Lisboa, 1936. Início da Guerra Civil de Espanha? Envio da primeira leva de presos políticos para o Tarrafal? Reforma do ensino primário, que passava a dividir alunos por sexo nas escolas? Na altura, políticos, aristocratas e jornalistas só perdiam o sono com uma coisa — e não era nenhuma destas três. Descobrir a verdadeira identidade do misterioso Barão de São Maduro, isso é que se impunha.
Há pelo menos um ano que era rara a semana em que não chegavam às redações, sobretudo de O Diário de Lisboa e de A Voz, envelopes com o pomposo remetente e cartas para publicação ao cuidado dos respetivos diretores.
O barão, do alto do seu título nobiliárquico falsificado e aproveitando o anonimato que ele lhe conferia, escrevia sobre tudo — do preço do material escolar à falta de padres na ilha do Príncipe, passando pela proibição de abrir as janelas (e, por conseguinte, fumar) nos elétricos entre novembro e fevereiro, e pelas sessões na Assembleia Nacional: “6ª feira, não havia matynée no Colyseu e apetecia-nos palhaçadas. Fomos a S. Bento, o espectaculo é de graça“.
Os diretores das referidas publicações, depois de as submeterem ao crivo da Censura, publicavam as suas cartas — ou os poucos excertos delas que não tinham sido riscados a azul. E roíam-se de dúvida e curiosidade: quem seria o tal barão?
Não era um homem moderno, bem pelo contrário. Vanguardismos ou novas expressões ao nível da arte? “Quando no meio artistico ou literario alguem pretende produzir qualquer novidade, resulta o aborto. É assim que surgiram na Pintura o ‘cubismo’ e o ‘futurismo’, no Mobiliário a ‘arte-nova’ e, na Architectura, esses monstros cuja realização o cimento-armado facilita.”
Trocar o ch pelo qu e aceitar a evolução da língua na escrita? O barão era contra acordos ortográficos. “O proprio Estado portuguez, em 1911, pretendendo criar algo de novo na philologia nacional adoptou uma ortographia simplista que obedece apenas á lei do menor esforço e nos obriga a redigir as palavras com uma formula que ha 50 annos, na nossa mocidade, nos custaria fortes palmatoadas.”
Também não podia dizer-se que fosse propriamente anti-Estado Novo. Numa das dezenas de cartas que escreveu, o barão de São Maduro discorreu sobre o acampamento de milhares de membros da Mocidade Portuguesa instalado num parque em Palhavã, para comemorar o 11.º aniversário do regime. Por muito que nas entrelinhas se perceba que não achava especial piada ao evento (“Ali vão estar durante uns dias, constituindo uma sympathica colonia, os portuguezinhos que hão de vir a continuar os Grandes de outrora”), o barão não se insurge contra o acampamento nem sequer contra a própria Mocidade Portuguesa, só critica o facto de ninguém se ter lembrado de juntar uma missa às festividades: “Se queremos criar gerações fortes a base deve assentar na educação religiosa e esta exige o cumprimento integral das leis de Deus. Ensinemos a essa geração, e a nossos filhos, que para ser christão não basta confessar a Fé mas é necessário guardar os Mandamentos da Lei de Deus e os da Santa Madre Egreja.”
No fundo, escrevia aquilo que pensava — daí o espanto e a urgência da franja intelectual da sociedade portuguesa em descobrir quem era. Mais admirável ainda: afrontava António de Oliveira Salazar, em cartas que lhe dirigia diretamente — e de que depois enviava cópias a papel químico para os jornais –, não poupando críticas ao Estado Novo nem ao próprio presidente do Conselho.
Não era mal-educado nem ofensivo, só cáustico e direto. Muito direto, como comprova o excerto que se segue, datilografado a 28 de outubro de 1935 e remetido com deferência ao “Exmº Snr. Dr. Oliveira Salazar”.
“Tem Vª Exª, Snr. Dr. Oliveira Salazar, de descer até ao povoado, misturar-se com o populacho, englobar-se na multidão, sentir palpitar corações, ouvir gemidos e suspiros, ver os que soffrem e tentar attender às necessidades, exercendo as quatorze obras de misericórdia. (…)
Disfarce-se Vª Exª, ponha umas barbas postiças que o masculinisem, afecte uma musculatura que não possue, sorria às mulheres, abra os cordões à bolsa, empregue uma linguagem corrente sem superafetações, que ninguém o reconhecerá.
