Agora que tanto se esbraceja com as tradições parlamentares e democráticas, informo que me tenho por cada vez menos tradicionalista. Não vejo qualquer sentido manter uma tradição só porque é tradição. Não me convence o argumento ‘devemos fazer assim porque sempre [e o ‘sempre’ na maioria das vezes é coisa de poucas décadas] se fez assim, resistiu à passagem do tempo, tralalá’. As tradições devem-se usar e manter só tanto quanto sejam justas e façam sentido no mundo atual.

Mas também não vale a pena embirrar com as tradições só porque são tradições. As maneiras e a educação, por exemplo, são tradições pelas quais valeria a pena declarar, em sendo necessário, várias fatwas (isto se fôssemos dados às tradições iranianas). E nas ‘maneiras e educação’ pontifica o não incomodarmos as outras pessoas – sobretudo aquelas que não conhecemos ou com quem ainda não partilhámos meia dúzia de gins tónicos e de confidências pós-gins – com as nossas opiniões acintosas.

Esclareço: não digo para não darmos a nossa opinião – nos últimos anos na blogosfera pouco mais tenho feito que verter sarcasmo para cima de umas quatro dúzias e meia de personagens que atormentam as populações para os lados dos partidos ou dos jornais – nem sequer para não fazermos humor, ironia ou o tal sarcasmo. Mas acaso nos apeteça insultar alguém, então que tenhamos a delicadeza de o fazer nas costas dessa pessoa e de não a importunar com a nossa exuberância opinativa.

Antes, na era pré Mark Zuckerberg, os insultos públicos ou eram feitos presencialmente ou através dos jornais e televisões. Mas, na era d.M.Z., com as redes sociais toda a gente contacta com toda a gente. Assim o insulto, em vez de ficar com os familiares ou no grupo de amigos, é dito a alguém que não se conhece e que teve a ousadia de proclamar uma opinião polémica ou, simplesmente, de que o excitadinho das redes sociais discorda.

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Repito a ideia: acho ótimo que as pessoas vociferem violentamente nas redes sociais. É uma catarse tão boa como qualquer outra. Precisam, no entanto, de aprender essa coisa saudável que é respeitar as fronteiras das outras pessoas, e permanecerem, enquanto insultam, nas quatro paredes das suas casas digitais em vez de invadirem as dos insultados.

Há poucos dias houve um caso flagrante de invasores digitais. A Inês Teotónio Pereira foi insultada de tudo – até com filhos ao barulho, coisa própria de psicopatas – por causa de uma piada à Voz do Operário. A piada não teve muita piada, de facto, porque apesar da imagética de luta de classes (tão apaparicada pela esquerda) que ‘operário’ carrega, ser operário é uma categoria profissional tão digna como qualquer outra e nem todos os operários terão a falta de senso e de gosto de serem comunistas.

Também não era muito pertinente, a piada. Nem só de operários vive a Voz do Operário. Eu, rebento do ensino dos colégios católicos, e que era perfeitamente capaz de fazer uma piada igualzinha à da Inês mas envolvendo sindicalistas (categoria de pessoas reacionárias que excitam os meus ódios de estimação), tive um ano de pré-primária na Voz do Operário. Não por alguma deriva temporária comunista dos meus pais, mas porque morávamos então lá perto. E devo ter ganho na infância, afinal, afeição pela retórica proletária: a criança mais nova tem no quarto um quadro que eu pintei com a frase ‘babies of the world unite’, vejo agora que em fiel reprodução dos dizeres do auditório da VO ‘trabalhadores uni-vos’. Mas a piada não ofende nem quem teve ligação à VO.

Quanto à liberdade de insultar alheia, se dirigida a mim sou magnânima. Podem vilipendiar-me à vontade desde que, lá está, não me causem o incómodo de exigir a minha atenção. Não tenho por hábito fazer pesquisas no Google para saber o que outros escrevem (se alguma coisa) de mim ou dos meus escritos. Como dizia o Daniel Craig sobre um martini shaken or stirred, do I look like I give a damn? Tenho muito pouco interesse (é um over statement) sobre a opinião de anónimos com dificuldade em controlar os ímpetos boçais e, na verdade, igual desinteresse sobre opinião de muitos dos que não são anónimos. Só dou por elas quando vêm ter comigo, na forma de tags ou de tweets, para que eu seja alertada da douta opinião insultuosa do maluquinho. E nestes casos fico mais indignada por os trolls suporem que me podem impingir a sua opinião do que pela opinião (invariavelmente abstrusa) em si.

Não é solução perfeita, porque nem tudo fica nas costas também dos filhos. No outro dia a criança mais velha googlou imagens minhas e descobriu que num blog obscuro (daqueles que põem o PCP no centro-direita) tiraram do facebook as minhas fotos de perfil e, com uma enternecedora infantilidade, fizeram uma catrefada de posts comigo com um bigodinho à Hitler (vai até ao 6). Lá tive de explicar a existência dos maluquinhos da internet ao petiz (antes cedo que tarde) e argumentei que estavam apenas a mostrar que a mãe até de bigodinho ficava bem.

Agora é começar a pensar como explicar-lhe que os maluquinhos da net às vezes são deputados da nação e, apesar de não visarem exclusivamente a sua mãe, também não me reconhecem direito à integridade física e moral (que é de onde nascem os insultos e pior). É esta pelo menos a já famosa (e infame) opinião de Miguel Tiago, ilustre deputado do PCP.