A aliança inédita à esquerda alterou profundamente o equilíbrio da democracia portuguesa. O PCP e o Bloco abandonaram o seu papel de guardiões e as poucas instituições independentes que temos estão a ser alvo de um ataque. António Costa tem um poder que nenhum outro primeiro-ministro teve. E por isso estamos em risco de perder as forças que controlam as tentações do poder.
As ruas estão limpas de manifestações, as greves dos transportes e da função pública desapareceram, o Tribunal Constitucional só teve de se preocupar, até agora, com as declarações de património da fugaz ex-administração da CGD, os senadores que fazem opinião na reforma estão na sua maioria menos críticos e as relações entre Belém e São Bento dificilmente poderiam ser melhores. Parece que Portugal vive o seu melhor período de paz social das últimas quatro décadas, tal como o seu défice é “o mais baixo” desde o 25 de Abril.
Parece. Porque, por baixo desta, paz assistimos à acumulação de tensões e a um crescendo de atitudes de intolerância contra os que se atrevem a criticar a política económica e financeira ou, ainda mais corajoso, contra os que vão contra o pensamento dominante – com alguma dessa intolerância a disseminar-se nas redes sociais, a coberto do anonimato. Paralelamente, estão a ser reabertas feridas, que se pensavam saradas, e que, no passado, só não tiveram consequências graves para Portugal graças a Mário Soares.
As tentativas de interferência e as violentas criticas a entidades independentes como o Banco de Portugal e o Conselho das Finanças Públicas, não sendo monopólio deste Governo mas sendo hoje mais perigoso, são dois exemplos recentes, no domínio económico-financeiro, dessa incapacidade do Governo de aceitar limites ao seu poder ou simplesmente alertas para os riscos das políticas que está a aplicar. E o também recente episódio de censura, da conferência de Jaime Nogueira Pinto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), mostrou o espaço que está a ganhar quem desrespeita os princípios da democracia e da liberdade de opinião. Um episódio que, sendo grave em si, é ainda mais assustador por acontecer numa universidade onde é suposto tudo se poder dizer para tudo se poder analisar, estudar e criticar.
A paz social e um governo ineditamente apoiado pela esquerda que deviam, no seu conjunto, criar um ambiente de liberdade, estão pelo contrário a gerar crispação e, mais grave, a mostrar que existe, já, quem tenha medo de se opor, criticar ou opinar contra o que são as convicções da maioria que nos governa. O que traz inevitavelmente à memória os tempos do Período Revolucionário em Curso (PREC), na versão do século XXI do politicamente correcto.
O Presidente da República, o primeiro-ministro, o PS e os líderes dos partidos que apoiam o Governo querem acreditar – ou querem-nos fazer acreditar – que tudo corre bem, que depois da era da crispação do tempo do Governo de Pedro Passos Coelho entrámos na era do paraíso, da descrispação e da prosperidade económica. O violentíssimo debate quinzenal desta quarta-feira 8 de Março, pautado por insultos, revela bem como estamos afastados desse paraíso. Pode dizer-se que é normal, esta crispação, uma vez que se estão a aproximar eleições – as autárquicas – e é preciso contrastar as diferenças. Mas é difícil encontrar na memória recente tanta agressividade entre os líderes dos dois grandes partidos do regime.
Por razões que o tempo irá revelar – porque nada resiste ao teste do tempo – António Costa tem conseguido controlar a esmagadora maioria das instituições e das pessoas que, ao longo dos anos, foram tecendo criticas aos sucessivos governos. O facto de ter o apoio do PCP e do Bloco de Esquerda, com os quais todos nós sempre contamos como críticos e escrutinadores da democracia, da liberdade, do cumprimento da lei e da ética, dá a António Costa um poder que nenhum outro primeiro-ministro teve em democracia. O regime, em contrapartida, fica ainda mais vulnerável a abusos de poder.
O PSD e o CDS, como partidos de poder, não conseguem desempenhar o papel que tinham os comunistas e bloquistas, muitas vezes até moral, sem que a seguir venha o argumento: “então e vocês, quando estiveram no Governo…”. Como o PS não o conseguiria se, por absurdo, a situação fosse inversa. Neste quadro, com a aliança do PS à esquerda e com o PCP e o BE cada vez mais condicionados por António Costa, o regime perdeu um pilar fundamental de escrutínio da governação e de defesa das liberdades. Comunistas e bloquistas assumem-se agora também como poder e, como todos os poderes, pressionam e limitam as liberdades.
