O mundo assistiu esta semana a um momento inédito: viu o presidente dos Estados Unidos e o líder da Coreia do Norte a apertar as mão ao som de milhares de máquinas fotográficas a disparar e comentadores de todo o mundo a tentar descortinar ora as expressões faciais e corporais dos líderes, ora o enquadramento deste acontecimento tão invulgar.

Podíamos especular sobre o grau de sucesso da Cimeira de Singapura, mas não é um exercício muito útil, porque não sabemos o que lá se passou, nem o documento final nos diz grande coisa acerca disso. Mas há três outros elementos a debater: o que levou à cimeira, que é em si mesma o sucesso; quem ganha e quem perde (tem-se partido do princípio que todos ganham, mas não me parece que seja bem assim); e o que vem a seguir, que na verdade não sabemos. Mas conhecemos os dilemas que alguns estados vão ter de enfrentar.

Em primeiro lugar, destaque-se que, quer se goste dos protagonistas quer não, o simples facto destes dois líderes iniciarem um diálogo sério depois de 25 anos de tentativas falhadas é uma vitória. Vitória para Kim Jong-un que, como já foi escrito aqui, é um ator racional, e forçou o mundo a olhar para o seu estado como uma ameaça concreta, globalizada e impossível de continuar a ignorar depois de seis ensaios nucleares e diversos testes com mísseis balísticos. Aquilo que muitos acharam que era a loucura do “rocket man” (Trump dixit), que terá deixado sul coreanos e japoneses à beira de um ataque de nervos, acabou por revelar ser uma estratégia para levar os líderes internacionais ao limite. Kim conseguiu o que nenhum outro líder do seu país foi capaz: ser tratado na Cimeira de Singapura como o chefe de um estado “normal”, como se nunca tivesse sofrido do isolado internacionalmente e como se Pyongyang não fosse vista (e tratada) como um estado-pária, com o qual nenhum líder internacional aceitava negociar de igual para igual.

O sucesso também foi de Donald Trump. O presidente americano, com uma nova abordagem ao uso do poder (militar se necessário), apostou tudo numa estratégia velhinha que teve efeitos positivos no passado longínquo, mas que tinha, de alguma forma, caído em desuso entre as elites americanas: o uso muito público de carrots and sticks alternadamente, sendo que os sticks, as ameaças retóricas e políticas, as sansões económicas e as demonstrações de força militar na vizinhança, foram muito mais duras que as carrots, momentos de pausa na assertividade em que a administração ia propondo que os atores se sentassem à mesa (sendo o verdadeiro prémio implícito o alívio das sanções). Assim, de Washington também empurrava Pyongyang para a mesa das negociações através do estrangulamento económico de um regime que ia ficando com cada vez menos fôlego para se manter impávido perante a pressão. Trump usa estratégias ousadas, daquelas em que se joga tudo. E desta vez, pelo menos desta vez, resultou. O presidente norte-americano conseguiu de uma só vez dar início à resolução de um problema internacional que muitos consideravam descontrolado ou irresolúvel (já há quem diga que pode vir a ser prémio Nobel da Paz) colocando os EUA novamente na posição de “potência responsável”, mas nos termos de um novo quadro normativo à maneira de Trump – sem qualquer atenção ao tipo de regime. Além disso, ainda tira dividendos internos importantes. A sua popularidade aumentou consideravelmente pela primeira vez desde que tomou posse (sem que tenha, para isso, perdido a sua muitíssimo fiel base de apoio) e a maioria dos americanos, independentemente das suas preferências políticas, aprova o papel de Washington neste processo. A cinco meses das eleições intercalares.

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Quanto ao segundo ponto, não se pode dizer que tenha havido propriamente perdedores. Mas há três estados que terão de lidar com problemas complexos. Começamos pela China, que teve neste processo um papel muitíssimo ambíguo. Pequim sempre resistiu à pressão de Washington para ceder à aplicação de sansões à Coreia do Norte. Afinal, aparentemente a China detinha a hegemonia da resolução do problema, uma vez que viabilizava economicamente o regime Pyongyang. Além disso, ainda vigora um pacto de segurança entre os dois países, assinado em 1961. Mas a crescente tensão entre os EUA e a Coreia do Norte (descrita acima) parece ter deixado Pequim sem escolha: ou se envolvia mais ativamente na questão – leia-se passar a ser parte da solução e não do problema – ou o seu papel regional, neste caso concreto, poderia ser votado à quase irrelevância. Xi Jinping escolheu a primeira hipótese e, em setembro do ano passado, viabilizou o pacote de sansões do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Por um lado, a China também beneficia da Cimeira de Singapura: tem usado o trunfo “Coreia do Norte” para negociar diversos assuntos com os EUA, incluindo o acordo bilateral de comércio; terá de gastar menos energia e recursos nesta questão da instabilidade regional; e vê com bons olhos as contrapartidas que os EUA terão de dar à Coreia do Norte a prazo, especialmente um recuo do poder militar norte-americano da Península. Mas não deixa de ter perdido a oportunidade de liderar um processo bem no centro da região que quer dominar, num momento em que a esmagadora maioria dos observadores internacionais já declarava que a influência da China, pelo menos na Ásia, era incontornável. Não foi. (Espera-se que os Estados Unidos compreendam o papel delicado de Pequim e envolvam a China neste processo).

