É cedo para ter a certeza, mas podemos estar prestes a assistir a um momento histórico: as duas Coreias divididas pelo Paralelo 38, herdado da guerra de 1950-1953 – nunca houve tratado de paz formal – podem estar prestes a dar um passo histórico rumo a uma paz que vem com 65 anos de atraso. Numa declaração conjunta em Panmunjom, Moon Jae-in e Kim Jong-un anunciaram ao mundo que “os dois líderes partilham o compromisso firme de trazer a longa divisão e conflito” ao um fim e de proceder uma “desnuclearização completa” da península coreana.

Porquê agora? Estas coisas não acontecem por acaso. As administrações americanas anteriores tentaram várias abordagens, desde o apaziguamento, às cimeiras multilaterais, passando por momentos de maior tensão coerciva e nada resultou. Tudo indica que o que verdadeiramente mudou no conflito foi uma nova estratégia de Donald Trump, que comprimiu dois elementos essenciais: a demonstração robusta das capacidades militares norte-americanas e a diplomacia bilateral permanente com os estados interessados em conter a Coreia do Norte.

Este volte-face terá tido três motivos. Primeiro, King Jong-un subiu a parada: o programa nuclear norte-coreano conheceu desenvolvimentos acelerados que Pyongyang fez questão de mostrar ao mundo através de sucessivos testes nucleares. O líder norte-coreano teve o cuidado de usar retórica explicativa que não deixasse dúvidas que os ensaios se destinavam a visar os Estados Unidos. Nas mãos de Kim, as armas nucleares pareciam ter perdido o caracter de contenção mútua e passavam a ter um teor bem mais ofensivo, tornando a ameaça coreana muito mais premente. Provavelmente mais do que os EUA estavam dispostos a aceitar.

Assim, esta é a segunda razão, Washington avançou com uma estratégia clara: devolver as ameaças – sublinhando repetidas vezes que a opção militar estava em cima da mesa –, fazer aprovar nas Nações Unidas duríssimas sanções económicas, com o aval chinês, e usar a demonstração de força até ao limite necessário para o estado prevaricador vir direitinho para a mesa das negociações. Ao mesmo tempo, terá havido diplomacia intensa (alguma mais visível que outra) com o Japão, a Coreia do Sul e a China. Em separado.

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A terceira razão é que a China – que viabilizava economicamente o regime da Coreia do Norte – acabou por ceder e colocar-se ao lado de Washington nesta questão fundamental. É sempre difícil saber ao certo quais são as razões chinesas; terão tido a ver com a possibilidade de proliferação nuclear para estados como o Japão ou a Coreia do Sul, com o desejo de ver os EUA menos envolvidos na região, ou mesmo com o receio de ficar para trás numa negociação de carácter fundamental para o equilíbrio de poder e estabilidade regional.

O que é certo é que, depois de o regime de Pyongyang ter dado alguns passos que sinalizavam a sua vontade de inverter a política nuclear, os Estados Unidos foram convidados pela Coreia do Norte para arbitrar o fim do conflito e acordar as formas de desnuclearização (com devida explicação e inclusão da China, como demonstrou a “viagem secreta” do líder norte-coreano a Pequim). E assistimos ontem uma dança muito bem orquestrada entre Moon Jae-in e Kim Jong-un, onde se anunciaram negociações tripartidas (EUA, Coreia do Sul e Coreia do Norte) e quadripartidas (EUA, China, Coreia do Sul e Coreia do Norte), bem como os compromissos históricos referidos acima.

Importa acrescentar que há um pessimismo palpável relativamente à vontade de Kim Jong-un de cumprir verdadeiramente as promessas anunciadas em comunicado conjunto. Não admira, tendo em conta quer a história recente do comportamento dos líderes norte-coreanos e a abrupta viragem de Pyongyang. Contudo, é a primeira vez que os Estados Unidos, a China (e a Rússia) se alinham com este objetivo comum. E é nesta novidade, a par de se abrir a porta a uma negociação que se quer moderada e que não faça nenhum dos estados “perder a face”, que reside a esperança que se dê passos concretos rumo a um duplo objetivo, a paz e a desnuclearização, que beneficia – e de que maneira – a estabilidade internacional. Nada está garantido. Mas também se deve reconhecer que nunca se deram passos tão importantes para pôr fim a um dilema de segurança que sobrevive há demasiado tempo.