A propósito da ida de Durão Barroso para a Goldman Sachs, vários cronistas (entre outros, André Macedo, Santos Guerreiro, Daniel Oliveira, Adão e Silva, Marques Lopes, Soromenho Marques, Rui Tavares, João Miguel Tavares e podia continuar) avaliaram de uma forma muito negativa os mandatos do antigo PM português à frente da Comissão Europeia. Usaram termos como “desastroso”, “trágico”, “retrocesso civilizacional”, e outras palavras semelhantes. Mas nenhum deles – repito, nenhum – foi capaz de desenvolver argumentos sérios que justifiquem as críticas.
A crítica é inteiramente legítima, e há certamente razões para criticar decisões tomadas por Barroso em Bruxelas. O problema está no modo como a crítica é feita. Quando se afirma que “Barroso foi o pior presidente da Comissão Europeia desde Delors”, é preciso explicar porque se diz isso. Não basta dizê-lo. Estes cronistas limitaram-se a fazer uma afirmação. Nuns casos, será por antipatia, noutros por discordâncias. Mas desconfio que na maioria dos casos terá sido por ignorância, por preguiça, ou por ambas. É muito fácil criticar. Dá mais trabalho explicar. Acho que a avaliação dos mandatos de Barroso em Bruxelas é uma questão importante e deve ser discutida de um modo sério.
Essa avaliação, no meu caso, tem uma dimensão pessoal, que aliás assumo com todo o gosto. Trabalhei mais de seis anos com Barroso na Comissão como seu assessor. Foi um trabalho que fiz com um grande orgulho e onde aprendi muito sobre a política em geral, a política europeia e sobre o funcionamento da Comissão. Nunca perdi a minha independência intelectual. Quem trabalhou comigo, sabe que a minha atitude desalinhada (e por vezes impaciente) nunca me abandonou. Também por isso gostei bastante do meu trabalho ao lado de Barroso, de quem de resto fiquei amigo. É verdade, este também é um artigo onde defendo um amigo de ataques injustos. Mas é sobretudo um artigo de quem tem alguma experiência sobre a União Europeia.
Há dois temas que aparecem invariavelmente nas críticas a Barroso: a resposta à crise financeira e a subordinação à Alemanha. Mais uma vez, no caso dos cronistas mencionados, limitam-se a fazer as críticas. Nunca as explicam, nunca dizem quais seriam as alternativas possíveis e nunca incluem nas suas avaliações os limites à actuação da Comissão.
Na questão da resposta à crise financeira, podemos começar pelo poder da Comissão. Quando foi necessário ajudar financeiramente países como a Grécia, a Irlanda, Portugal e Espanha, tornou-se claro que a Comissão estaria condenada a desempenhar um papel secundário. A Comissão não tem recursos próprios. Ou seja, não tinha dinheiro para ajudar os países que precisavam. O dinheiro necessário estava em Berlim, em Paris, em Haia, em Viena, em Helsínquia e nas outras capitais. Numa crise financeira, quem tem dinheiro, manda. Aliás, os governos muito rapidamente enviaram essa mensagem para a Comissão e para o Parlamento.
Isto não tem nada a ver com Barroso. Seria o mesmo com qualquer outro presidente da Comissão. Antes de se criticar, é necessário entender o que é a Comissão e quais são os seus poderes. A Comissão não é um governo europeu e o seu presidente não é um PM. Por isso, não podem ser tratados como tal.
Recordo-me de um debate no Parlamento europeu entre um deputado, grande defensor da restruturação das dívidas públicas dos países do sul, e um ministro finlandês. O deputado disse, com aquela linguagem exaltada de um activista, que sentia vergonha pela recusa em restruturar as dívidas dos gregos, dos italianos e dos portugueses. O ministro finlandês respondeu, com alguma diplomacia, que os contribuintes finlandeses tinham emprestado dinheiro e discordavam do senhor deputado.
Reconheço que as dívidas da Grécia, da Itália e de Portugal são um enorme problema e julgo que a restruturação será inevitável (e já houve restruturações no passado), mas a maioria das populações dos os países credores são contra as restruturações das dívidas. Podemos discordar, mas temos a obrigação de reconhecer o problema, sobretudo quando avaliamos a actuação dos governos europeus e da Comissão.
