Mesmo quando estava sem memória, a sua mãe diz: “Eu tive um namorado, mas ele me deixou…”.
Total. Voltou tudo. Tentei explicar isso para ele, mas ele nunca se convenceu. Sempre fez esse senão. Aí, quando eu fiz a peça, seis anos depois, ele falou que não ia. Convidei para a estreia. Foi, mas eu só o vi quando as luzes se acenderam. Cheguei para ele e falei “doeu?”. Ele disse que não. Aí lembrei-me de uma frase de minha filha, que também é personagem. Ela tinha lido o livro, mas quando veio a peça ela ficou com medo de assistir. Quando começaram os ensaios eu chamava ela e ela não queria. Estava adiando… Eu percebi que ela estava reticente. Mais perto da estreia ela disse que ia. Fomos num ensaio. Nós estávamos na plateia, sentadas no escuro, assistindo. E ela quieta. Daqui a pouco, tinha assim uns dez minutos de cena, ela virou baixinho no meu ouvido e falou assim: “Não somos mais nós, né mãe?”. Achei isso tão bonito. Quando a gente bota as coisas no livro já quebra o encanto. Os livros funcionam muito assim para mim, de quebrar o encanto, de tirar dentro de mim os medos, as mágoas e as paixões. Percebi que, mais ainda do que quando você bota no livro, quando vira peça, vira outra história. Aí entram também os sentimentos do diretor, dos atores e das atrizes. Acho que foi por isso que o meu pai se incomodou muito menos com a peça do que com o livro.
Durante essa fase de transformação da personalidade, que se estendeu por pelo menos cinco anos, muitas coisas aconteceram. Esquecimentos, trocas de nome, teimosia, pirraça, mas tudo me parecia normal, coisa de quem está envelhecendo. Ela não estava louca. Apenas de vez em quando acontecia um episódio mais assustador, capaz de disparar dentro de mim um alarme, cujo ruído, ainda assim, eu procurava ignorar.
“O Lugar Escuro”, pág. 19
Há uma ironia explícita no livro: a mãe independente e opinativa vai perdendo faculdades e transforma-se numa espécie de bebé. É uma inversão brutal de papéis. Como se lida com isso?
Toda essa convivência com a demência, seja qual for a forma, é uma coisa muito assombrada. Isso foi uma das razões para ter decidido escrever sobre isso. Os meus livros de ficção têm sempre uma atmosfera meio de sombra, gosto dela. O meu último livro, que saiu agora no Brasil, é sobre a morte. Quando comecei a conviver com o Alzheimer, contava para as pessoas conhecidas o que estava acontecendo e elas diziam: “Você tem de escrever isso”. Elas diziam que pareciam as minhas histórias de terror. E é verdade. É uma coisa muito impressionante. Uma das coisas mais impressionantes é essa de você ter uma pessoa que foi importante na sua vida e, de repente, está ali presente em corpo mas se está transformado numa outra pessoa. Porque há uma transformação, não é só falta de memória. Há uma transformação de personalidade e é muito comum as pessoas se transformarem no avesso de si mesmas. Isso aí é uma coisa que é percetível. Nessa minha convivência com pessoas que tiveram o mesmo problema, ouvi inúmeros relatos exatamente assim. A minha mãe era uma pessoa muito segura de si, muito dura, que sabia dar injeção e não tinha medo da dor… Era o homem da casa, sabia concertar tudo. Se transformou, de repente, numa pessoa frágil, medrosa, manhosa, exigente. Essa diferença é uma convivência estranhíssima para quem está em volta.
Isso custa mais do que ter de cuidar de quem já cuidou de si?
Eu acho que faz parte, porque foi dentro dessa transformação que surgiu essa mãe que virou criancinha. E começou, depois de um tempo, a me chamar de mãe. O que é muito estranho.
O que é que se sente nesses momentos?
É uma mistura de sentimentos. Acredito que tenha havido momentos, no início, em que rejeitei essa abordagem. Mas depois, à medida que fui caminhando da raiva para a compaixão e para o entendimento e parei de lutar contra aquela situação, aceitei o papel de mãe. Então, muitas vezes cheguei do trabalho e ela me olhava com um olhar de tanto amor. Um amor de criança, como uma criança olha para a mãe.
Muito inocente?
Muito inocente, muito puro e muito verdadeiro. Então, fui me deixando envolver por aquela situação. Houve vários momentos, em que ela estava com medo, que falei “a mamãe está aqui”. Falei isso para ela sem querer. E era verdadeiro quando falei. Essa inversão ela chega à totalidade. Ela vira a verdade.
