(Texto lido na apresentação do livro Quinta feira e outros dias, de Aníbal Cavaco Silva, que teve lugar no Centro Cultural de Belém a 16 de Fevereiro de 2017)
Quinta feira e outros dias
Aníbal Cavaco Silva
Porto Editora, 2017
Agradeço ao Prof. Cavaco Silva a distinção do convite para apresentar este primeiro volume de memórias presidenciais, neste local simbólico do Centro Cultural de Belém, cuja construção se lhe deve, onde apresentou as suas duas candidaturas presidenciais, e onde celebrou as vitórias eleitorais de 2006 e 2011.
Trata-se, como o próprio autor explicita, de uma prestação de contas, não de um ajuste de contas. Este livro não é escrito contra ninguém.
Na primeira parte, traça-se um percurso biográfico, ao jeito de balanço, que culmina com o desempenho das mais altas funções de Estado, e onde se explicam as razões que levaram o autor a envolver-se na vida política e a desempenhar as relevantes funções que exerceu.
A segunda parte, que constitui o maior corpo do livro, narra, com um detalhe e pormenor dignos de registo, e com o rigor típico do seu autor, os encontros do Presidente com o Primeiro-Ministro José Sócrates, para mostrar em que medida é possível uma cooperação institucional de um presidente informado e preparado, conhecedor dos dossiers e dotado de vasta experiência governamental, com o governo, através das reuniões semanais com o Primeiro-Ministro. Este é um livro sobre os poderes presidenciais, e muito concretamente sobre um dos chamados poderes normais, que alguns consideram menores, que o Prof. Cavaco Silva demonstra ser um relevante instrumento de actuação presidencial. O que aqui se evidencia são as condições que, em coabitação, possibilitam a um Presidente exercer a sua influência.
Na terceira e última parte, apresentam-se os roteiros presidenciais pelo país, as causas que mais motivaram o empenho do Presidente Cavaco Silva.
1. Estamos perante um livro histórico. Desde logo porque o seu autor é um personagem de primeira grandeza da história recente de Portugal, que conseguiu feitos inigualáveis: o político que mais eleições venceu em democracia – nada menos que cinco -, que maior número de maiorias absolutas conseguiu – quatro, duas das quais exclusivamente partidárias (a primeira vez que um partido atingiu a maioria em eleições legislativas) -, que durante mais tempo esteve ao leme deste país: 10 anos como Primeiro-Ministro, no tempo da convergência europeia, 10 anos como Presidente da República, nos anos da divergência com a Europa.
Eleito Presidente, das duas vezes à primeira volta, é o primeiro a sê-lo exclusivamente pelo centro-direita, com um projecto que não pretendia abrir caminho a uma sociedade socialista, como o prefácio da Constituição consagra desde 1976. O que lhe valerá a veemente oposição daqueles que pensavam ser a presidência exclusiva da esquerda, e a acusação de não cumprir a Constituição por não demitir um governo que não rumava nessa direcção.
Um Presidente que, promovendo a estabilidade, permitiu e estimulou que, pela primeira vez, uma coligação governamental acabasse a legislatura.
A sua brilhante carreira política não começou nas juventudes partidárias ou nas distritais, mas no desempenho de funções ministeriais. Sá Carneiro foi buscá-lo à Universidade, onde se entregava ao estudo e ao ensino, à qual regressou terminados os mandatos governativos, e que permanecerá sempre a razão da sua independência. Tornou-se Ministro das Finanças da Aliança Democrática. E foi com o património desse desempenho que se apresentou um dia candidato à direcção do PSD, e assumiu a liderança do partido e do país, nos primeiros anos da adesão às comunidades europeias.
Como Primeiro-Ministro conduziu o governo em tempos de grande transformação mundial: a queda do muro de Berlim e do apartheid, o desaparecimento do mundo bipolar, os começos da globalização, o Tratado de Maastricht e a criação da União política e monetária. Conseguiu negociar a decisiva revisão da Constituição, que abriu Portugal à iniciativa privada, na economia, nos meios de comunicação social, na saúde, na educação, e lhe permitiu atingir taxas de crescimento superiores às europeias. Reformou a legislação agrária, flexibilizou a legislação laboral, aumentou a escolaridade obrigatória, alterou o sistema fiscal, adaptou as Forças Armadas às novas funções e missões, lançou as grandes auto-estradas, atraiu grandes investimentos estrangeiros. Fez aprovar leis estruturantes fundamentais. Empreendeu uma das maiores modernizações do país, para tanto canalizando os fundos estruturais.
Entre os anos da chefia do governo e os da chefia do Estado, Portugal aderiu à moeda única, e assistiu ao grande alargamento da União.
Como Chefe de Estado, assistiu, a partir de Arraiolos e não de Bruxelas, ao adensar das nuvens nos céus europeus, às fugas em frente dos líderes europeus. Assistiu ao desencadear da crise financeira mundial, e suas consequências económicas e sociais. A sua preparação académica no domínio da economia e das finanças públicas, permitiu-lhe seguir com especial responsabilidade os anos difíceis da crise.
Teve no primeiro mandato uma coabitação com um governo maioritário monopartidário e depois com um governo minoritário do mesmo partido, que levou o país as portas da bancarrota e teve, por isso, que pedir a intervenção externa, a que se seguiu o governo de coligação que enfrentou a austeridade imposta pela troika. Foram anos de grande aperto e dificuldade.
A Presidência não se constituiu, no seu tempo, em pólo de oposição, mas em factor de cooperação estratégica institucional. Não se cansou de chamar a atenção para os graves riscos das orientações governamentais seguidas nesses anos, que levaram o país à intervenção externa e à austeridade. Como não deixou nunca de insistir na necessidade de promover o crescimento, como forma de melhor ultrapassar a crise da dívida soberana.
