Tozé Brito, membro do júri do Festival da Canção e administrador da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), acha que Diogo Piçarra tomou uma boa decisão quando desistiu do concurso, depois das dúvidas levantadas sobre um pretenso plágio: “O Diogo fez aquilo que eu teria feito e que acho que foi a coisa mais correta: afastar-se desta polémica e discussão absurda. Ele vai continuar a ter uma boa carreira e não vai ficar réu de um Festival da Canção”.
Para Tozé Brito, “não se chegou ao fundo da questão, pelo que isto é um não assunto”. Provar a existência de um plágio, diz o músico, jurado e conhecedor da temática dos direitos de autor (devido às suas funções na SPA), requer mais do que encontrar semelhanças harmónicas e melódicas entre canções. Não basta uma canção “ter três ou quatro compassos iguais a uma outra, ter as mesmas notas. É preciso que a canção não tenha uma identidade própria”. O termo faz com que a avaliação não seja fácil de fazer, alerta Tozé Brito, sendo natural haver pareceres contraditórios de especialistas. Como nada se provou, “o Diogo foi crucificado sem provas”, afirmou ao Observador.
“Provar um plágio é uma coisa muito complicada, não me lembro de nenhum tribunal condenar alguém por plágio musical. Uma obra pode ser muito parecida com a outra e não ser considerada plágio”, lembra. “Canção do Fim”, de Diogo Piçarra, é um tema “cuja sequência harmónica é feita em quatro acordes. É uma sequência extremamente comum, existe em milhares de canções, é do mais simples que há. Ele construiu a melodia em cima dessa sequência harmónica, com base em quatro ou cinco notas. A probabilidade de haver canções praticamente iguais é enorme, com esta sequência harmónica e melodia existem aos milhares”, argumenta o membro do júri do Festival.
Ao Observador, Diogo Piçarra disse algo de semelhante na segunda-feira, na primeira entrevista que deu após a polémica: falou na “melodia tão simples e tão elementar” da sua canção, que torna “inevitável” que esta seja “parecida com muita coisa” e recusou ter feito uma cópia consciente: “Nunca iria participar num concurso nacional com a visibilidade que tem internacionalmente o Festival da Canção com uma música parecida com a da IURD. Acho que é ridículo [assumir que sim]”.
[“Achava que tinha tido uma ideia brilhante”. Veja no vídeo as 5 respostas de Diogo Piçarra ao Observador sobre o plágio]
Algumas das reações às semelhanças entre o tema que Piçarra levou ao Festival da Canção e o cântico evangélico “Abre os Meus Olhos” (cantado com algumas nuances por grupos como a Igreja Cristã Nova Vida e Igreja Universal do Reino de Deus e adaptado do tema original do norte-americano Bob Cull, “Open Your Eyes”) foram desproporcionadas, defende o jurado do concurso: “Há comentários feitos de boa fé e outros de má fé. Ele foi atacado até por pessoas com responsabilidades, porque embora muitos músicos se tenham colocado do lado dele, houve outros que o atacaram”. A “moda” de acusar alguém de plágio musical sem provas “está-se a instalar”, insiste, e isso é “preocupante”.
Para provar que um músico plagiou outro, é preciso uma peritagem técnica que não chegou a acontecer neste caso, explica Tozé Brito: “Avaliar uma coisa destas é para especialistas”. Por norma, uma peritagem é feita na sequência de uma queixa de plágio — e neste caso “não houve peritagem porque não houve queixa nenhuma. Se for pedida uma peritagem, nós [SPA] fazemos, mas ninguém pediu. Houve um barulho ensurdecedor mas ninguém avançou com isso, nem a priori nem a posteriori [do festival]”.
O que aconteceria se Diogo Piçarra não desistisse
Não é ao júri do Festival, esclarece Tozé Brito, que cabe fazer a avaliação da autenticidade dos temas. “O júri não é tido nem achado. Não estamos ali para policiar nada, estamos ali para ouvir as canções. E a posição da RTP até certo ponto é a mesma, partimos para isto de boa fé, com o princípio de que não haveria motivos para preocupações. Ninguém está à espera que isto aconteça e depois acontecem estas coisas. Acho triste a reação quase histérica de tanta gente perante um pretenso plágio que não foi [pelo menos, ainda] provado”.
Esta quarta-feira, num “pequeno esclarecimento” enviado pela RTP ao Observador, a televisão pública descrevia assim as funções dos intervenientes do Festival: “A decisão de convidar os artistas é da responsabilidade da organização do Festival da Canção, ou seja, da Direção de Programação da RTP1. O Júri está circunscrito à responsabilidade de votar nas canções concorrentes, baseado em parâmetros artísticos. O produtor musical é exclusivamente responsável pela adaptação e integração técnicas das canções no programa de televisão.”