Há ainda a simbologia de a mãe ficar “oficialmente” doente no dia em que a sua filha sai de casa. Parece uma partida do destino…
Pois é. Há já estudos sobre isso, que relacionam as pessoas que sofreram grandes perdas, ou que não souberam lidar com isso, com o Alzheirmer. Existem pesquisas sobre isso. Não acompanhei até que ponto isso foi sendo confirmado ao longo dos anos, de quando escrevi o livro para cá, mas percebia isso na minha mãe, tinha a impressão de que havia muito essa coisa da perda do marido e do filho que foi embora para o outro lado do mundo. Meu irmão teve muita dificuldade em lidar com a história da doença. Durante os dez anos que a minha mãe esteve doente ele só veio ao Brasil uma única vez. Depois que ela morreu ele vem todo o ano. Ele não queria. Mas, ao mesmo tempo, para ela isso foi uma perda. Perdeu primeiro o marido e depois o filho, de uma certa maneira. “Perdeu”. Aí eu me fico perguntando: será que a decisão da minha filha ir embora de casa e morar sozinha em algum ponto, no fundo da cabeça dela, encostou dois fios e fez detonar esse processo? Pode ser, né? Não é totalmente absurdo. Eu não fiz essa ligação na época, de jeito nenhum. Hoje eu fico pensando… não é impossível.
Perder alguém importante como uma mãe para o Alzheimer deve ser duro. Alguma vez se sentiu desamparada?
Não, engraçado. Essa sensação de desamparo não me lembro de ter tido. Lembro sim da revolta, da raiva, da dificuldade de lidar com essa nova mãe. E da mágoa de ter sido eu que fiquei para cuidar, aí vieram os sentimentos antigos, porque eu sempre achei que ela gostava mais do meu irmão do que de mim.
No fundo, nunca teve uma resposta em relação a isso, pois não?
Olha, acho que isso foi, de alguma forma, confirmado. Mas confirmado dentro de um limite. A minha mãe sempre foi uma mãe maravilhosa para mim. Por exemplo: quando a minha filha Júlia nasceu eu trabalhava num jornal e não havia horário para sair, viajava, trabalhava no feriado, e a minha mãe foi uma pessoa fundamental para a criação da minha filha. Ela foi maravilhosa para mim. Essa coisa do ciúme é mesmo uma coisa daquela Heloisa de criança, com carências, e que voltou diante daquela nova mãe que apareceu. Qualquer forma de loucura, digamos assim, acaba contaminado a família toda e faz uma espécie de… faz com que os filtros sociais fiquem atenuados e com que subam coisas que estavam guardadas no fundo de todos, não só da pessoa que está doente.
Mas tem uma história que aconteceu que acho interessante. O meu irmão era muito levado quando era pequeno. Eu era a filha certinha, que estudava e passava de ano. Meu irmão não. Ao mesmo tempo, tinha essa noção de que a minha mãe gostava mais dele. Na única vez que o meu irmão veio ao Brasil quando a minha mãe estava doente, ele veio com os dois filhos. Ele tem uma menina e um menino. O menino era a criança mais bagunceira que vi na minha vida, a menina era mais quieta. Um dia, estavam os dois na sala lá de casa, a mamãe sentada do meu lado, e eles saíram, a menina e o menino. Aí minha mãe me falou assim: “Essa menina é muito calada, ela é esquisita. O menino é muito levado, mas ele é amoroso. Eu gosto mais dele”. Achei uma confissão. E você sabe que não me provocou nenhuma raiva? Achei bonitinho, achei que foi uma reconciliação, quase como se ela dissesse: “Está vendo porque eu gostava mais dele? Mas eu também gosto de você”.
O relato feito no livro dá a entender que a doença se propaga no cérebro tal e qual uma tempestade silenciosa. Como é que a descreveria a quem a vê de fora?
Acho duas coisas. Uma é que nenhum dia é igual ao outro. As coisas vão mudando. Então, você tem de se adaptar. Você tem de agir com a máxima abertura para a compreensão, se você tentar negar ou modificar as coisas à força, é pior. Então, por exemplo, se acontece uma alucinação e a pessoa fala uma coisa que não existe, você em vez de dizer “o que é isso, está maluca?!”, você embarca na história, na fantasia, na loucura da pessoa.
Por uma questão de respeito?
De respeito e de harmonia. Porque se você ficar batendo de frente, aquilo cria uma clima de desavença e de raiva, que vai subindo cada vez mais. Existe essa coisa da compreensão, de saber que um dia vai ser diferente do outro. A outra coisa que eu acho muito importante é você buscar os caminhos de escape. Você guardar momentos para você, não querer estar o tempo todo ali, tentando resolver. Mesmo não tendo uma cuidadora, ou não tendo como ou não querendo internar, você tem de tentar construir momentos em que se preserva, para tentar renovar energias. Senão, você desce numa espiral, porque isto é uma coisa muito desgastante.
