As eleições alemãs do passado domingo confirmam três tendências que, em conjunto, apontam para uma mudança estrutural no sistema político-partidário na Europa. O crescimento exponencial dos partidos de protesto, até aqui tolerados em democracia pela sua insignificância parlamentar; a perda de poder dos partidos de centro democrático; e um duríssimo golpe nos partidos de esquerda moderada, que têm sido os principais castigados pela onda de populismo extremista e pela emergência de movimentos independentes no centro do espectro político. Se os primeiros dois fenómenos têm sido estudados exaustivamente, o último parece-me insuficientemente estudado.
Como não podia deixar de ser, o regresso da direita radical (AfD) ao Bundestag, logo com mais de 80 deputados, criou um intenso burburinho. Nada parecido acontecia desde 1945. A explicação, parece-me, encontra-se na tendência europeia de votar em partidos de protesto, que se declaram antieuropeístas, antiglobalização e anti-imigração, especialmente na Alemanha, que acolheu mais de um milhão de refugiados nos últimos três anos. Não vejo a sombra do neonazismo a cair sobre Berlim, ainda que possa haver infiltrações de indivíduos mal-intencionados.
No que respeita ao encolhimento dos partidos de centro, este deve-se, fundamentalmente, a mudanças sociais profundas – sim, mesmo na Alemanha – que se tornaram muito mais visíveis a partir da crise financeira que já leva quase uma década. Se num primeiro momento as populações confiaram nos partidos do arco do poder para lhe devolver o “Sonho Europeu” – a globalização trazia prosperidade e o estado encarregava-se de a distribuir o mais equitativamente possível, de modo alargar a classe média para números record – num segundo momento (os últimos anos) a ideia de desigualdade instalou-se mais ou menos permanentemente. Primeiro nos Estados Unidos (ainda que o Sonho Americano tenha pressupostos diferentes que não cabe debater aqui) e agora na Europa, desencadeando uma onda de nacionalismo a que os partidos de centros, focados na resolução de problemas através da União Europeia, não conseguem responder.
A questão mais complexa é, então, porque é que a esquerda democrática é mais castigada que a direita? No início dos anos 2000 os partidos “socialistas” (as aspas são porque o verdadeiro socialismo é outra coisa) e sociais democratas eram governo em 10 dos 15 países da UE. Hoje restam cinco em 28, e faltam as eleições na Áustria e na Hungria, já em outubro, onde a probabilidade de ganharem é quase nula. Pior, vários partidos da esquerda democrática praticamente sucumbiram nas últimas eleições. É o caso do PSOE (Espanha), do PASOK (Grécia), do PS (França), do PvdA (Holanda) e do SDPL (Polónia). Como em todos os processos complexos, as razões são múltiplas. Seguem-se as quatro que me parecem fundamentais.
A primeira, é a aproximação quer da direita, quer da esquerda, ao centro. Como explica o filósofo francês Pierre Manent, a partir dos anos oitenta, as identidades e bases dos partidos (a nação à direita e as classes mais desfavorecidas à esquerda) diluíram-se no tal sonho europeu. A UE permitia uma espécie de enriquecimento estável e estava assente no princípio da redistribuição, por países e pessoas, da riqueza gerada no continente. A direita cedia à social democracia (já mais ou menos naturalizada na Europa ocidental) e a esquerda cedia ao liberalismo económico (ainda que fosse um tipo de capitalismo de “terceira via” protagonizado por Bill Clinton e Tony Blair – uma espécie de meio caminho entre a desregulação dos mercados e a regulação da redistribuição). Assim, o eleitorado alternava entre uns e outros, sabendo que o essencial das políticas estaria assegurado.
O que nos leva à segunda razão: a direita democrática viu-se em maus lençóis para convencer as opiniões públicas de que identidade nacional permaneceria apesar da vigência da vida supranacional (daí a preponderância da esquerda nos anos 1990, início dos 2000). Assim, a esquerda tornou-se guardiã de dois elementos fundamentais: a manutenção do estado providência que protegeria os mais desfavorecidos pela globalização, e a liderança do multiculturalismo, aqui entendido no duplo sentido da tolerância pluralista e das políticas de integração de imigrantes, vindos de fora da Europa. Ora são estes os mais contestados elementos desde que a crise tomou conta da Europa. E se há quem diga que o pior já passou (em termos financeiros), a herança profunda desta década terrivelmente difícil foi precisamente a falência destas duas políticas e a dificuldade de encontrar novos caminhos para as resolver.
Finalmente, dos anos 1980 até hoje, o tecido social das sociedades ocidentais transformou-se completamente. Por um lado, a ideia de “classe trabalhadora” esbateu-se com o tal suposto alargamento da classe média (deixando a social democracia órfã da sua base) e por outro, a ideia do Nós (povos nativos europeus) e os Outros (imigrantes) ganhou força desmedida, devido a questões demográficas (o número mais elevado de filhos dos imigrantes), sociais (as comunidades, por uma razão ou por outra, não se integraram nem se assimilaram), e de segurança (quer no que respeita à perceção de que a autoria dos crimes é mais frequente nas populações imigradas ou nacionais de segunda ou terceira geração, quer pela associação do islamismo aos ataques terroristas que aumentaram exponencialmente na Europa). E se estas tendências já têm décadas, escolheu-se varrê-las para debaixo do tapete sob a égide do politicamente correto.
O resultado do esgotamento das políticas sociais e de integração, enquanto íamos assobiando para o lado como se não fosse nada connosco, está à vista. A esquerda moderada, uma força política fundamental para o bom funcionamento da democracia, perde votos, muitos e muitos, para partidos de todos os lados do espectro político. Especialmente para os extremos que aliciam os mais castigados pela crise com novas políticas sociais e de preferência nativista com carimbos nacionais.
Perante os resultados das eleições alemãs, confirma-se que o futuro nos reserva um de dois cenários: ou a esquerda democrática europeia faz a sua travessia no deserto e se reinventa nas políticas internas e externas para volta a estar em condições de disputar o poder com a direita (que se vai aguentando por não estar tão colada às políticas desgastadas descritas acima, mas que também precisa de reavaliar as suas posições políticas), ou deitamos fora de vez os rótulos esquerda e direita e limitamo-nos a moderados versus radicais. E, neste segundo cenário, perdemos todos. Os radicalismos, sejam de que espécie forem, prejudicam gravemente a saúde da democracia.
Investigadora no IPRI