Como já se esperava, a presidente do Brasil foi deposta pelo senado. Toda a gente no Brasil tem opinião, mas parece que fora do Brasil também. O que aconteceu? Não, não foi o golpe de Estado de uma classe reaccionária contra um governo do povo e das minorias. Mas também não foi a rejeição pela parte sã do país de um governo demagógico e corrupto. Foi outra coisa: um realinhamento de forças nas câmaras legislativas, suscitado pela maior recessão económica das últimas décadas e pelo maior escândalo de corrupção de sempre. Que diz isso sobre a democracia no Brasil?
O que importa neste caso não é o que aconteceu, mas o modo como aconteceu. Dilma Rousseff não foi derrubada na rua, por soldados ou por manifestantes. Caiu onde devia cair, nas câmaras legislativas, num processo que o Supremo Tribunal Federal julgou regular. Para alguns dos seus fãs, dentro e fora do Brasil, isso parece não fazer diferença. Mas faz toda a diferença. As formalidades foram respeitadas e Dilma pôde defender-se das acusações. É assim uma democracia, embora possamos não gostar do resultado.
Há quem diga: as acusações contra Dilma não deviam bastar para depor um presidente. Mas bastaram. O sistema brasileiro é assim. O presidente da república, eleito por sufrágio universal, é o chefe do poder executivo, mas precisa de uma maioria no congresso para governar. Dilma perdeu essa maioria, e formou-se uma maioria contrária, que invocou as “pedaladas fiscais” para a destituir. Se fosse na Europa, dir-se-ia que Dilma caiu por falta de apoio no parlamento (61 votos contra 21 no Senado).
Não é a primeira vez que isso acontece. Em 1992, Fernando Collor de Melo tombou desse modo, como aliás ele próprio lembrou há dias. O PT de Dilma fez parte da coligação parlamentar que demitiu Collor, e tentou depois fazer o mesmo aos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. É assim que, entre eleições presidenciais, mudam os governos no Brasil. Só agora é que o PT descobriu que era “golpe“. Mas Dilma não foi eleita directamente por uma maioria? Foi, mas essa maioria era formada por partidos que agora estão contra ela, como o PMDB. Já não existe.
O congresso brasileiro é um xadrez de partidos relativamente pequenos em termos europeus. O PT teve apenas 14% dos votos na última eleição da Câmara dos Deputados. Com Lula da Silva, conseguiu compor coligações que lhe deram o poder durante 13 anos, como pólo alternativo às alianças encabeçadas pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso. É curiosa, por isso, a acusação de que os novos governantes são “misóginos”, “homofóbicos” e “racistas”, porque foi com esses mesmos misóginos, homofóbicos e racistas que o PT governou durante 13 anos.
A maioria de Lula viveu do boom das matérias primas, mas também, segundo a Operação Lava Jato, da corrupção com que os seus chefes compraram aliados e cúmplices. Não resistiu, assim, ao fim do boom e à desmontagem judicial da corrupção. Este ano, o único sentido do governo de Dilma já só parecia ser o de proteger os dirigentes do PT inquiridos pela justiça, a começar por Lula.
As democracias não são os regimes onde nunca há governantes corruptos ou abusadores: são aqueles onde as instituições podem sancionar esses governantes, como aconteceu a Richard Nixon nos EUA, em 1974. As democracias também não são os regimes que nunca proporcionam motivos de indignação, mas aqueles onde o protesto pode e deve ser mantido dentro da legalidade. Para alguns conservadores americanos, como Patrick Buchanan, Watergate foi um “golpe de Estado”. Mas não vieram para “a rua”. Tudo depende agora da liderança do PT. Vai usar este caso para tentar deslegitimar o regime entre os seus activistas e eleitores? É essa, nesse momento, a dúvida sobre a democracia no Brasil.