Em segundo lugar está o dilema de segurança que o Japão e a Coreia do Sul terão de enfrentar. Estes dois estados estão profundamente dependentes da providência de segurança por parte dos Estados Unidos e qualquer passo para a “desnuclearização completa da Península” implica um recuo das forças norte-americanas, quer no que respeita à sua presença no terreno, incluindo os exercícios militares conjuntos que se tornaram muito frequentes, quer no que respeita à construção de escudos antimíssil balístico que, no fim de contas, era a melhor garantia que Tóquio e Seul iriam ter no que respeita à sua segurança. Assim, haverá uma fase em que ou se constrói um ambiente de grande confiança entre Kim Jong-un, Moon Jae-in e Shinzo Abe (o que é bastante difícil), ou haverá momentos de tensão profunda. A Coreia do Sul e o Japão são democracias e vão precisar de dar garantias às suas populações que temem – com razão – um volte-face em fase de vulnerabilidade. Este dilema é, talvez, o preço a pagar para um futuro muito mais pacífico. Mas ambos os líderes vão precisar de muito jogo de cintura.

A questão é ainda mais vital para Moon-Jae-in, que ganhou as eleições de Maio de 2017 prometendo um esforço diplomático reforçado para encontrar soluções para a paz na Península Coreana. Isto, aliás, esteve patente na diplomacia desportiva dos Jogos Olímpicos de Inverno, em fevereiro, na (outra) cimeira histórica de abril, em Panmunjon, e nas permanentes declarações vindas de Seul que não perde uma oportunidade de comentar, sugerir, explicar. Enfim, aparecer na fotografia. No entanto, a Cimeira de Singapura cria uma situação que trará um outro dilema – desta vez nos objetivos finais dos atores envolvidos – a longo prazo. Por um lado, Kim Jong-un entrou nesta parada com vista à sobrevivência do seu regime (que terá que mudar se houver investimento estrangeiro e abertura ao exterior, mas a transformação deverá ser para um modelo semelhante ao chinês e não ao japonês ou coreano do sul) – tornando a finalidade “desnuclearização” o epicentro de todo este assunto; por outro, Moon Jae-in representa a tão sonhada reunificação das Coreias – e o objetivo último de gerações de chefes de estado de Seul. E estes dois desfechos – a sobrevivência da Coreia do Norte e a unificação das Coreias – são incompatíveis.

Assim chegamos ao último ponto – o que se segue. A Cimeira de Singapura vale por si. Vale muito. Mas convém moderar as expectativas. Tudo o que é difícil ainda está por fazer. Haverá sempre duas linhas: uma que se contentará com um processo minimalista que tenha como principal objetivo integrar Pyongyang na comunidade internacional tornando a ameaça mais inofensiva (da qual pouco ou nada se fala, mas para muitos a contenção é uma solução aceitável e mais realista). E outra, mais intransigente, que se manterá na linha dura, exigindo a completa desnuclearização (provavelmente a que estará em vigor a enquanto Donald Trump for presidente). Qualquer dos caminhos será longuíssimo e sinuoso. Todo este processo vai ter de ser negociado detalhadamente e terá de haver muitas concessões. Se se chegar ao passo seguinte, a desnuclearização de um estado também um processo tecnicamente muito complexo e que exige garantias permanentes. E os atores secundários vão ter de manter a pressão para conseguirem as suas próprias concessões. Tudo pode ainda falhar.

Em público, vão ter se criar gestos de dureza e de boa vontade, alternadamente. Vai haver momentos de amuos telegénicos em que vai parecer que tudo está perdido. Vai haver momentos de grande tensão diplomática entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte. Vai haver recuos das partes “menos importantes” para agradar aos seus eleitorados e para conseguir, perante um caso desta envergadura, pequenas vitórias. Vai ter de haver manobras para “salvar a face” e manter o prestígio internacional de todos o envolvidos, que são valores com que não se brinca na Ásia. É assim, a natureza destes processos. Nós é que não costumamos dar por eles, porque geralmente acontecem nos bastidores, antes da opinião pública se aperceber da sua existência. Veja-se como Roosevelt manteve o silêncio nos anos de preparação da arquitetura internacional pós-guerra ou como Nixon conseguiu esconder por dois anos o seu encontro com Mao Tze-Tung.

Mas a verdade é que tudo se vai decidir aos poucos, durante os próximos anos. Sim, vai levar anos. E à porta fechada. E com – espera-se – a participação ativa da China, que se for excluída pode deitar tudo a perder. E como muitos avanços e recuos. E com muita paciência estratégica. Porque afinal apenas vimos o primeiro dia do resto de uma das negociações mais importantes em política internacional nos últimos anos. E também das mais difíceis de sempre.