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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Um português em Pearl Harbor: “Bom, parece que tenho de ir para a guerra"

Em 1942, Charles Trindade foi para os EUA para ser um self-made man, mas acabou a combater os japoneses na II Guerra Mundial. Aos 94 anos, conta como via os kamikazes de perto — e como fazia gelado.

Quando fez 18 anos, Carlos Trindade decidiu que não ia passar nem mais um dia em Pinhanços. Naquela aldeia do distrito da Guarda, pouco ou nada se passava em 1942. O tempo andava de forma vagarosa, os dias eram repetitivos e os horizontes sempre curtos. Era, acreditava o jovem adulto, o oposto do que se passava nos EUA, o país onde ele nasceu Carlos — e onde um dia viria a tornar-se Charles.

Antes dele já tinha nascido Maria dos Anjos e depois surgiu Adelaide. Os três eram filhos de Adriano e Maria São José Trindade emigrantes portugueses em Readville, nos arredores de Boston, que se entregaram ao trabalho como o viram: ele foi para padeiro, ela foi fazer limpezas na casa dos donos da padaria. Enquanto criavam os filhos, juntavam dinheiro. Tanto que, em 1929, o ano da grande recessão, gastaram 50 contos para construir uma casa em Pinhanços, à altura uma das poucas com eletricidade e poço. O plano era voltar e assim o fizeram, em 1935.

Carlos até gostava de Pinhanços. Lá chegado, aos 11 anos, apercebeu-se de que era um privilegiado. Ao contrário das outras crianças, andou sempre calçado. A comida não lhe faltava — o pai continuou a trabalhar numa padaria, mas agora já como patrão — e os estudos também não.

À esquerda, fotografia do casamento de Charles Trindade com Ana Maria. À direita, fotografia com a sua família. Charles Trindade é o rapaz vestido de preto (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Mas, quando chegou à idade adulta, Carlos já não quis mais ser Carlos. “Eu tinha de escolher se era português ou se era americano”, conta. “E percebi que na América tinha mais possibilidades para tudo. Então, disse aos meus pais que queria ir.” A mãe não queria ver o seu único rapaz partir, o pai entendeu que ele o fizesse. “Eles tinham feito o mesmo, agora era a minha vez.” Queria ser um self-made man.

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Aos poucos, começou a fazer-se Charles. Chegado aos EUA, arranjou logo emprego na mesma padaria onde o pai tinha trabalhado, ainda com os mesmos patrões. Pouco tinha mudado, à parte da distribuição do pão — Charles ficou surpreendido quando reparou que o produto final já não era transportado em cavalos, mas numa carrinha. De resto, a padaria continuava a funcionar à noite, com uma mão cheia de homens a amassar e a cozer pão numa cave quente e abafada.

"Eu percebi que na América tinha mais possibilidades para tudo. Então, disse aos meus pais que queria ir. Eles tinham feito o mesmo, agora era a minha vez.”
Charles Trindade

Fora da padaria, as transformações foram mais rápidas. Em 1942, a Segunda Guerra Mundial ia no seu terceiro ano e já estava longe de ser disputada apenas na Europa, onde as tropas de Hitler se expandiam em todas as direções. Em dezembro de 1941, depois do ataque surpresa do Japão à base aérea de Pearl Harbor, no Havai, os EUA de Franklin D. Roosevelt juntaram-se aos Aliados.

Quando voltou aos EUA, passou os primeiros tempos na casa dos patrões. À chegada, ficou impressionado com um dos pedidos que lhe fez o dono da casa. “À noite, tens de ter as persianas todas fechadas, não se pode ver luz nenhuma”, disse-lhe, explicando-lhe que, lá de cima, os kamikaze não pensariam duas vezes antes de se despenharem sobre uma grande cidade com a mesma fúria como o fizeram em Pearl Harbor. “Aquilo ao início fez-me alguma confusão”, conta ao Observador. “Eu não tinha noção do que era a guerra. Em Pinhanços, só de vez em quando é que tínhamos o Século lá em casa e eu não ligava a política. A única coisa de que me apercebia era dos judeus que fugiam da Alemanha e que passavam por lá”, recorda. Na estrada nacional, que vinha desde a fronteira com Espanha, passavam refugiados em direção a Cascais. “Alguns precisavam de dinheiro e então vendiam o que tinham pelo caminho. Havia muitos que vendiam quadros, outros vendiam joias. Mas era mais quadros.”

