Há acontecimentos que desafiam o conceito de racionalidade. Nos primeiros dias das aulas de teoria das relações internacionais, ensinamos que as principais escolas consideram que os estados são atores racionais, e é raro o ano em que um aluno não ponha o dedo no ar e pergunte como é que podemos considerar que este ou aquele líder da história foi ou é racional. Segue-se um longo debate sobre o conceito, em que tentamos explicar que a racionalidade de cada líder está associada aos seus valores e objetivos. O que nos pode parecer uma loucura, tantas vezes suicida, quase sempre corresponde a uma lógica racional que nos escapa, de tão diferente a forma de ver o mundo. Afinal, a racionalidade é um conceito plástico que se adequa a quase todas as posições e ideologias.
Perguntam pelos homens que se se habituaram a ver como loucos ou paranoicos (o que pode ser verdade, mas não apaga a ideia de uma lógica racional particular). E ultimamente, na galeria dos racionais incompreendidos está Kim Jong-un, o jovem líder da Coreia do Norte que, seguindo o exemplo do seu pai, priva o seu povo do essencial para desenvolver armas nucleares e meios para as projetar. Se já era difícil explicar, a escalada das provocações militares tornou tudo mais difícil. Principalmente agora que a Coreia do Norte lançou com sucesso um míssil balístico intercontinental capaz de atingir o Alasca, no 4 de julho, o dia em que os Americanos saem às ruas engalanadas em azul e encarnado, com bandeiras nas mãos, para celebrar o aniversário da independência. E Kim disse que era um presente para os American bastards. À primeira vista, parece que está a pedir uma guerra. Mas talvez não.
É importante lembrar que ainda não temos a certeza de que o míssil tenha capacidade para transportar ogivas nucleares. Mas os acontecimentos dizem-nos muito sobre a lógica e o choque de racionalidades com a comunidade internacional. A Coreia do Norte desenvolveu armamento nuclear, pagando o preço de sanções continuadas e isolamento diplomático para garantir a sobrevivência do estado e do regime. Do estado, porque sem guerra fria e sem armas nucleares, muito provavelmente já tinha sido engolido pela Coreia do Sul, com aplausos da comunidade internacional. Do regime, porque é inaceitável uma ditadura deste tipo. Assim, a guerra da Coreia, em 1950, permitiu a criação de uma narrativa em que os Estados Unidos são o grande inimigo, que deseja a destruição do comunismo coreano, que a usa para legitimar qualquer ação defensiva ou ofensiva, mesmo à custa do bem-estar da população. E que legitima a dinastia Kim no poder acima do paralelo 38. As armas nucleares protegem o regime do exterior; a narrativa antiamericana protege o regime das dissidências internas.
Aqui está mesmo o busílis da questão. Os Estados Unidos, a Coreia do Sul (o mais que provável alvo de um ataque nuclear, se alguma vez chegasse a acontecer), a China e o Japão estão de mãos e pés atados. Na racionalidade internacional, um conflito armado está praticamente fora de questão devido ao risco de retaliação nuclear (aliás Pequim e Moscovo já expressaram a sua recusa deste cenário). Ainda ontem, houve exercícios militares conjuntos dos Estados Unidos e da Coreia do Sul. Houve uma reunião de emergência na ONU em que a representante americana, Nikki Haley, disse que os EUA querem evitar um conflito e que a China terá que respeitar as sanções (Trump já tinha usado o Twitter para dizer o mesmo). Mas não vai adiantar nada. Já se aprovaram um sem número de resoluções a condenar o regime norte coreano; já se lançaram pacotes e pacotes de sansões; já se criaram concertos para negociar contrapartidas. Já se ameaçou o uso da força contra alvos cirúrgicos. Nada resultou. Aliás, o progresso tecnológico de Pyongyang parece imparável e a humilhação das potências cada vez maior.
As boas notícias, são que se esta tese estiver certa, e a racionalidade esteja na sobrevivência do regime, nada mudará substancialmente. As más notícias são que as crises na política internacional quase nunca permitem mais do que escolher o mal menor, e em casos como este só permitem mesmo uma política de paciência, ou seja, esperar por uma oportunidade que permita um acordo consistente. Um encontro de racionalidades. E este momento ainda não chegou.