Desculpem não me comover com toda a gente que até por cá, nos últimos dias, achou que lhe convinha pôr no CV repúdios mais ou menos histriónicos da candidatura presidencial de Jair Bolsonaro, aderindo à moda do “#EleNão” das esquerdas radicais brasileiras. Ao contrário deles, não sei se Bolsonaro é ou não o Anti-Cristo. Tem certamente, tal como Donald Trump, um jeito agressivo e grosseiro. Mas é legítimo suspeitar que, mesmo que fosse o político mais cordato e respeitador do mundo, estaria neste momento a ser tratado exactamente da mesma maneira, como a encarnação do mal absoluto. É que para isso, na política ocidental, basta não ser de esquerda. Nos EUA, nas últimas décadas, os presidentes republicanos Ronald Reagan e George W. Bush, ou os candidatos John McCain e Mitt Romney não precisaram de dizer o que Trump diz, nem fazer o que Trump faz para serem acusados de pretender acabar com a democracia americana, restabelecer a escravatura, rebaixar as mulheres e provocar uma guerra nuclear.

É verdade: McCain, depois de desentender com Trump, morreu em odor de santidade e até Bush passa hoje por cavalheiro, porque o que importa é atacar quem está, não quem esteve. Isso poderia sugerir que a demonização ritual dos seus adversários é, à esquerda, simples marketing: fingir sempre que quem não vota em nós contribui para o fim do mundo. Para alguns, talvez seja apenas isso. Mas para os radicais, não. Porque os radicais adorariam mesmo ter pela frente fascistas, racistas e misóginos. Seria, segundo imaginam, a maneira de provocar as rupturas que, com um pouco de sorte, esperam transformar em revoluções. Como justificar, de outro modo, os seus próprios extremismos? Ora, estes radicais há uma década que desalojaram os “centristas” na orientação das esquerdas, inebriados pela ideia de  reviver os anos 60.

Por vezes, para explicar os “excessos” do chavismo venezuelano ou do castrismo cubano, invocam-se a desigualdade e o exclusivismo dos regimes anteriores. Porque não, da mesma maneira, argumentar que Bolsonaro no Brasil, tal como Trump nos EUA, são em grande medida o produto das esquerdas que agora gritam #EleNão? Trump e Bolsonaro não são imagináveis sem a desonestidade com que as esquerdas classificam todos os adversários como fascistas, racistas e misóginos, e que acaba por dispor demasiada gente a seguir quem não se deixa intimidar, e só por isso. Ou sem os tabus que as esquerdas usam para impedir qualquer discussão racional sobre inquietações legítimas como a segurança, abrindo assim o caminho a demagogos que, ao contrário dos políticos convencionais, nada têm a perder e portanto não receiam a demonização que espera quem menciona esses temas. Eis como um excêntrico como Bolsonaro, sem o apoio de qualquer dos grandes partidos, pôde deixar para trás a direita tradicional do PSDB, condenada a figurar como parte do velho sistema, e surgir como a alternativa à corrupção e ao desgoverno do PT.

Para as esquerdas radicais, é uma excelente notícia, porque já sonham com os confrontos que hão-de iniciar o povo na revolução. Para quem defende a democracia liberal num mundo livre, é péssimo ver o espaço do movimento conservador liberal ocupado por quem, mesmo tendo adoptado alguns dos seus temas, como o “liberalismo económico”, perfilha facilmente princípios que lhe são contrários, como é o caso do isolacionismo protecionista de Trump (ainda que concebido apenas como táctica negocial de choque). Mas no desapego aos tratados internacionais, Trump e o radical Bernie Sanders, não sendo iguais, são muito parecidos. Por menos que apreciemos Bolsonaro ou Trump, é difícil deixar de dizer a estes seus inimigos: #VocêsTambémNão.

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