Creio que deve ser bem-vindo o debate que tem ocorrido entre nós sobre a relação intelectual entre comunismo e fascismo. É um dos raros debates sobre teoria política que adquiriu alguma permanência na nossa comunicação social. Esta raridade pode ser preciosa. Mas é também seguramente muito reveladora.
Um dos aspectos mais reveladores — e até certo ponto intrigantes — reside na surpresa, até indignação, de tantos comentadores perante a alegada “novidade”: como é possível “inventar” uma comum genealogia intelectual entre comunismo e fascismo? Na verdade, este tem sido o motivo principal da indignação: a hipótese de existir uma comum origem intelectual entre fascismo e comunismo (mais, com efeito, do que a questão bizarra de saber qual deles veio primeiro, se o ovo se a galinha).
Receio ter de recordar que não existe nada de novo na asserção de que são comuns as origens intelectuais do comunismo, do fascismo e, já agora, do nacional-socialismo nazi. Essa era e é a visão clássica sobre os totalitarismos na cultura política dos povos que mais lhes fizeram frente: os povos de língua inglesa.
Infindável bibliografia podia ser citada para ilustrar essa denúncia das raízes comuns do comunismo e do fascismo. Três livros são no entanto incontornáveis: The Good Society, de Walter Lippmann, em 1938; O Caminho para a Servidão, de F. A. Hayek, em 1944; e A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, de Karl Popper, em 1945 (os dois últimos foram recentemente publicados entre nós, pelas Edições 70, e tive o privilégio de os prefaciar).
Mas, em termos directamente políticos, foi Winston Churchill quem no século XX melhor exprimiu essa comum acusação contra os totalitarismos. Churchill foi anti-comunista feroz desde pelo menos a revolução soviética de 1917 e, como se sabe, anti-nazi feroz desde os primeiros sinais do nazismo alemão. Em 1924, quando abandonou a bancada Liberal para regressar à Conservadora (de onde saíra em 1904), apresentou como principal motivo a crescente hesitação dos liberais face ao colectivismo de esquerda.
No início da guerra civil em Espanha, em 1936, declarou no Parlamento que se recusava a tomar partido por qualquer dos lados, que acusou de serem igualmente despóticos. Ao longo da década de 1930, fez inúmeros discursos contra os dois totalitarismos, comunista e nacional-socialista. Após a II Guerra, em 1946, foi o primeiro a denunciar publicamente a “Cortina de Ferro” soviética.
Em 1932, vendo crescer os dois movimentos totalitários no continente europeu, Churchill decidiu começar a escrever Uma História dos Povos de Língua Inglesa. Só conseguiu terminar a obra (em quatro volumes) em 1956. Foi o último dos seus mais de 40 livros. E foi o que demorou mais tempo a escrever. Mas nunca desistiu de o concluir. Numa carta a um dos seus colaboradores em 1938, observou:
“No essencial, o tema central do livro está a emergir: o crescimento [entre os povos de língua inglesa] da liberdade e da lei, dos direitos do indivíduo, da subordinação do Estado às concepções morais fundamentais da comunidade. […] Por isso eu condeno a tirania, qualquer que seja a versão em que se apresente. E isso tem obviamente aplicações directas na situação política actual”.
Recordemos, apenas a título de exemplo contrastante, as palavras de Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848:
“A abolição [da sociedade burguesa] é chamada pelo burguês como abolição da individualidade e da liberdade. Com toda a razão. O que temos em vista é a abolição da individualidade burguesa, da independência burguesa e da liberdade burguesa. Nas presentes condições de produção burguesas, liberdade significa comércio livre, liberdade de vender e de comprar. […] O proletariado usará a sua supremacia política para retirar gradualmente todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante.”
Oiçamos agora Mussolini, no seu artigo de 1932 na Enciclopédia Italiana, sobre “A doutrina do fascismo”:
“A concepção fascista é a favor do Estado; e é a favor do indivíduo na medida em que este coincide com o Estado, que é a consciência e vontade universal do homem na sua existência histórica. […] O fascismo é a favor da liberdade, da única liberdade que pode ser real, a liberdade do Estado e do indivíduo no seio do Estado. […] Por isso, para o fascista, tudo está no Estado e nada de humano ou espiritual existe, muito menos tem valor, fora do Estado. Neste sentido, o Fascismo é totalitário e o Estado Fascista — a síntese e unidade de todos os valores — interpreta, desenvolve e dá força à totalidade da vida do povo.”
Estas breves passagens de Marx/Engels e Mussolini recordam um dos pontos cruciais que uniu os totalitarismos do século XX: o culto do Estado, do poder ilimitado do Estado. Contra esse culto do Estado, disse Churchill em 1938:
“Não temos nós também uma ideologia própria — se tivermos de usar essa palavra horrível, “ideologia” — na liberdade, numa Constituição liberal, no governo democrático e Parlamentar, na Magna Carta e na Petição de Direitos?”
Como procuro argumentar mais detalhadamente num livro que será dentro de dias publicado pela Routledge de Londres (The Anglo-American Tradition of Liberty: A view from Europe), não penso que a principal questão que levou Churchill a opor-se ao comunismo e ao nazismo tivesse sido em primeiro lugar uma questão de “doutrina ideológica”.
O que chocou Churchill foi precisamente a ambição revolucionária — tanto do nacional-socialismo e do fascismo, como do comunismo — de reorganizarem a vida social a partir do Estado, impondo aos modos de vida existentes um plano dedutivo, baseado numa ideologia total, um esquema de perfeição. No cabo Hitler, no ex-socialista Mussolini, e nos ideólogos comunistas Lenine e Estaline, o aristocrata Winston Churchill viu o fanatismo grosseiro daqueles que queriam destruir todas as barreiras ao exercício da vontade arbitrária: barreiras do Governo Constitucional, da religião judaico-cristã, do cavalheirismo, das liberdades cívicas, políticas e económicas, da propriedade privada, da família, e de outras instituições civis descentralizadas.
Neste, como aliás em muitos outros aspectos, Churchill foi sobretudo um representante e um porta-voz da cultura política dos povos de língua inglesa. Por esse motivo, os partidos comunistas nunca elegeram um único deputado nacional nos EUA, na Austrália ou na Nova Zelândia. No Canadá, terão eleito um (Fred Rose, mais tarde detectado como espião soviético). Em toda a história parlamentar do Reino Unido, conseguiram eleger cinco deputados (dois em 1922, um em 1935, dois em 1945), num Parlamento com mais de seiscentos lugares. Quanto aos partidos fascistas, nunca elegeram um único deputado nacional naqueles países.
Eis, creio eu, o que poderia constituir um tema verdadeiramente intrigante entre nós…
António Barreto: Política e Pensamento é o título do mais recente livro de Maria de Fátima Bonifácio. Trata-se de uma excelente biografia intelectual e política do “melhor Primeiro-Ministro que Portugal nunca teve”, como referiu Rui Ramos na tocante apresentação da obra na passada quinta-feira em Lisboa. Também é, e talvez sobretudo, uma inspiradora conversação entre biógrafa e biografado, duas pessoas livres, destemidas, irremediavelmente independentes — mas só aparentemente solitárias.