“Eu não tinha noção do que era a guerra. Em Pinhanços, só de vez em quando é que tínhamos o Século lá em casa e eu não ligava a política. A única coisa de que me apercebia era dos judeus que fugiam da Alemanha e que passavam por lá”
Charles Trindade

Em 1942, como era obrigatório para todos os homens de nacionalidade norte-americana dos 18 aos 65 anos, Charles deu o seu nome e morada às autoridades. No ano seguinte, recebeu uma carta na sua casa em Readville. Estava alistado na Guarda Costeira, que nessa altura passou a ser parte da Marinha. “Disse aos meus pais que ia para a guerra, mandei-lhes uma carta”, resume. Quando lhe perguntamos o que é que lhes escreveu, a memória escasseia. Depois, sete décadas e meia depois, imagina-se a dizer aos pais: “Bom, parece que tenho de ir para a guerra. O que é que eu posso fazer? Tem de ser, lá vou eu”.

Entre gelado de chocolate e kamikazes

Charles Trindade tem 94 anos e vive em Lisboa, para onde se mudou para ficar de vez na década de 1950 — já lá vamos a essa parte. A essa e a outras. Uma de cada vez, ao ritmo vagaroso da memória deste homem que viveu quase um século. Ao longo de tantos anos, há histórias que ficaram irremediavelmente perdidas. Mas também há outras, sobretudo as mais antigas, que Charles Trindade recorda ao detalhe — e quando a memória já não chega para tanto, o nonagenário tem documentos que nos ajudam a ir aonde ele já não consegue. É assim, afundado num canto do seu sofá vermelho e rodeado de papéis, que Charles Trindade nos conta quando, entre 1944 e 1945, combateu na guerra do Pacífico.

Fotografia de Charles Trindade, quando recebeu dispensa da Guarda Costeira após a rendição do Japão, em 1945. Em baixo, os sapatos da filha em cobre (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Depois de um ano de treino e formação em terra, os rapazes do USS Cavalier soltaram as amarras no estaleiro de Bethlehem em Hoboken, Nova Jérsia. Na altura da saída, havia um número anormal de jovens mulheres a acenar ao navio, enquanto este partia para uma viagem que tinha como destino final a base militar de Pearl Harbor, no Havai. No diário de bordo do USS Cavalier, um dos vários documentos que Charles Trindade mantém em seu redor enquanto fala connosco, é explicada tamanha afluência. “Descobriu-se que não era ao navio que todas as raparigas dos escritórios estavam a sorrir e a acenar… era a Cesar Romero”. Isto é, uma das maiores estrelas do cinema norte-americano da época, conhecido como “Amante Latino” e mais tarde, na década de 1960, por fazer o papel de Joker na série “Batman”. Charles Trindade não só se recorda da sua presença, como fala dela com orgulho. “Ele era um grande artista, esse Cesar Romero!”, conta. Quando lhe diz o nome, levanta a voz num sotaque de Boston carregado.

Entre marinheiros, havia uma certeza: cada um à sua maneira, todos tinham sorte. O USS Cavalier não era apenas um navio de guerra capaz de lançar ataques de artilharia, como também servia de transporte para a infantaria. “Os desgraçados da infantaria vinham lá em baixo e nós íamos levá-los até aos combates em terra”, recorda. “Depois também os trazíamos de volta, muitas vezes vinham feridos.” Comparado com isso, a vida de marinheiro parecia mais fácil. As razões são duas, segundo Charles Trindade. “Primeiro, porque não era tão perigoso como na infantaria. Depois, porque a comida é muito melhor na Marinha!”

“Derreter o chocolate por cima da água quente. Juntar a água a ferver e, quando estiver fria, adicionar o açúcar, o leite, a baunilha e depois congelar”
Receita do gelado de chocolate que Charles Tavares preparava a bordo do USS Cavalier, em plena guerra

Quando fala da qualidade da comida, Charles Trindade fá-lo em causa própria, já que a sua principal tarefa a bordo era precisamente a de cozinheiro. “Éramos cinco ou seis e tínhamos de cozinhar para aquela gente toda”, recorda. “Tínhamos panelas de aço inoxidável, todas de 60 litros. Só uma é que era de 50.” Na hora de cozinhar, socorriam-se de um livro de capa mole azul, com o título “The Cook Book Of The United States Navy”. Isto é, o livro de receitas da Marinha norte-americana, que Charles Trindade guardou até, em 2015, o ter doado ao Museu da Marinha, em Lisboa, juntamente com fardas e outros documentos.