A reforma que poderia ter um maior impacto na resposta à crise financeira seria uma maior integração orçamental e fiscal para acompanhar a integração monetária. Dito de outro modo, se a moeda é comum, então pelo menos parte das dívidas deveria ser comum e deveria ser paga por um orçamento comum. A versão mais mediática desta ideia foi a proposta para se introduzir “Eurobonds”. Para um académico ou mesmo para um parlamentar europeu, é fácil e popular escrever ou fazer discursos a defender a introdução de “Eurobonds”. Mas um presidente da Comissão Europeia tem que avaliar as condições políticas antes de fazer certas propostas. Caso contrário ninguém o leva a sério. Há aqui um ponto sobre a actividade política em geral que deve ser sublinhado: a popularidade por vezes é inimiga da credibilidade.
A verdade é que Barroso esperou pelo momento adequado e a sua Comissão propôs a introdução de “Eurobonds” (os “stability bonds”), em Novembro de 2011, o que aliás causou um conflito político com Berlim. A introdução de “Eurobonds” teria inevitavelmente consequências. Antes de mais, levaria à perda de soberania por parte dos países do Euro. Se parte da dívida passasse a ser europeia, então a soberania orçamental também seria transferida para Bruxelas. Estão os povos europeus preparados para tal mergulho na direção do federalismo? Eu acho que não.
Mas quem defende a europeização da dívida pública, tem que estar preparado para o federalismo europeu. Não podemos é ser federalistas para receber, e depois evocar a soberania nacional quando é necessário cumprir.
Uma proposta como a dos “Eurobonds” não exige apenas mais integração, tambem necessita de uma maioria de governos a favor da proposta. Chegamos aqui ao poder da Alemanha. Uma situação de hegemonia política será sempre um problema na União Europeia e condicionar todos os líderes politicos, incluindo o presidente da Comissão. Apesar disso, em situações decisivas Barroso contrariou a Alemanha. Por exemplo, no primeiro mandato, as políticas de combate às alterações climáticas foram propostas pela Comissão contra a Alemanha. Regressando aos “Eurobonds”, os governos franceses gostam de dizer que os querem (sobretudo quando visitam os países do sul) e, tendo em conta a oposição da Alemanha, o apoio da França seria indispensável. Mas quando chegou a hora da verdade, Sarkozy colocou-se ao lado de Merkel contra a proposta de Barroso. Essa é a verdade. É lamentável que os nosso cronistas, que têm tantas certezas sobre tudo, ignoram este episódio da presidência de Barroso.
Por um lado, Paris não quer mais integração nem novos tratados. Mas, por outro lado, os governos franceses tudo têm feito para manter a ficção da liderança do eixo Paris-Berlim. E continuarão a fazer. A França não aceitará o reforço da Comissão para limitar o poder da Alemanha. Seria o reconhecimento do poder da Alemanha e da incapacidade francesa de o travar. A França faz parte do problema do poder da Alemanha. Lida com o problema tentando manter a liderança do eixo Paris-Berlim, sem preceber que apenas reforça o poder da Alemanha.
Sarkozy lidou com o problema alemão criando uma ficção chamada “Merkozy” (no essencial Hollande segue a mesma estratégia). Falhou. O actual presidente da Comissão lida com o poder da Alemanha reforçando a aliança com o Parlamento Europeu. Não adianta nada, porque o Parlamento Europeu é dominado pelos partidos alemães. Para limitar o poder de uma alemã (Merkel) reforça o poder de vários alemães.
Barroso seguiu uma estratégia diferente. Numa UE onde o poder da maior potência do centro está a aumentar, é necessário dar poder e influência às periferias. Barroso foi durante dez anos o presidente das periferias da UE. Aliás foi o único na história da integração europeia. Barroso, “o alemão”, segundo os nossos cronistas, foi sempre o presidente apoiado por todos aqueles, na Europa Central, na Escandinávia, no Reino Unido e na Irlanda, no sul, que desconfiam do poder da Alemanha. E os que mais atacaram Barroso foram os países do núcleo fundador da União.
Nos momentos em que a Grécia esteve mais isolada, foi Barroso que a defendeu em Bruxelas. Quando todos queriam punir a Irlanda, por causa dos excessos dos seus bancos, foi Barroso que a defendeu. Durante dez anos houve em Bruxelas uma sensibilidade e uma voz para os países periféricos e pequenos. Isso acabou no dia em que Barroso abandonou Bruxelas. A Espanha foi dos países que melhor percebeu isso e Zapatero (um socialista) foi um dos primeiros chefes de governo a apoiar a reeleição de Barroso para o segundo mandato.
Uma coisa posso garantir aos cronistas críticos de Barroso e aos leitores. Se ele fosse hoje presidente da Comissão Europeia, ninguém estaria a discutir sanções contra Espanha e contra Portugal.