Venha comigo, por exemplo e para principiar, até ao Archivo de Identificação da Rua das Trinas, que naturalmente Vª Exª não sabe onde seja. Penetre n’aquelle antro vergonhosamente sujo e em ruínas; repare na bicha interminável de interessados longas horas à espera que o attenda um único empregado escondido atraz de um guichet, e conclua que valerá a pena utilizar meia dúzia de desempregados em brunir aquelle casarão e em servir os que d’elle necessitam. (…)
Ao sahirmos topamos, em frente, com outra bicha, esta ao ar livre, quer faça sol quer faça chuva, quer vente quer corra a bonança. São velhos achacados, senhoras edosas, o typo de pobreza envergonhada, que paciente esperam desde as 9 horas que pelas 11 horas se abra a porta do Montepio Official para, ao cabo de longa demora, receberem uns magros cobres de uma pensão a que teem direito e não está actualisada! (…)
Mas as bichas ainda não terminaram: vamos até à Estação do Caminho de Ferro do Estoril que lá as encontraremos. Os guichets estão fechados aguardando, para se abrirem, o quarto de hora regulamentar antes da partida do comboio. Os passageiros esperam em fila a sua vez emquanto duas empregadas, sempre duas e feias, conversam ociosamente à porta dos seus cubículos.”
Desmascarado pelo Diário de Lisboa
Pela escrita, pelo tom que usava, pelos assuntos que escolhia, percebia-se claramente que, por muito que não fosse barão de facto, o de São Maduro era um homem bem posicionado na sociedade lisboeta. O resto, Artur Portela, jornalista de O Diário de Lisboa que mais tarde se notabilizaria por entrevistar Winston Churchill e Francisco Franco (entre muitos, muitos outros), foi percebendo a partir de pequenos pormenores e detalhes sobre locais, acontecimentos e opiniões revelados nas cartas.
Foi ele que, na terça-feira, dia 27 de agosto de 1935, assinou o artigo que ocupou a primeira página inteira do vespertino: “RASGA-SE A MASCARA, Quem é o misterioso ‘barão de S. Maduro'”.
Sem nunca revelar o nome do pretenso barão — José Luiz de Saldanha Oliveira e Sousa, sabemos hoje e já lá iremos –, Artur Portela disse tudo sobre a figura, incluindo que tinha olhos azuis, rosto comprido e cabelos grisalhos, outrora louros: “Trata-se dum aristocrata de bom sangue, que usa, legitimamente, ‘Dom’, irmão dum conde e cunhado dum marquês grande da corte, que privou muito com o último rei de Portugal, acompanhando-o ao estrangeiro. O seu apelido baptisa uma das praças das avenidas novas de Lisboa, onde se ergue um monumento”.
Como se não bastasse, o jornal até ilustrou a peça com uma fotografia da sua porta, na Travessa dos Ferreiros à Lapa, com a legenda: “Deve ser esta a casa onde mora o barão S. Maduro…”. Mesmo assim, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) não foi tocar-lhe à campainha.
Até fevereiro de 1938, quando finalmente Salazar perdeu a paciência e o mandou prender — “Acusação ou motivo de prisão: por ter escrito em termos injustos e desprimorosos, cartas que dirigiu a Sua Ex.ª o Presidente do Conselho” — o barão continuou a escrever e a ser publicado (cada vez com mais cortes) nos jornais.
No total, entre 14 de janeiro de 1935 e 20 de fevereiro de 1938, enviou 119 cartas com considerações políticas, sociais e culturais para a imprensa. Mais outras 24, com descrições sobre o cruzeiro de férias, organizado pela revista O Mundo Português em coordenação com Marcello Caetano, que fez em 1935, a bordo do primeiro paquete Moçambique (ainda com máquina a vapor) pelas colónias ultramarinas.