“O que eu gostava de fazer era gelado de chocolate”, conta. A receita aparece na página 142, com os ingredientes calculados para 100 homens — o que pouco ajudava, já que o USS Cavalier tinha mais de mil a bordo. Ao todo, eram precisos seis ingredientes para fazer gelado de chocolate: leite gordo, ovos, açúcar, baunilha, chocolate e água a ferver. Eis o modo de preparação: “Derreter o chocolate por cima da água quente. Juntar a água a ferver e, quando estiver fria, adicionar o açúcar, o leite, a baunilha e depois congelar”.

A cópia de Charles Trindade do livro de receitas da Marinha dos EUA, que foi doada pelo próprio ao Museu da Marinha, em 2015 (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Para lá das receitas, o livro dos cozinheiros explica ao detalhe a diferença entre fritar, saltear, estufar, guisar ou cozer. Mais à frente, são elencados os “Erros Comuns no Planeamento de Refeições”. “Refeições preparadas sem base nas necessidades nutricionais de homens” ou “Não criar desejo por comidas adequadas” são dois deles.

A comida, porém, estava longe de ser um elemento central da vida de Charles e dos seus camaradas. Afinal de contas, estavam em guerra. A maior parte dos combates foram travados entre as Ilhas Marianas e as Filipinas, sempre contra os japoneses. Em todas as referências que lhes são feitas no diário de bordo, os inimigos aparecem como “Japs” ou “Nips” — abreviatura de “japoneses” e “nipónicos”.

“Os combates davam medo, claro que davam”, conta Charles Trindade. Recorda-se da vez em que um dos navios que rodeavam o USS Cavalier foi atingido por um avião japonês. “Era um kamikaze”, sublinha. “Eles estavam sempre a tentar cair em cima de nós. Houve uma vez em que conseguiram acertar noutro navio que estava ao nosso lado e mataram 50 dos nossos”, recorda. Na entrada de 10 de janeiro de 1945, lê-se o seguinte no diário de bordo do USS Cavalier: “Saímos da golfo de Lingayen, Luzon, Filipinas. Enquanto saíamos, um avião-suicida Jap atravessou-se à frente do nosso navio, foi atingido pelo nosso fogo e depois despenhou-se no Dupage, PA-41 [outro navio dos EUA]. No dia seguinte, o Dupage, que era o navio principal da coluna a seguir à nossa, enterrou 59 dos seus marinheiros no mar”. Três quartos de século depois, a memória de Charles Trindade falhou apenas por nove.

Pormenor das calças da farda de verão de Charles Trindade na Guarda Costeira dos EUA, em reserva no Museu da Marinha (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Há outro episódio do qual ele também não se esquece. “Estávamos a dormir cá em baixo e de repente levámos com um torpedo”, recorda. “Aquilo abanou logo tudo. As luzes ficaram vermelhas, os alarmes tocavam muito alto, eu subi logo ao meu posto.” Os momentos que se seguiram foram de combate ao submarino inimigo, que desapareceu em pouco tempo. Ficou no ar a ideia de que podia voltar a haver um novo ataque. “A gente sabia lá o que é que podia acontecer!”, diz Charles Trindade.

No diário de bordo, lê-se que o USS Cavalier estava ao largo da baía de Manila, capital das Filipinas, controlada pelo Japão. Passou-se a 30 de janeiro de 1945, às 01h33 da manhã. “O navio abanou violentamente, atirando a maior parte dos homens dos seus beliches, derrubando cacifos, etc.” Os motores deixaram de funcionar e algumas partes do navio ficaram inundadas. “Quase cinquenta homens foram tratados por ferimentos ligeiros. Por milagre, ninguém morreu.” Às 03h00, sob uma lua “muito brilhante”, foram atrelados a um outro navio rebocador norte-americano. No dia seguinte, a 31 de janeiro, chegaram-lhes boas notícias. “Recebemos a informação de que o submarino Jap que nos atingiu foi afundado. Estávamos à espera de que outros acabassem o trabalho. Mais, mais uma vez, tivemos sorte.”

