Até as maiores calamidades têm uma ou outra consequência positiva. Os direitos femininos, por exemplo, tiveram grande impulso com as duas guerras mundiais. Na primeira, algumas raparigas solteiras saíram da redoma parental, tornaram-se enfermeiras e condutoras de ambulâncias e nunca mais nada foi o mesmo – como sempre acontece quando alguém prova a liberdade e a independência. A seguir vieram os loucos anos vinte, os Bright Young Things na Grã-Bretanha, o foxtrot e os clubes de jazz, meninas e meninos ricos viciados em morfina – e nada faz melhor por uma relação próxima entre os sexos que partilhar danças noturnas e vícios inconfessáveis. Veio também, claro, o direito de voto em alguns países.

Na segunda guerra, tanto no lado do Eixo como dos Aliados, as europeias asseguraram todas as tarefas que disponibilizassem os europeus para as frentes de batalha, desde os trabalhos nas fábricas, na agricultura, bombeiras da proteção civil, até nas baterias antiaéreas ou nos trabalhos auxiliares das forças armadas. Esta perceção que as mulheres ganharam das potencialidades das suas capacidades não foi menos disruptiva do que a divisão do mundo no bloco capitalista e no bloco comunista.

Digo estas palavras para dar esperança aos caros leitores perante a possível mini calamidade que o PS quer oferecer ao país. Sim, é certo, as contas públicas voltarão a andar de PEC em PEC, todos repetidamente inúteis para controlar a despesa pública em crescimento explosivo. Claro, o PS para ser governo dirá que sim a todas as pretensões lunáticas de PCP e BE, e o corte dos ordenados dos funcionários públicos será reposto, o que levará à necessidade de aumentar impostos. Traduzindo: o PS prepara-se para uma massiva transferência de rendimento dos que trabalham no setor privado para os funcionários públicos. Haverá choro e ranger de dentes, Costa já prometeu.

Contudo há uma esperança de redenção para o acordo do PS com os comunistas sortidos. Se (ainda) discordam ferozmente nas diretrizes orçamentais, já concordaram em abolir o exame do 4º ano. Não se compara à emancipação feminina, mas Costa também não se compara a Lloyd George (apesar de o seu ego insuflado supor que derruba muros de Berlim e extermina apartheids).

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Não me entendam mal: não sou contra exames. Sempre defendi exames de acesso ao ensino superior e ainda hoje considero que é um critério de entrada muito mais justo do que as notas do 12º ano, que estão sujeitas a todo o tipo de inflações injustas. Também padeço de impaciência perante as boas almas (que incluem muitos professores contestatários) que acham a avaliação uma crueldade comparável a viver cinco meses num cenário de guerra deflagrada. E vejo como obrigação de qualquer aluno esforçar-se (muito ou pouco, isso depende dos dotes de cada um, que eu não sou igualitarista) para ter notas positivas. Não sou complacente com o insucesso escolar, e acredito em valorizar e premiar o mérito dos bons alunos.

Mas por isto mesmo não vejo qualquer utilidade nos exames de 4º ano. Vieram de uma deriva que supostamente queria tornar o ensino mais rigoroso, do sempiterno (e entediante e falso) ‘antes é que era bom’, mas que parece ver as crianças como robots a serem avaliados por uma ridículas metas curriculares hiperquantificadas. (Sempre tive curiosidade de saber se algum professor tresloucado anda a cronometrar a velocidade de leitura dos alunos.)

As crianças até ao 6º ano, em Portugal, passam cerca de 1000 horas anuais nas salas de aula, um número que é dos mais elevados da OCDE. Têm uma carga horária semanal parecida com as quarenta horas de trabalho dos adultos. E a seguir ainda se espera que vão fazer trabalhos de casa e estudar para os testes intermédios do 2º ano e para os exames do 4º ano.

Esta estranha pedagogia costuma encontrar-se nas famosas mães tigre americanas: as mães imigrantes nos Estados Unidos que são extremamente exigentes com a prestação escolar dos filhos e os privam de qualquer atividade lúdica que os afaste dos livros de estudo. A expressão mãe tigre surgiu quando Amy Chua escreveu o seu Grito de Guerra da Mãe Tigre (está por cá editado pela Lua de Papel), onde contava as aleivosias a que submeteu as filhas na procura da excelência académica. O livro gerou polémica (desde logo porque Chua é de origem chinesa e o perigo amarelo já era temido) e uma das reações mais curiosas foi a quantidade de testemunhos que surgiram na internet dos filhos das mães tigre. Muitos deles confessavam uma infância ansiosa que os pôs em adultos em consultas de psicoterapia.

Aparentemente imigrantes semiletrados e académicos reputados (os ideólogos do ministério da Educação e também Amy Chua, professora de Harvard) partilham o desconhecimento de que é muito mais estruturante para uma criança ter tempo para brincar do que viver afogada em estudos. Que numa criança a quantidade não leva necessariamente à qualidade. E, sobretudo, que empobrece tremendamente o ensino o que sucedeu nestes últimos anos: as escolas terem como objetivo primeiro treinar alunos para os exames, em vez de os ensinar serenamente e da forma mais adequada a cada um.

Pelo que estou otimista. Até um político como António Costa, que ficará conhecido pelo comportamento infame e antidemocrático, pode prestar um serviço relevante aos cidadãos sub-10. Os meus filhos agradecem, eu também. Mas voto na mesma contra a frente de esquerda.