Todas elas estão reunidas agora em Cartas de Salazar que me levaram à prisão, livro publicado em edição de autor (e à venda na livraria Ferin, em Lisboa) por António Rugeroni de Saldanha, um dos netos do barão de São Maduro, pseudónimo de José Luiz de Saldanha Oliveira e Sousa. O trabalho de descoberta e transcrição das cartas, de que cresceu a ouvir falar, levou-lhe quatro anos. “Foi difícil encontrar o processo todo. Na Torre do Tombo, encontrei muitas cartas no Arquivo de Salazar, o da PIDE também tinha algumas, mas faltava o resto e os autos da PVDE. Não estavam em Saldanha nem em Oliveira nem em Sousa. Acabei por encontrá-los em barão de São Maduro”, conta ao Observador.
No livro, António Rugeroni de Saldanha, 78 anos, reformado da banca, da direção do Banco Internacional de Crédito, desde os 65, recupera a história do avô paterno, com quem viveu nos primeiros anos de vida e costumava ir à missa de domingo. “Às vezes, depois da missa, passávamos na esquadra da Lapa, onde ele tinha estado preso em 1938. Ainda conhecia muitos dos polícias que lá estavam, ficaram amigos.”
Viúvo aos 28, preso aos 56
Nascido a 28 de abril de 1881 em Lisboa, no Palácio da Anunciada, na que é hoje a Rua das Portas de Santo Antão, José Luiz de Saldanha foi o terceiro de quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas — ao irmão mais velho, João, coube o título de 2.º marquês de Rio Maior; a irmã Maria da Piedade, pelo casamento, viria a ser marquesa de Lavradio.
Licenciado em Engenharia Agrónoma, foi professor de Economia Agrária no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, e mais tarde técnico superior do Ministério da Economia — não durante muito tempo, garante o neto em Cartas de Salazar que me levaram à prisão: “Não se quis demorar por divergências de caráter político”.
“O meu avô tinha um perfil absolutamente conservador, muito católico, de comunhão diária. Mas não estava de acordo com a forma como o Salazar conduzia os destinos da pátria. Achava que ele era um avarento, que só lhe interessava sentir o tilintar das moedas. Acusava-o também de se encerrar na sua torre de marfim e de não ouvir o povo e as pessoas. Revoltava-se primeiro contra o corte de liberdade individual imposto pelo Estado Novo e depois também achava que esse corte era muito limitativo em termos económicos, dizia que travava o desenvolvimento económico através de uma burocracia doentia”, explica.
Viúvo com apenas 28 anos, José Luiz de Saldanha usou gravata preta até ao fim da vida, em sinal de luto por Maria Ana Zarco da Câmara, de origens ainda mais nobres — o pai descendia da Casa dos Condes e Marqueses da Ribeira Grande, a mãe da Casa dos Condes de Lumiares –, morta no parto em 1909, aos 24.
Sozinho, com três filhos, dois rapazes e uma rapariga a cargo (o mais velho, José Luís da Câmara de Saldanha, foi pai do neto que agora lhe recuperou o espólio), tinha uma vida pública intensa. “Era muito sociável, alegre, otimista e brincalhão”, recorda António Rugeroni de Saldanha.
Foi ela (a tal vida pública e social) que o salvou quando, em fevereiro de 1938, António de Oliveira Salazar se cansou da ousadia do barão de São Maduro e resolveu dar-lhe ordem de prisão. Não tivesse sido a intervenção de Genoveva de Lima Mayer, influente milionária, casada com o embaixador Rui Ulrich, e então anfitriã das festas e soirées mais excêntricas de Lisboa, e talvez José Luiz de Saldanha tivesse ficado detido bem mais do que oito dias.
Foi por volta das 16h00 de 25 de fevereiro de 1938, uma sexta-feira, que quatro agentes da PVDE, vestidos de negro e com chapéus a condizer, irromperam na casa da Ferreiros à Lapa e, depois de revistarem gavetas e armários e apreenderem uma série de documentos, anunciaram que iam levá-lo para a esquadra mais próxima.
“Salazar deve ter estado pacientemente à espera que o meu avô parasse de escrever naquele tom ou atenuasse as críticas. Certamente considerava que não lhe convinha que um professor universitário pertencente a uma antiga família da aristocracia portuguesa continuasse a escrever naqueles termos“, explica António Rugeroni de Saldanha em Cartas de Salazar que me levaram à prisão.