Seguiram-se meses de uma longa espera, em que o USS Cavalier, sem capacidade de navegar por si só, seguiu a reboque pelo oceano Pacífico. A seguir ao ataque no final de janeiro, a primeira paragem foi apenas a 24 de março, nas ilhas Carolinas. A partir desse dia, passou a haver dois jogos de basquetebol a bordo do USS Cavalier todas as noites. O diário de bordo só é retomado a 1 de maio, com a chegada a Pearl Harbor. “Passaram-se mais de três meses e 5 400 milhas marítimas desde que fomos atingidos por um torpedo… E passaram quase oito meses desde a última vez que [os marinheiros] tiveram liberdade para sair.”

Charles Trindade lembra-se de chegar a Pearl Harbor — ou, pelo menos, de um detalhe desse regresso. “Quando voltámos, deram duas garrafas de cerveja a todos. Eu não as bebi, preferi vendê-las por um dólar. Aquilo não me interessava”, recorda.

Os meses seguintes foram passados em terra, com o USS Cavalier a ser transferido de doca seca em doca seca, para serem reparados os estragos provocados pelo torpedo dos japoneses. O objetivo era voltar ao Pacífico o mais depressa possível. Mas, quando o trabalho de reparação já estava quase na fase final, a Segunda Guerra Mundial caiu num dos seus episódios mais sangrentos e também decisivos.

A 6 de agosto, os EUA lançavam uma bomba atómica sobre a cidade japonesa de Hiroxima. Três dias depois, a 9 de agosto, foi a vez de Nagasaki ser atingida por uma bomba semelhante. A 14 de agosto, três meses depois da Alemanha nazi, o Japão rendia-se aos Aliados e a Segunda Guerra Mundial terminava. “O Cavalier juntou-se aos outro navios em Pearl Harbor para celebrar a rendição dos Japs com assobios e toques de sino”, lê-se no diário de bordo.

“Já não é preciso ter o navio escuro todas as noites nem o quartel-general no mar todas as manhãs… AHHHHH, PAZ, é ESPETACULAR”.
Diário de bordo do USS Cavalier a 12 de setembro de 1945, depois da rendição japonesa

A 2 de setembro de 1945, o acordo de paz entre os EUA e o Japão foi assinado a bordo do USS Missouri. “Foi lá o General Douglas MacArthur e do lado dos japoneses era o ministro dos Negócios Estrangeiros. Agora já não me recordo do nome dele, mas sei que era coxo”, conta Charles Trindade. Tratava-se de Mamoru Shigemitsu — que, de facto, devido a um atentado em 1932 por um independentista coreano, tinha uma prótese no lugar da perna direita e andava com uma bengala.

A 12 de setembro, o USS Cavalier sai de Pearl Harbor em paz em direção à América continental. No diário de bordo, lê-se: “Já não é preciso ter o navio escuro todas as noites nem o quartel-general no mar todas as manhãs… AHHHHH, PAZ, é ESPECTACULAR”.

Muito provavelmente, Charles Trindade também suspirava. Não só de alívio, mas também de saudades de Portugal. “Queria ver a família e as pessoas amigas”, responde. Depois de o USS Cavalier atracar em São Francisco, Charles Trindade foi de comboio até à costa Este. Dali, voltou para Portugal. O ano de 1945 estava a terminar quando Charles Trindade voltou a Pinhanços, na Guarda.

Enfim, self-made man

A memória de Charles Trindade tem falhas, já o dissemos. Porém, daquilo que nos conta, os seus anos do pós-guerra demonstram que, enfim, se viria a tornar no self-made-man que aspirava ser quando tinha 18 anos.

No regresso a Pinhanços, conheceu Ana Maria. “Ela tinha um namorado que tinha ido para os Açores e que se meteu para lá com uma açoriana”, explica. “Aquilo correu-lhe mal e então teve de casar com ela e por lá ficou.” Pouco depois, ainda de férias em Portugal, começou a namorar com Ana Maria. Era a filha de um construtor de Pinhanços, conhecido como mestre Amaro. Charles Trindade pediu-lhe a mão da filha e assim a teve. Depois, disse ao sogro que queria ir para os EUA.