Houve uma vez que a agonia dela se manifestou em plena madrugada. Acordei por acaso e me dirigi para a cozinha, a fim de beber água. Quando abri a porta da sala, percebi um vulto na penumbra. Acendi o abajur. Minha mãe estava sentada na poltrona da sala, toda arrumada, vestida com o melhor conjunto de seda (…). Virou-se para mim e sorriu, o batom um pouco borrado. (…) Balbuciou alguma coisa, mas já parecendo sem graça. Pela indumentária, sem dúvida pretendia ir a uma das suas festas-fantasma.
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Quais foram os momentos mais marcantes com a sua mãe? Há episódios de alucinações, repetições constantes e até o ela recordar músicas de infância…
Sim, mas isso era ótimo [recordar as músicas de infância]. Aliás, cantar é um caminho de escape, porque a pessoa guarda as memórias mais antigas, são as últimas a ser destruídas. Então a mamãe se lembrava das músicas que ela ouvia quando era garota. A gente cantava as marchinhas da Carmen Miranda e ela terminava. Sabia a letra toda. E eram momentos de alegria, para ela e para nós. Isso é uma coisa boa. Agora, os momentos mais marcantes foram, infelizmente, os mais difíceis, que foram nos dois primeiros anos porque eu não tinha compreensão do que estava acontecendo — é fundamental que a pessoa envolvida procure se informar. Hoje em dia isso é muito mais fácil, existem associações de ajuda mútua, que eu só fiquei sabendo depois. Mas mesmo hoje, com muita informação circulando, muita gente nega. E isso é ruim. Nos primeiros dois anos eu não entendia que era uma doença, então, para mim, esses atritos foram muito difíceis.
Foi nessas alturas que sentiu aquela vontade, difícil de admitir, de quase desejar que ela se fosse embora?
Foi nessa fase, exatamente. Porque era também uma fase em que ela estava muito bem fisicamente. E a cabeça… Ela tinha autonomia, ela fugia, eu tinha de trancar as portas, ter cuidado com o gás. Ela bebeu água sanitária achando que era leite… Era tudo uma loucura e uma coisa altamente desgastante. Mas eu acho que, no meu caso, isso aconteceu pela falta de informação e a consequente falta de compreensão. À medida que fui entendendo, eu fui saindo da revolta para a compreensão.
O livro serve para tentar suscitar compreensão entre os leitores?
Sim. É como falei, tanto na publicação do livro como na época da peça, muita gente ficava impressionada pelo facto das histórias serem tão parecidas.
No livro há descrições um tanto ou quanto pormenorizadas de vários membros da família. Porquê? Foi para manter viva a memória de quem já não está cá?
Foi um livro que eu escrevi ao sabor da pena, tanto que ele parece um pouco como se eu estivesse sentada com você numa sala junto a uma lareira. Como se estivesse desenrolando a história. O livro vai muito lá atrás. Não foi uma coisa que premeditei. Mas percebi que, à medida que ia narrando, ia recuperando um pouco a memória dela. E você sabe que, depois de alguns anos, escrevi um outro livro em que quis fazer o reverso do Lugar Escuro. A minha mãe gostava muito de festa e há todo um outro lado colorido. Aí fiz um outro livro só com histórias engraçadas e com todas as receitas de minha mãe, chamado Uns Cheios, Outros em Vão, que era um ditado que ela usava muito para dizer que não se pode ter tudo (“em vão” no sentido de vazio).
Há uma relação muito forte entre a sua sanidade mental e a escrita, pelo menos segundo o livro. Pode explicar melhor?
Quando comecei a escrever, em 1990 e poucos, já com 40 anos (estou com 65), estava fazendo análise [terapia] e um dia perguntei para a minha analista: “Acha que corro o risco de enlouquecer?”. Aí ela disse “Agora não mais”. Sempre tive com a escrita uma relação de ancorar no papel as minhas loucuras, os meus medos, os meus terrores. Coisas boas também, mas sobretudo as coisas que me inquietam. Acho que quando a gente escreve, a gente mexe com coisas muito desconhecidas, é quase como se a gente tivesse tendo um surto psicótico. Acho que o escritor sofre, de certa forma, de uma esquizofrenia benigna.
Tem medo de algum dia ficar louca, como a sua mãe? Já respondeu muitas vezes a esta pergunta?
Tenho medo. E já fizeram. Mas eu sou muito parecida com o meu pai, que tem 92 anos e é lúcido. Há toda essa esperança. Sou uma pessoa medrosa, mas não é uma coisa na qual eu viva pensando. Convivi com muitos problemas, com muitos sustos. Escrevi muito sobre isso. Tenho medo de morrer, é uma coisa que me inquieta, mais do que enlouquecer. Se você me perguntar: “Você tem medo de ficar igual à sua mãe?”, tenho. Mas não é uma coisa que guie a minha vida. Mas, sinceramente, acho que isso não vai acontecer. Pode ser uma convicção. Pode ser uma esperança.