O Observador contactou o produtor musical em questão, Fernando Martins, para perceber se na função de “adaptação e integração técnicas das canções no programa de televisão” — mencionada também no regulamento — se inclui a verificação da autenticidade e originalidade dos temas. Este negou: “Eu nunca fui contratado para verificar se uma canção era similar a outra ou não. A minha função foi ver os ficheiros, que depois têm de ser formatados. Não é uma questão artística, é um trabalho de integração técnica: os ficheiros [das canções] têm de vir com uma sequência de amostragem e formato específicos.”
[Veja no vídeo as semelhanças polémicas entre a canção de Diogo Piçarra e o cântico evangélico brasileiro]
Segundo Tozé Brito, o produtor musical também não tinha responsabilidade de avaliar — antes ou depois da semi-final em questão — a originalidade de “Canção Sem Fim”. Essa responsabilidade, apontou, “não estava prevista. Seria impossível o Fernando [Martins] ter na cabeça as milhares de canções escritas no último século. Só é possível com os Shazams [aplicação que permite descobrir músicas a partir das notas e harmonias, instrumentais e vocais] e com as tecnologias. A canção do Diogo não está sequer registada, editada, não tem aquilo que é o [código] IRSC, que é para as canções o que o IP é para os computadores. Cada canção tem um código e depois pode-se ir aos motores de busca e base de dados ver se há canções parecidas. Fala-se disto com uma leviandade…”
Além de uma queixa, haveria ainda outro factor que poderia desencadear uma peritagem, explica o administrador da SPA: “Poderia haver um pedido da RTP para defesa própria. Imaginemos que a canção ganhava, o que até era uma possibilidade: a RTP podia querer precaver-se, podia haver um pedido de esclarecimento de uma entidade que organiza um evento [o Festival Eurovisão da Canção 2018, que vai decorrer de 8 a 12 de maio na Altice Arena] em que depois vai participar e que quer ter a certeza que vai a concurso com uma canção sem mácula”.
Mas Tozé Brito acrescenta que os timings do Festival da Canção também dificultariam o pedido de uma peritagem: “Se a final [agendada para o próximo domingo, 4 de março] fosse daqui a dois meses, não tenho dúvidas que teríamos tempo, se calhar o Diogo [Piçarra] não iria desistir, iria pedir uma peritagem e a própria RTP se calhar faria a mesma coisa”.
Contagem, som, desistência: os três casos do Festival da Canção
A edição de 2017 pode ser descrita numa palavra: sucesso. A RTP1 decidiu reformular o formato do Festival da Canção, desafiando compositores prestigiados do país a participarem. Entre os eleitos estava Luísa Sobral, que com o tema “Amar pelos Dois”, interpretado pelo seu irmão, Salvador Sobral, venceu o certame e deu ao país uma vitória histórica (a primeira) no Festival Eurovisão da Canção — e a responsabilidade de organizar o Festival da Eurovisão.
Este ano, o canal público decidiu manter o formato mas, logo na primeira semi-final, um erro na contagem de votos levou a que se trocasse um dos finalistas. “Eu Te Amo”, tema de Mallu Magalhães cantado por Beatriz Pessoa, foi erradamente anunciado na noite de 18 de fevereiro como um dos primeiros sete (de 14) finalistas, quando o público havia antes escolhido “Sem Medo”, de Jorge Palma e Rui David, para chegar à final. Pode conferir aqui as votações corrigidas da primeira semi-final. Embora a RTP tivesse dado conta do erro ainda nessa noite, só perto de 12 horas depois oficializou o lapso, que Daniel Deusdado, diretor de programas, explicou em detalhe ao Observador.
[Veja no vídeo o momento em que os apresentadores anunciam a contagem de votos de errada]
A pessoa responsável por recolher a pontuação do televoto enganou-se e atribuiu zero pontos à canção 13, que seriam afinal para a canção 3, o que baralhou todas as contas. Daniel Deusdado apercebeu-se logo do erro, mas não foi a tempo de avisar os apresentadores, Jorge Gabriel e José Carlos Malato, que tinham acabado de anunciar os resultados incorretos. O diretor de programas da RTP chamou todos os funcionários envolvidos na produção do Festival logo a seguir à emissão e na manhã seguinte foi emitido um comunicado sobre o erro, que mesmo assim ainda demorou mais algumas a horas a ser clarificado, face às dúvidas suscitadas.
Na segunda semi-final, que se realizou este domingo, 25 de fevereiro, surgiu um problema técnico relacionado com o som. Quando a cantora Maria Inês Paris subiu ao palco e começou a cantar “Bandeira Azul”, um tema concebido pelo seu tio Tito Paris com letra de Pierre Aderne, a qualidade do som distorceu momentaneamente a interpretação da concorrente. Esse facto levou a que Maria Inês Paris tivesse possibilidade de repetir a atuação, ainda durante essa semi-final.