De nada serviram os pedidos de clemência de uma das filhas, Maria Carlota, nem da neta Maria Ana, então com sete anos. O barão, na altura com 56 anos, foi mesmo detido, na esquadra do bairro, acusado de escrever em termos “desprimorosos” ao presidente do Conselho. “Isso não é crime. Mas naquele tempo crime era aquilo que a autoridade decidia que devia ser crime. O meu avô não lhe chamava nomes. Dizia que ele era um sovina, que não tinha em atenção as necessidades dos mais pobres, chamava-lhe rústico, um professor de Direito que em certas coisas tinha uma mentalidade de provinciano. Isso para o Salazar deve ter sido difícil de engolir”, diz o neto.
Na prisão com Rosa Casaco e a jogar damas
Durante a semana que durou a reclusão, a neta Maria Ana foi todos os dias à esquadra, com as empregadas da casa, levar almoço, jantar e roupa lavada ao avô. Detido num “quarto pequeno, austero, mas que não parecia nada desconfortável” (descrição de António Rugeroni de Saldanha feita a partir as memórias da prima), José Luiz passava parte do tempo a jogar damas com os polícias. Não há provas de que o tenha feito também com o escrivão que datilografou e assinou o auto de busca e apreensão: António Rosa Casaco, que tinha acabado de chegar à PVDE e se tornaria, dentro de 27 anos, conhecido como o mentor da “Operação Outono”, que, a 13 de fevereiro de 1965, culminou com o assassinato do general Humberto Delgado, nos arredores de Badajoz.
Apesar de poder parecer, António Rugeroni de Saldanha garante que os oito dias de detenção do barão de São Maduro não foram propriamente um passeio no parque. Para além de ter sido submetido a exames psiquiátricos no Hospital Miguel Bombarda — que determinaram que estava “na posse da sanidade psíquica necessária para responder pelos seus actos”, diz o relatório –, foi ameaçado com o exílio. “Chegaram a dizer que iam deportá-lo para Angra do Heroísmo. Apesar de ser um dos sítios mais benéficos, não era brincadeira nenhuma, os presos eram metidos numa fortaleza cheia de humidade e frio. E ele era uma pessoa muito ligada à família. Não ia aguentar a distância.”
Foi por isso, pela família, que decidiu engolir o orgulho e escrever uma carta a Salazar, a pedir desculpas e a garantir que não tornava a afrontá-lo. A ideia partiu de Veva de Lima Mayer, que escreveu diretamente ao presidente do Conselho a interceder pelo amigo. “Aquelle senhor tem sido impertinente para com V. Exª e para com o regimen; é truculento, irritante fallando muito d’aquillo que não entende e, para maior confirmação da sua tagarelice leviana, intitula-se elle próprio ‘Barão de S. Maduro’ na consciência de que a sua madureza não tira nem põe no que respeita a solidez das instituições. (…) Invoco estas considerações para abalar a resolução de V. Exª em manter prezo um homem que não é novo e que, à parte estes pecadilhos reprehensiveis, foi sempre um homem de Bem.”
Para aplacar a ira de António de Oliveira Salazar, José Luiz de Saldanha lá acedeu em escrever-lhe uma última carta. Em cinco parágrafos apenas, pediu desculpas e explicou que nunca tinha tido “intenção de insultar”.
António Rugeroni de Saldanha acredita que o avô estava a ser sincero e que, com as cartas, queria apenas dar o seu contributo para a política nacional: “Acho que ele achava que se fosse escrevendo e expondo as suas ideias, talvez um dia o Salazar o chamasse para uma conversa em que pudesse explicar as razões das suas opções. Não tinha ambição política nenhuma, era rico, tinha propriedades no Alentejo e na Beira Baixa, queria era ser útil ao país. O meu pai contava que o cardeal Cerejeira, que era muito amigo do irmão mais velho do meu avô, o marquês de Rio Maior, também tinha intercedido por ele mas disso não encontrei provas”.
Apesar de, depois da viagem que fez pelas províncias ultramarinas, até se ter tornado próximo de Marcello Caetano, José Luiz de Saldanha, que viria a morrer em 1950, aos 69 (e duas décadas antes de Salazar), nunca chegou a ter oportunidade de conhecer o seu destinatário favorito. Mas manteve a promessa e nunca mais lhe escreveu mesmo. Garante o neto, “cartas para os jornais continuou a mandar, mas só sobre cultura”.