A sua magistratura de influência activa, como no-lo recorda neste livro, pautou-se pela independência dos partidos, da comunicação social e dos interesses, pelo respeito e pela promoção da estabilidade governativa e das competências próprias dos vários órgãos de soberania. Moveu-se pela defesa do superior interesse nacional.
A influência que procurou exercer, foi curiosamente maior no primeiro mandato, em tempos de coabitação com um governo maioritário, para decrescer com a progressiva perda de confiança no Primeiro-Ministro, no mais curto período de duração do governo minoritário.
2. É um livro histórico também, porque faz história sobre os 10 anos que o Prof. Cavaco Silva passou em Belém, no exacto sentido de nos contar o que viveu, como seguiu os dramáticos acontecimentos da crise mundial e dos seus reflexos nacionais, como pretendeu inflectir um rumo, cujo trágico desenlace previu e para o qual advertiu, dentro das competências e poderes que eram os seus e que sempre respeitou escrupulosamente. E fá-lo centrado nos encontros de 5º feira com o Primeiro-Ministro, que são, em sua opinião, a forma mais eficaz de o Presidente da República influenciar o processo de tomada de decisões governamentais. Esses encontros não são expostos cronologicamente, mas tratados tematicamente, o que permite serem revisitados isoladamente, em função daquilo que abordam.
A influência sobre o Primeiro-Ministro, longe dos holofotes da comunicação social, não fazendo oposição, antes ajudando o governo, contribuindo para uma cooperação institucional, é detalhadamente demonstrada ao longo destas páginas.
Ajudou a fazer escolhas (como a do Procurador-Geral da República), a defender as Forças Armadas de esquecimentos ou menorizações, impediu investimentos ruinosos (como o novo aeroporto na Ota, o comboio de alto velocidade, a terceira travessia do Tejo) vistos, erroneamente, como meios de combater a crise. Ajudou o Primeiro-Ministro a proceder a remodelações ministeriais, e o governo a melhorar algumas das suas reformas como a do governo das universidades. Mediou entendimentos entre o governo e a oposição, e entre partidos.
Alertou, avisou, aconselhou. Chamou a atenção para a degradação da qualidade dos agentes políticos, para as barreiras que dificultam a entrada de novos valores, e afastam os mais capazes de funções públicas, seduzidos pela maior atractividade do sector privado. Sublinhou os graves inconvenientes do excessivo endividamento do país e do Estado, e do desequilíbrio das contas públicas. Insistiu na redução da dívida externa e do défice, na necessidade de diminuir importações e aumentar exportações. Alertou para a descapitalização da economia portuguesa e para os riscos da sua vulnerabilidade perante os mercados. Aconselhou a reorientar os investimentos para a produção de bens e serviços transacionáveis. Nem sempre as suas advertências foram ouvidas, nem os seus conselhos seguidos (como aconteceu com a regulamentação da lei sobre o aborto, sobre a privatização das estradas de Portugal, e sobre as parcerias público-privadas rodoviárias). Sobretudo, com o desencadear da crise financeira internacional, não conseguiu inverter a orientação do governo.
Só quando a persuasão em privado não surtia efeito desejado, exprimia publicamente a sua discordância, como quando denunciou a insistência do governo em grandes investimentos públicos que exigiam maior financiamento externo, agravando a situação do endividamento.
No entanto, foram muitos os resultados conseguidos: inflectiu orientações, alterou decisões, promoveu entendimentos fundamentais entre governo e oposições, entre governo e sindicatos, aproximou posições divergentes, estabeleceu pontes, ajudou a viabilizar orçamentos, chamou a atenção para aspectos não ponderados, mobilizou atenções, evitou desrespeitos da Constituição, como aconteceu com o Estatuto Político-Administrativo dos Açores, colocou na agenda pública causas fundamentais (como a inclusão social, a valorização da diáspora portuguesa, a integração dos jovens, a aproveitamento do mar português, a economia dinâmica).
Evitou tentativas de o envolverem em intrigas e em disputas políticas partidárias. Resistiu a provocações e a pressões para ultrapassar as suas competências, adulterando os poderes de que dispunha, ou as prioridades que a si próprio estabelecera. Resistiu a campanhas difamatórias. Permaneceu firme nas suas convicções.
Tudo isto foi possível, porque Cavaco Silva é um homem de raízes. Quem o quiser perceber tem que ler, atentamente, entre as páginas deste livro, a que dedica à Horta das Benfarras, onde conversava com seu Pai, debaixo da alfarrobeira, junto à nora, ou à sombra do pinheiro junto ao tanque. E aí fica a perceber donde lhe vem a determinação, a tenacidade, a firmeza, a capacidade de resistência, com que enfrentou e venceu as dificuldades da vida e da sua invulgar carreira de homem de Estado.
3. O Prof. Cavaco Silva foi de facto um Presidente influente, pelo conhecimento que tinha dos assuntos, pela forma como os estudava, pela autoridade com que era reconhecida a sua competência. Foi um magistrado avisado pela vasta experiência política e governativa que possuía e pela sua específica formação académica. Foi um homem de Estado pela compreensão, por ser independente, do que era o interesse nacional, acima dos interesses de partes.
Quem percorre atentamente estas quase 600 páginas de memórias, não pode terminar sem um profundo sentimento de gratidão: Obrigado Senhor Professor Cavaco Silva pela sua imensa e longa dedicação a Portugal e aos Portugueses!