Poucas horas depois da segunda semi-final, rebentou a terceira polémica, com a acusação de plágio a Diogo Piçarra a tornar-se viral, pucas horas depois de o cantor ter sido o mais votado pelo público e pelo júri. Diogo Piçarra começou por desvalorizar o assunto, através de um post nas redes sociais e na entrevista que deu ao Observador logo a seguir.
O regulamento do Festival da Canção prevê a desclassificação das canções que não sejam originais e inéditas, mas é pouco claro sobre a forma de averiguar um eventual plágio, sobre a concretização dessa desclassificação e sobre a responsabilidade no processo do júri, do produtor e da própria RTP.
Nas 24 horas que se seguiram, o canal televisivo não deu qualquer explicação ou resposta à polémica. Ate que, às 21h03 desta terça-feira, Diogo Piçarra anunciou no Instagram a sua desistência, por não querer “alimentar mais esta nuvem”. Pouco depois, o noticiário da RTP informava que a vaga de Diogo Piçarra na final será ocupada por Susana Travassos, a intérprete de “Mensageira”, tema composto por Aline Frazão. Os votos em curso prosseguem com a cantora a assumir o “número 760 100 802 (sorteado para Diogo Piçarra), com a contagem a iniciar-se do zero a partir de agora”.
O produtor, Fernando Martins, soube destes desenvolvimentos pelo Observador nessa noite. Júlio Isidro, presidente do júri, admitia que o assunto fosse discutido numa reunião no dia seguinte, sem saber que a RTP já tinha decidido fazer Susana Travassos ocupar a vaga deixada por Diogo Piçarra. A RTP não quis dar mais esclarecimentos ao Observador, preferindo deixar um balanço para mais tarde.
Eurovisão mantém “total confiança” na RTP
Todos estes problemas têm sido acompanhados à distância pela Eurovisão, mas ninguém mostra preocupação. “Temos tido uma grande cooperação com a RTP até agora e temos total confiança nela para produzir um excelente Festival Eurovisão da Canção em maio”, disse ao Observador um representante da União Europeia de Radiodifusão.
Lammert de Bruin, jornalista holandês especialista na Eurovisão, também está descansado: “Depois de Kiev já não tenho preocupações. Pensei que ia ser um desastre por causa dos problemas com os radiodifusores. Grande parte da equipa que supostamente devia organizar o evento desistiu poucos meses antes. Mas a organização na Ucrânia foi perfeita. Se correu bem na Ucrânia, não pode correr mal em Portugal”.
Apesar de Portugal ser estreante nesta coisa de organizar um grande festival de música internacional, Lammert de Bruin confia nas capacidades portuguesas porque ainda tem na memória o sucesso do Euro 2004, por isso “há-de correr tudo bem”. Os problemas com as contagens dos televotos não preocupam o jornalista porque “o televoto e os resultados do júri vão ser supervisionados pela União Europeia de Radiodifusão, por isso não haverá problemas com a RTP”. Lammert de Bruin até desvaloriza esse tipo de polémicas: “Tivemos situações semelhantes noutras finais nacionais, até a Alemanha cometeu o mesmo erro no ano passado”.
Sobre os problemas com o sistema de som que obrigaram Maria Inês Paris a repetir a atuação na segunda semifinal do Festival da Canção, Lammert de Bruin volta a relativizar: é que “a União Europeia de Radiodifusores também é responsável por essas questões técnicas”. O jornalista holandês só pede uma “passadeira vermelha mais espetacular”.
“Ainda bem que estas parecenças foram descobertas agora”
O polémico caso da “Canção do Fim” de Diogo Piçarra já chegou aos ouvidos de William Lee Adams, fundador e editor do site “wiwibloggs”, um dos blogues mais reconhecidos dedicados ao Festival Eurovisão. Em conversa com o Observador, William disse que Diogo Piçarra “foi sábio em sair da competição”: “Se ele tivesse ido à Eurovisão com esta canção, a imprensa internacional iria descobrir as semelhanças com a música clerical. E isso não só abalaria as hipóteses de ganhar o concurso, como iria manchar a imagem que tem em Portugal”.
William Lee Adams admite que “Canção do Fim” de Piçarra e “Abre Os Meus Olhos” são “demasiado parecidas para haver conforto” em apresentá-la na Eurovisão: “Para mim elas são idênticas. Plágio ou não, o Diogo fez bem em desistir. Ainda bem que estas parecenças foram descobertas agora e não depois do Festival da Canção. Assim Portugal pode escolher outra canção que evitará controvérsias e a RTP pode concentrar-se em preparar a melhor Eurovisão de sempre”.
O jornalista madrileno José García Hernández, administrador da página “Eurovision Spain”, partilhou no Twitter a notícia da desistência do cantor português e escreveu: “Adeusinho, Portugal! Acabas de perder uma oportunidade de ouro com o Diogo Piçarra. Que indignação e impotência! Sou ateu máximo com estes momentos”.
Eurovisão: como as televisões internacionais geriram 5 casos de plágio