O que nos pode restar? Quem pode impedir que este Governo se transforme numa espécie de “o Estado sou eu”?
Uma democracia moderna, dir-se-á, dispensa partidos com o papel de guardiões porque, além dos tribunais, conta com as entidades independentes do poder político e com os meios de comunicação social. Mas Portugal ainda precisava, e muito, do papel que esses partidos desempenhavam. Hoje até ainda mais do que no passado, pelo estado em que estão a justiça e os meios de comunicação social e pelas ameaças que enfrentam as entidades técnicas independentes.
O poder judicial vai passar por um teste fundamental à sua credibilidade com a “Operação Marquês” e a justiça em geral funciona mal. Os meios de comunicação social, em Portugal como nos restantes países ocidentais, vivem uma das mais graves crises da sua história, o que faz deles alvos fáceis de quem quer aumentar o seu poder reduzindo o escrutínio do ‘media’ ao poder. As entidades técnicas, independentes do poder político, ou sempre foram frágeis, – como acontece com a esmagadora maioria dos reguladores – , ou quando são fortes têm vivido, nos últimos tempos, sob ataque constante do Governo ou dos partidos que o apoiam, numa actuação que terá como resultado, desejado ou não, a sua descredibilização.
É todo este quadro, de ausência dos partidos de escrutínio e de fragilidade ou fragilização das outras instituições, que faz com que a situação que hoje vivemos seja muito diferente daquelas a que assistimos no passado, quando governos como os de Aníbal Cavaco Silva, José Sócrates ou Pedro Passos Coelho se queixaram ou tentaram condicionar os poderes que limitavam os seus poderes ou os escrutinavam.
Défice baixou à custa de “medidas insustentáveis”, diz Teodora Cardoso
É todo este quadro que torna especialmente perigoso o ataque do Governo, e dos partidos que o apoiam, ao Banco de Portugal e ao Conselho das Finanças Públicas. É por todas estas razões que Carlos Costa se deve manter à frente do Banco de Portugal, com uma equipa que seja basicamente escolhida por si. E que Teodora Cardoso deve contar com as pessoas que quer no seu Conselho. Mais: quer o Banco de Portugal como o Conselho das Finanças Públicas têm de se sentir livres para tecerem as criticas que entenderem.
Resta-nos esperar que o Presidente da República, actuante como é, compreenda o tempo excepcional que vivemos.
Não estamos perante simples queixas de “forças de bloqueio” da era de Cavaco Silva, combate contra os privilégios como aconteceu com Sócrates ou criticas ao Tribunal Constitucional no tempo de Passos Coelho. Nesses tempos, a CGTP estava viva e o PCP e o Bloco escrutinavam os governos sem dó nem piedade – quem acompanhava a economia lembra-se como era importante ouvir as análises dos comunistas aos Orçamentos e como se devia estar sempre atento ao que afirmava o Bloco, primeiro com Francisco Louçã e depois com Catarina Martins. E o Banco de Portugal, mesmo que com leituras erradas que fez, ia tendo análises e relatórios que nos alertavam para os problemas que se estavam a criar na economia.
Com o PCP e o Bloco no poder, e com o PSD e o CDS limitados por terem sido poder, é mais do que nunca necessário ter instituições independentes, com a obrigação de fazer alertas para aquilo que consideram ser erros de política económica e financeira, mesmo que mais tarde venham a estar erradas. O Banco de Portugal, na era de Vítor Constâncio, cometeu, por exemplo, o erro de considerar que a acumulação de dívida se resolveria por si, sem necessidade de qualquer política anti-cíclica. Mas, mesmo cometendo erros, foi importante ter sido livre para errar, porque foram mais as vezes que acertou, nos alertas, do que aqueles em que se enganou. E se quando teve essa liberdade se cometeram erros, imagine-se o que nos poderá acontecer se estiverem controladas pelo Governo.
Ter derrubado o muro que impedia a participação dos partidos de esquerda na governação só será uma vitória para Portugal se, com isso, não se arrastar todos os outros poderes que impedem o totalitarismo, o exercício do poder sem escrutínio. Sim, é uma perspectiva demasiado forte neste momento, mas que fica como um alerta para os perigos que corremos.
António Costa não pode dominar Portugal como dominou toda a oposição que, durante anos, existiu, saudavelmente, na Câmara de Lisboa. Todos desejamos que a força esteja com o Governo, sem bloqueios mas com forças que o possam livrar das tentações do poder.