— Carlos, tu sabes como a Ana Maria foi criada, não sabes?, perguntou-lhe o mestre Amaro.
— Sei, sim senhor.
— Então garantes que ela nunca vai trabalhar numa fábrica, pois não?
— Não vai, não senhor. Nunca!

Seguiram-se cinco anos nos EUA, em que trabalhou em pastelaria fina. “Fazia croissants para a First National Stores”, diz, referindo-se à entretanto extinta empresa de distribuição alimentar. “Nessa altura, começou a moda dos croissants e eu não fazia outra coisa.”

Em 1950, Ana Maria ficou grávida e nasceu Lídia. Dos tempos de bebé da filha, que tal como o pai foi para os EUA no início da sua vida adulta, Charles Trindade guarda dois sapatinhos, banhados a cobre.

Em 1953, a família mudou-se para Portugal. Mas, desta vez, não foram para Pinhanços. Foi em Lisboa que ficaram — e foi em Lisboa que Charles Trindade conseguiu, enfim, vingar. A oportunidade surgiu através de Martins Ferreira, tio da sua mulher. O “tio Martinho”, como ainda hoje o chama, era dono da drogaria Açoreana, nos números 99 e 101 da Rua da Prata, em Lisboa. Cansado dos negócios, perguntou ao sobrinho se estava disposto a comprar a sua parte do negócio. Em troca, pedia 325 contos. Charles Trindade deu-os e passou a patrão.

Quando voltou para Portugal na década de 1950, Charles Trindade passou a gerir uma drogaria na baixa de Lisboa (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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“Eu não percebia nada daquilo, mas também não era estúpido”, recorda. A drogaria centrava-se em dois negócios: o dos perfumes e o das ervas para fins medicinais. Para Charles Trindade, cedo se tornou claro que as ervas estavam a mais na equação. “Tínhamos a casa cheia de ervas que eu não sabia para que serviam e, além do mais, não davam dinheiro nenhum, nem chegavam para pagar o trabalho”, explica. Então, mandou as ervas fora.

Depois, investiu ainda mais nos perfumes. Além de encher o stock e os armazéns, era autor de uma tática de marketing agressivo. “Íamos buscar as clientes à rua, onde sabíamos que elas estavam. Elas iam às compras na Lanalgo [antigo armazém de roupas, na Rua de Santa Justa, na baixa de Lisboa] e nós íamos dar-lhes a cheirar os nossos perfumes”, conta. A estrela da companhia era o Boalis, perfume português que ia buscar o nome à troca das sílabas de Lisboa. Mas também havia outras marcas. “Sempre que as firmas faziam lançamentos eu ia com a minha mulher ao Ritz para experimentá-los todos”, diz.

“Eu não percebia nada daquilo, mas também não era estúpido.”
Charles Trindade, sobre a drogaria que passou a gerir na década de 1950

O negócio cresceu e os bolsos de Charles Trindade também. No final da década de 1960, construiu uma vivenda no Restelo, uma das primeiras daquele bairro. É lá que recebe o Observador, vestido num fato que dispensa gravata, apoiado numa bengala.

A reforma chegou na década de 1980, quando trespassou o negócio — que continuou a servir como perfumaria até recentemente, quando passou a ser uma entre as várias lojas de souvenirs da baixa lisboeta. Foi também por essa altura que morreu Ana Maria, depois de três décadas de casamento. “Morreu depois de uma operação”, conta. A última vez que a viu viva foi no hospital, onde chegou em cima do fim do horário de visitas. “Ó, Carlos, vieste tão tarde”, lamentou a mulher. “Eles depois mandaram-me embora, disseram que eu tinha de sair e ela ficou-se logo ali”, diz, na única ocasião em que, ao recordar a sua vida, lhe caem lágrimas.

Hoje, Charles Trindade vive devagar. “Não tenho pressa para nada”, diz. Vê televisão, lê jornais e revistas, mas diz que não liga a política. “Isso é lá com eles.”

À saída, convida-nos a fazer uma visita da casa. Exibe com orgulho o tapete de Arraiolos que foi mandar fazer com a mulher àquela vila alentejana ou o rádio-televisão que lhe custou 150 contos numa loja da baixa — e que hoje serve de cómoda para uma televisão moderna. No armário ao lado, guarda alguns livros. Entre este, um destaca-se dos demais. Na lombada de fundo branco, lê-se em letras pretas: “O homem faz-se a si próprio”.

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