Este Verão, foi publicado em português o belíssimo livro de Mark Mazower, Governar o Mundo: História de uma Ideia de 1815 aos dias de hoje, escrito em 2012. O professor britânico demonstra com mestria como é que os debates diretos e indiretos entre intelectuais, políticos, cidadãos revolucionários e conservadores interagiram de forma a ir criando e desenvolvendo o mundo em que vivemos. O argumento implícito é que as ideias precedem as ações e que os debates verdadeiramente importantes acabam por acontecer longe dos holofotes, mesmo quando as sociedades são abertas e plurais.

Já num artigo publicado em agosto na The Atlantic, com o título “Is the World Slouching towards a Grave Systemic Crisis?”, Philip Zelicow, antigo conselheiro da administração Bush, em funções no 11 de Setembro, argumenta que a “ordem mundial” – “a comunidade de normas” que torna legítimo o exercício do poder ao nível internacional – é, na verdade, o resultado da “acumulação” de resoluções de problemas inesperados, locais e regionais, pelas grandes potências. Quando as soluções encontradas contentam as partes, faz-se ordem. Quando o contrário acontece, as crises prolongam-se. Exemplos históricos são vários. Zelicow escolhe a administração Truman, que teve que tomar um conjunto de decisões rápidas e inesperadas para fazer face ao início da Guerra Fria.

Estas duas formas de ver a ordem internacional são complementares. Há uma dimensão ideológica, cuidadosamente negociada, e até inscrita em tratados internacionais pelas potências vencedoras de grandes guerras (Vestefália, 1648; Viena, 1815; Paris, 1919; Ialta, Potsdam e Bretton Woods, nos anos 1940) e há decisões improvisadas face a crises internacionais inesperadas. No entanto, este lado dinâmico da ordem é informado por ideias coletivas (descritas por Mazower) que se tornam, como Nye escreveu uma vez, “soluções por defeito”. Não esperamos, por exemplo, que os Estados Unidos e a China adotem as mesmas políticas passíveis de criar ordem perante a mesma crise.

Esta última observação leva-nos ao centro da questão deste artigo: a China, que aos poucos e poucos se tornou, na sombra, uma produtora de ordem internacional. Primeiro à maneira de Mazower, mas com duas particularidades: (1) pouco sabemos sobre os debates internos que levam a determinadas resoluções e (2) fê-lo através do aproveitamento de oportunidades desperdiçadas por outras grandes potências. Por outras palavras, Pequim está a implementar paulatinamente o seu modelo de ordem internacional – soberanista (em oposição a liberal e cosmopolita), com esferas de influência e parcerias estratégicas internacionais (em oposição a alianças permanentes) e com a doutrina económica do capitalismo de estado (em oposição à doutrina do mercado livre). Ainda frágil politicamente, a China aproveitou os espaços deixados vazios pelos Estados Unidos. Primeiro em África, que precisava de investimentos massivos em setores chave para o desenvolvimento, mas estava pouco preparada para as contrapartidas de boa governação que vinham anexadas aos empréstimos das instituições internacionais; depois na América Latina, que desconfiada dos Estados Unidos, preferia diversificar o seu comércio externo. Nos anos 2000, a China já era o maior parceiro económico de estados como o Brasil, que se viam livres da dependência dos EUA, sem se preocuparem muito com a nova dependência de Pequim. Já durante a crise de 2008, Pequim comprou empresas de importância estratégica em alguns dos países europeus mais afetados, cujos governos se viram obrigados a privatizar para fazer face às dívidas soberanas. Ao mesmo tempo que a China usava as narrativas da ascensão pacífica e da ausência de passado colonial, ia paulatinamente espalhando a sua influência.

Depois de viabilizar governos africanos à beira do colapso económico e ajudar ao crescimento mais acelerado de uma série de Estados em desenvolvimento através de importações massivas de matérias primas, o passo seguinte foi criar organizações internacionais com valores alternativos aos do ocidente – sendo a mais bem-sucedida os BRICS, cujos membros pouco ou nada têm em comum exceto a vontade política de tornar o mundo multipolar o que, trocado por miúdos, significa destronar os Estados Unidos do seu lugar de única grande potência. Visto desta forma, é legítimo concluir que a China tem um plano estruturado de como reordenar o sistema internacional, e uma estratégia cautelosa de implementação, com passos discretos, mas precisos. A China tem, à Mazower, uma ideia para governar o mundo.

Mas se olharmos para a forma dinâmica de decidir sobre a ordem, à Zelicow, encontramos a grande fraqueza chinesa. Se a semana passada Pequim tomou o comando da crise da Coreia do Norte, pondo Washington e Pyongyang no mesmo saco dos agressores, Kim Jong-Un respondeu com um teste de uma potentíssima bomba de hidrogénio no dia em que Xi Jinping recebia os seus homólogos na cimeira anual dos BRICS. Pyongyang matou dois coelhos de uma só cajadada: os resultados de cimeira foram ignorados internacionalmente, e a capacidade de liderança internacional da China saiu fortemente abalada. Pequim não tem controle sobre o seu aliado mais rebelde. E teve que dar o dito pelo não dito e ligar para Washington para tentar encontrar uma solução com o presidente Trump, ainda há poucos dias etiquetado de irresponsável. O que é que isto nos diz? Que Pequim sabe o que quer a longo prazo. Mas que a China ainda não está preparada para este lado mais dinâmico da ordem, que obriga, muitas vezes, a tomar decisões incoerentes com o plano geral. Pequim planeia a longo prazo. Mas teme decisões em contexto de crise. Decisões à Zelicow.

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