Portugal podia bem ser caracterizado como o país onde as pessoas levam sempre a mal que alguém faça alguma coisa. O que quer que seja. Criar uma empresa? Toda a gente torce o nariz, vaticina desgraça financeira e esfrega as mãos de felicidade, se for preciso até saltita de alegria no caminho do trabalho para casa, acaso a ousadia corra mal e louco que resolveu arriscar tenha de dar por encerrado o negócio.

Já uma vez escrevi que por cá não se leva a bem publicar livros. Tivemos recentemente mais um caso, com a biografia de Agustina Bessa-Luís de Isabel Rio Novo. Não comprei e não li, mas vou certamente comprar só pela urticária que esta obra causou em tantos quadrantes. Em calhando tratar-se de um país com todos os parafusos, encara-se com normalidade a publicação de biografias sobre personalidades que se destacaram. A maioria são biografias não autorizadas, em que o autor recolhe o material que consegue mas não tem nenhuma obrigação perante os herdeiros (ou o próprio) de defender o legado do autobiografado segundo os parâmetros que aqueles entendem.

Que a família da biografada não quisesse colaborar, por já ter outro compromisso, entende-se. Que se tenham escrito vários textos sobre a gigantesca aleivosia da hagiógrafa de Agustina Bessa-Luís por ter tentado obter a colaboração da família (não fez mais do que a sua obrigação de escrever uma biografia com a maior amplitude de fontes possível) é que mostra como até nos meios ligados à literatura, alegadamente mais esclarecidos, impera um horror sufocante a alguém que parece ser fura-vidas. Não, tem de se pedir tudo respeitosamente e, quando a família ou os tutores do legado não aceitam, amochar envergonhadamente, que isto de fazer coisas sem licença (das pessoas com prestígio ou dos seus derivados) cá por Portugal não se usa.

Já por várias vezes estive para escrever textos com título como ‘o país onde não se pode ter opinião’, porque não conheço caso de local onde se veja como uma ofensa que alguém pense diferente, como por cá. Um dia lá irei.

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Inevitavelmente somos também um país onde não se pode fazer discursos. João Miguel Tavares lá levou com esta fava, à conta do seu discurso do 10 de junho. Foi um bom discurso e, sobretudo, foi um discurso que apresentou a visão de João Miguel Tavares sobre o estado do país no ano da graça de 2019. Não concordo com tudo, nem porventura com o tom, não sei se focou os maiores buracos negros que nos ameaçam (se é que era este o objetivo) e não me senti representada (mas que diabo, por que quereria eu ser representada num discurso?) Mesmo com tudo isto, JMT focou assuntos importantes, quentes, de uma forma sustentada, séria e que precisam de ser encarados e ter uma solução que vá muito mais além do esboço.

Mas quem lesse as convulsões que por aí ocorreram pareceria que João Miguel Tavares – que é de uma direita moderada e compassiva e reiteradamente democrática – tinha apelado, pelo menos, a nova tentativa de conquistar Ceuta e escravizar metade da população da África sub-sahariana. É certo que as pessoas por cá não lêem os textos (nem ouvem os discursos), e preferem processos às intenções que descortinam nos escribas ou oradores, que julgam a priori. Em todo o caso, há limites.

Verdade, a direita mais trauliteira também aproveitou o discurso de João Miguel Tavares para fazer os descabelados ataques às ‘elites’ e a Lisboa. (Suspiro. Lá está, é uma direita trauliteira adequada a um país onde nada se pode fazer e a cidade que se destaca – e que acolhe gente de todo o país que adora ficar por cá a morar – só pode gerar ressabiamentos por todo o lado.)

Mas o campeonato da tontice foi ganho à esquerda. Isto de pessoas que, quase todas, deliravam com as banalidades-barra-insanidades que aquele senhor chamado Sampaio da Nóvoa proferia (ainda se lembra vagamente de quem é tal fulgurante figura?). No entanto, agora, por favor desfaleçam todos, que João Miguel Tavares só fez diagnósticos não apresentou soluções. (Estão todos a gritar descontroladamente perante tal desaforo? Não? O que esperam?)

Bom, João Miguel Tavares podia ter apresentado soluções, como podia não ter apresentado. Fazer diagnósticos acertados tem muito valor e, além disso, estava a fazer um discurso de 10 de junho, não a escrever uma teoria geral sobre todos os assuntos e todas as soluções do mundo necessárias à humanidade. É isso que é um discurso (e, já agora, quase tudo): uma visão sobre uma parte da realidade. Se for bem feito (e foi), já temos sorte.

A medalha de ouro no campeonato correu, claro, para Inês Pedrosa. (Já agora: como assim Inês Pedrosa faz comentário regular num programa na RTP3? Há quem queira ouvir Inês Pedrosa? Pois, é a mania de só se ouvir quem está a falar – e a dizer disparates – há várias décadas, que levamos a mal a inovação.)

Não vale a pena comentar muito o que disse Inês Pedrosa, de tão subterrâneo. E, de resto, repudiado por todo o lado. A ideia de que ‘pensar o país’ é uma função de uns iluminados (geralmente sustentados pelos contribuintes que desprezam) que dizem umas coisas incompreensíveis e redondas (e que ninguém ouve nem liga) é só impenitentemente ridícula. As palavras sobre ‘o padeiro de Portalegre’ dão vergonha alheia.

Já o ‘cada macaco no seu galho’ não é exatamente uma ideia consonante com uma democracia, onde se defende que cada macaco pode aspirar a qualquer galho. É antes uma visão do mundo profundamente reacionária e, ela sim, antidemocrática. Inês Pedrosa julga que a democracia deve coisas (quaisquer umas) a pessoas como ela, mas que não deve aos padeiros de Portalegre nem aos João Miguel Tavares. Para Inês Pedrosa todas as pessoas são iguais, mas umas são mais iguais que outras.

Marcelo Rebelo de Sousa já sabe a pedagogia que pode fazer no próximo 10 de junho: ir buscar alguém que ensine a ouvir discursos sem se ter um ataque de nervos. E, de caminho, desincentive uma pessoa como Pedrosa de ser escolhida para qualquer função paga com dinheiro dos contribuintes, padeiros ou não.